23 de maio de
2015
Hitler e Mussolini estão vivos e passam bem
Setenta anos depois da II Guerra Mundial e quase um quarto de século
após o fim da Guerra Fria, assistimos a uma verdadeira reversão de
expectativas.
Vitorioso em ambos os conflitos, os Estados Unidos vivem hoje uma
profunda crise econômica, política e moral.
Embora ainda seja prematuro fazer projeções, a crise da
hiperpotência americana reforça uma tendência já apontada por
historiadores como Eric Hobsbawn e Marc Ferro de um deslocamento de
poder do Atlântico para o Pacífico, onde os tigres asiáticos vêm há
algum tempo impulsionando a economia mundial, e projeta agora a
emergência da China como nova superpotência.
De
outra parte, a prometida Nova Ordem Mundial de paz e prosperidade
liderada pelos ianques não se consumou, transformando-se em pouco
tempo num cenário de turbulência em grande parte determinado pela
ambígua política americana que gera instabilidade ao apoiar
movimentos como a Al-Qaeda e outros grupos radicais ao mesmo tempo
em que desencadeia uma guerra contra o terrorismo.
Com
o triunfo do neoliberalismo e o colapso do modelo estatizante
implantado na União Soviética e mesmo em muitos países capitalistas
como o Brasil, tivemos nos 1980 e 1990 a era das privatizações que
mergulhou grande parte dos países em desenvolvimento em um período
sombrio de desnacionalizações, enfraquecimento da economia local,
aumento da miséria e crescimento da distância entre ricos e pobres.
Com
a ascensão de novos líderes como Néstor Kirchner, Hugo Chávez, Evo
Morales, Rafael Correa e Luís Inácio da Silva na Argentina,
Venezuela, Bolívia, Equador e Brasil , respectivamente, além do
retorno de Daniel Ortega na Nicarágua, a América Latina vem desde o
final dos anos 1990 tentando encontrar o seu caminho em uma linha
que se pretende equidistante do poder hegemônico americano.
De
forma paradoxal, isto ocorreu em grande parte durante um dos
governos mais belicistas da história dos Estados Unidos da América –
a administração de George W. Bush – que se empenhava naquele momento
em seus projetos geopolíticos de dominação no Oriente Médio e na
Ásia Central, invadindo o Afeganistão e o Iraque e fomentando
guerras intestinas e revoluções coloridas nos países que durante a
Guerra Fria estiveram integrados ao chamado bloco soviético.
Para
executar este projeto, Tio Sam descartou toda a retórica da
propaganda com a qual havia alimentado a sua vitória na Guerra Fria:
defesa da política do livre mercado, proposta de uma sociedade
democrática, afirmação dos direitos humanos, etc. e se serviu de
velhas armas como os serviços de espionagem da Agência Central de
Inteligência (CIA), que executavam sabotagens, assassinatos
programados, políticas encobertas de desestabilização de governos
não alinhados e as notórias ações terroristas.
Embora tenha sido bem-sucedido em um grande número de oportunidades,
os EUA não conseguiram evitar que a antiga União Soviética – agora
representada pela Rússia, reduzida em sua dimensão territorial e
pujança política e militar mas ainda assim o maior país da face da
terra – ressurgisse como um poder capaz de resistir aos planos
americanos de domínio global.
Tendo sido derrotada na Guerra Fria – a Terceira Guerra Mundial,
como a chama o subcomandante Marcos do Movimento Zapatista do estado
mexicano de Chiapas – a Rússia pareceu ter aprendido melhor as
lições da história ao analisar os erros cometidos e em muitos casos
tentar corrigi-los, buscando apagar a imagem de uma sociedade
totalitária e tentando integrar em uma nova forma de progresso e
desenvolvimento uma sociedade altamente diversificada.
Por
sua vez, o establishment americano – inebriado pela vitória
alcançada – não foi capaz de avaliar com precisão a nova realidade
criada por sua ascensão à condição de única hiperpotência da Terra e
persistiu no emprego das mesmas táticas do período do pós-guerra, na
verdade ampliando ainda mais o seu envolvimento militar em todos os
cantos da terra com a instalação de mais de um milhar de bases
militares ao longo dos cinco continentes, o bombardeio contínuo de
inúmeros países e a invasão do Afeganistão e do Iraque com o
objetivo de se apoderar dos recursos energéticos dos países da
região.
Tendo dispendido trilhões de dólares em seu esforço de conquista,
não se sabe com certeza se o poder americano obteve os benefícios do
investimento feito mas é certo que as doutrinas de guerra permanente
e de guerra preventiva elaboradas durante o governo George W. Bush –
combinadas a uma política de desregulamentação e liberalização –
geraram uma crise econômica e financeira que se espraiou por toda a
economia neoliberal, que hoje predomina sobre todo o planeta.
