23 de novembro de 2012
 


O mundo no trapézio

 

Quem viveu nas décadas de 60 e 70 do século passado as lutas dos movimentos da contracultura e do socialismo não poderia imaginar que trinta anos depois o século seria subitamente abreviado com o fim dos sonhos que o acalentaram.
 

Assim como o colapso do socialismo real na antiga União Soviética, em 1991, marcou o fim do antigo milênio, um outro desabamento, o das torres gêmeas do World Trade Center na cidade de Nova York, em 2001, estabeleceu o início do século 21. A clara conexão entre esses dois acontecimentos aparentemente tão díspares determinou a atmosfera de insegurança, turbulência, instabilidade política e de confrontação militar que caracterizou os primeiros anos do novo milênio.
 

O modelo hegemônico que emergiu vitorioso do conflito se empenhou em conquistar os corações e mentes dos cidadãos, proporcionando-lhes um maior acesso aos bens de consumo, mas ao mesmo tempo se mostrou incapaz de realizar uma melhor distribuição de renda, preservar a paz entre os diferentes povos da Terra e, quando confrontado em seus propósitos, cerceou e reprimiu aqueles que ousaram discordar de seus meios cada vez mais truculentos.
 

Com o ocaso do socialismo soviético, forças que pareciam adormecidas ressurgiram com ímpeto. Mergulhados numa atmosfera rarefeita caracterizada por um torpor catatônico determinado pelo consumo desenfreado de gadgets, que ofereciam uma ilusão fugaz de poder e conhecimento, não percebemos que esses objetos de consumo servem na verdade para acentuar ainda mais o controle exercido pelo Estado sobre a vida privada do cidadão.
 

Enquanto nos deixávamos inebriar pelas miríades trazidas com a nascente tecnologia do sistema produtor de mercadorias, o amplo espaço de liberdade e de conquistas sociais do homem alcançado no século 20 – fruto de lutas e sacrifícios ao longo da história – era assenhoreado pelo sistema de poder e transformado em uma superestrutura de vagas reivindicações de caráter restrito contidas num ideário identificado como politicamente correto ou de ações afirmativas que, efetivamente, não oferece nenhum poder transformador ao homem.
 

Durante esse período sucederam-se a Guerra do Golfo, as crises econômicas da Rússia e da Coréia, a destruição da Iugoslávia, o 11 de setembro de 2001, as invasões do Afeganistão e do Iraque, a emergência dos fundamentalismos muçulmano, cristão e judeu, os mais diversificados golpes de Estado, fracassados e bem-sucedidos, as revoluções coloridas utilizadas como pretexto para a derrubada de governos constitucionais, as guerras coloniais de conquista da Líbia e da Síria, culminando numa crise econômica de grandes proporções que hoje devasta os Estados Unidos, a Europa e o Japão.
 

Tão desproporcional é o número de pequenos e grandes conflitos vigentes no planeta que teme-se até pela iminência de uma nova conflagração mundial, cuja efeito destruidor – pela capacidade letal das armas hoje existentes – seria incomparavelmente maior do que a última guerra travada no Velho Mundo.
 

De forma ainda mais assustadora, pode-se dizer que vivemos também na humanidade a perspectiva do desaparecimento da própria vida no planeta Terra quando se considera o rápido esgotamento das fontes não renováveis – que alimentaram por mais um século um enorme e predatório crescimento industrial – além dos nossos recursos renováveis como a água, o ar e as terras cultiváveis – cada vez mais contaminados pela contínua descarga de elementos tóxicos.
 

A assustadora explosão do reator de Fukushima, ocorrida recentemente no Japão, assim como as precedentes de Three Mile Island, nos EUA, e de Chernobyl, na antiga União Soviética, traz também o espectro de que o uso abusivo de uma tecnologia muito avançada possa despertar forças ainda desconhecidas na natureza. As alterações nos fenômenos climáticos e as catástrofes naturais em grande escala mostram a fragilidade do homem e sua incapacidade, mesmo com todo o conhecimento científico que já acumulou, para prever eventos que não consegue controlar.
 

Cavalgamos hoje, para lembrar uma expressão do pensador Michel Foucault, no “dorso do tigre”, conduzidos por uma vertiginosa tecnologia e ao mesmo tempo temerosos de que uma interrupção desse movimento possa levar a um retrocesso em nosso culto obsessivo do progresso e do desenvolvimento.
 

As reflexões aqui publicadas, escritas num período que vai de 2001 a 2012, tentam compreender as abruptas modificações porque passou este breve lapso da nossa história em que muitos sonhos humanistas nos foram expropriados e se perderam, enquanto outros terminaram sendo confinados a paraísos artificiais criados por fabricantes de ilusões.
 

O novo milênio ainda espera uma utopia que possa resgatar a humanidade.

 

Sérvulo Siqueira