Para
implementar a sua Full Spectrum Dominance – expressão contida em um
documento apresentado pelo Comando Espacial Americano em 1998 que
detalhava um projeto de dominação sobre toda a terra, a superfície e
profundezas do oceano, o ar, o espaço, o espectro eletromagnético e
os sistemas de informação com poder suficiente para vencer guerras
globais contra qualquer adversário ‒ a administração norte-americana
organizou uma ampla teia de alianças que abrangia desde a submissão
completa de muitos estados na África, na Ásia e na Europa Oriental
até a complacência de antigas nações poderosas da Europa como a
Alemanha, a França e a Inglaterra, sem esquecer as poderosas
multinacionais do petróleo e os banqueiros de Wall Street.
Naturalmente, uma política tão excludente – que não teve outro
resultado senão a criação de uma ampla disparidade de poder em que
menos de 20% da população passou a deter mais de 80% de toda a
riqueza produzida no planeta – somente poderia aumentar o número de
conflitos armados em toda a Terra.
Em
todos eles, os Estados Unidos vêm tendo uma participação
preponderante como fomentador e instigador em alguns casos − por
meio da criação e financiamento de grupos terroristas como na Líbia,
Síria e Ucrânia, entre outros – e como repressor em outras
situações, como se dá na Somália, no Sudão e ocorre no momento no
Iêmen onde um governo pró-americano foi escorraçado pelos houthis,
organização que agora enfrenta uma feroz repressão de uma aliança
comandada pela Arábia Saudita com o apoio de Washington.
Na
mesma linha se inscreve a chamada primavera árabe, slogan fabricado
para nomear um movimento destinado a implementar um plano de
remodelação do Oriente Próximo e a instalação de governos mais
dóceis aos objetivos ianques. Tendo nascido na Tunísia e se
estendido ao Egito, ela foi vista a princípio com simpatia por
derrubar ditaduras servis aos poderes hegemônicos mas não foi
sucedida por nenhum outro movimento até que um pérfido plano
concertado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte com o aval
do Conselho de Segurança das Nações Unidas derrubou e assassinou o
Coronel Muammar Kadhafi da Líbia, o que mergulhou o país num abismo
sem fim.
Tendo esgotado em um curto período os seus objetivos, a primavera
árabe desembocou na vitória da Irmandade Muçulmana nas eleições do
Egito em 2012 e na subsequente derrubada do governo de Mohamed Morsi
em 2013 por um golpe militar liderado por Abdul Fatah Khalil
Al-Sisi, que acaba de condená-lo à pena capital.
O
general Sisi, como é conhecido, pode ser considerado um dos mais
recentes espécimes monstruosos criados pela dominação americana,
iniciada no país após a morte de Gamal Abdel Nasser em 1970 e que se
estendeu pelas ditaduras de Anwar Al-Sadat e Hosni Mubarak .
Para
se manter no poder, o general Sisi instituiu uma férrea ditadura que
já condenou à morte mais de um milhar de pessoas além de ter
assassinado nas ruas outros tantos cidadãos. Há o risco de que tanta
violência por parte do governo possa levar o país a um clima de
guerra civil.
Uma
nação que já está envolvida em guerra civil é a Ucrânia, onde outra
revolução colorida – ainda mais violenta do que as anteriores
ocorridas na Geórgia, Azerbaijão e na Sérvia – foi fabricada no
início de 2014. Seu objetivo inicial era evitar que o governo eleito
de Viktor Yanukovych – pró-russo – tomasse a decisão de não entrar
na União Europeia. O governo que sucedeu ao de Yanukovych aliou-se a
antigos grupos nazistas remanescentes da colaboração de ucranianos
com as forças de Hitler durante a II Guerra Mundial, preservadas de
qualquer julgamento por seus crimes pelos americanos para que
pudessem servir como força de atrito contra o governo da União
Soviética durante a Guerra Fria.
Em
uma atmosfera de total colapso da economia e sob a inspiração dos
Estados Unidos e da União Europeia – que apoiaram o golpe de estado
– formou-se um governo presidido por um oligarca ligado à indústria
do chocolate, tendo como primeiro-ministro um tecnocrata judeu que
comanda um ministério composto por vários militantes nazistas do
Pravy Sector e das antigas milícias Svoboda.
Os
muitos empréstimos do Fundo Monetário Internacional e dos Estados
Unidos – destinados principalmente a salvar os interesses
estrangeiros no país – não conseguiram obviamente recuperar a
economia e a Ucrânia mergulha rapidamente na completa insolvência e
no caos, correndo o risco que ter em breve um governo com uma
orientação inteiramente nazista.
Enquanto isto, do outro lado do Bósforo – no Oriente Médio – a
Arábia Saudita e Israel concertam um sinistro plano que alguns
analistas acreditam pode levar a um bombardeio do Irã. O objetivo
deste plano e impedir que os Estados Unidos e o Irã assinem um
acordo que interrompa um programa nuclear do país islâmico e ponha
fim às sanções que lhe são aplicadas.
Recordistas de transgressão de direitos humanos, a Arábia Saudita e
Israel têm sido preservados de quaisquer sanções pela proteção que
lhes oferece o Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde os
governos da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos vêm de forma
persistente fazendo vista grossa diante de sua brutal política de
decapitações, contínuos bombardeios do território de Gaza,
assentamentos em áreas pertencentes ao povo palestino e utilização
de armas proibidas por convenções internacionais, somada agora à
destruição de áreas urbanas do Iêmen, impedindo assim que esses
países sejam julgados e condenados por seus muitos crimes.
Pouco divulgada até recentemente pelos meios de comunicação, a
política discriminatória do estado de Israel contra seus próprios
cidadãos começa agora a vir à tona com as crescentes manifestações e
protestos de judeus etíopes ‒ violentamente reprimidos pela polícia
local ‒ contra o tratamento que lhes têm sido dado na Terra Santa
judaica.
Ao
sul do Mediterrâneo, na África, o longo período de colonialismo
deixou marcas que não se apagaram como mostram as permanentes
guerras civis que vem dilacerando o continente. Estima-se que mais
de 13.000 jovens entre 15 e 17 anos tenham sido recrutados para
fazer parte de um exército permanente que os Estados Unidos
constituíram no Sudão do Sul visando se apoderar de suas riquezas
minerais. Somam-se assim aos mais de 400 estudantes que foram
forçados a abandonar as aulas devido à guerra civil que assola o
país desde os anos 1950 e permanece até hoje.
Como
o Sudão do Sul não é um caso isolado num continente onde atuam
também grupos terroristas como o Boko Haram na Nigéria, Al Shabab na
Somália, onde a Líbia foi estraçalhada por uma brutal invasão da
OTAN, que ainda não curou as feridas do morticínio de Ruanda e
Burundi entre os hutus e os tutsi e tem sido devastado por pandemias
como a AIDS e o ebola, muitos africanos escolhem o caminho do exílio
para morrerem afogados em barcos superlotados que os europeus se
recusam a socorrer.
Na
nossa América Latina, que experimentou durante os anos 1980 a sua década
perdida, vamos aos trancos e barrancos tentando recuperar o atraso em
nossa dívida social e em certo sentido vimos obtendo êxito. Isto não
parece, no entanto, agradar a uma furibunda oposição fascista na
Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina e Brasil que busca por todos os
meios ‒ contando com o apoio de uma imprensa sem nenhum escrúpulo ‒
reverter as conquistas sociais alcançadas. Por trás destes grupos, não
poderiam deixar de estar as ONGs e grupos econômicos da América do
Norte, especialmente aqueles ligados aos irmãos Koch, além da figura
sinistra de George Soros ‒ o patrono das revoluções coloridas ‒ que
almejam se beneficiar das vastas riquezas naturais do Brasil. Os Estados
Unidos, que sempre se apresentaram como o paladino da democracia, assim
como o Canadá ‒ que hoje, sob o governo do criptofascista Stephen
Harper, pretende agora criminalizar qualquer crítica à política de
Israel ‒ vêm apresentando um quadro de crescente número de violações dos
direitos humanos, como atesta uma recente pesquisa que indicou que
somente no último mês de março deste ano a polícia norte-americana matou
mais cidadãos ‒ predominantemente negros e latinos – do que a policia
inglesa durante um século. O mais recente destes crimes brutais,
ocorrido em Baltimore, levantou a população da cidade em contínuas
manifestações que estão dando origem a um novo movimento por direitos
civis em toda a nação. A aliança econômica dos BRICS (Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul ‒ que responde por um terço do comércio
mundial ‒ abriu uma nova janela de oportunidade nas relações
internacionais e dentro desta aliança emergiu uma nova parceria que hoje
apresenta uma clara alternativa ao crescente militarismo dos Estados
Unidos e da OTAN e oferece à humanidade uma perspectiva concreta de paz
: a integração política, econômica, cultural e militar entre a China ‒
nova potência mundial ‒ e a Rússia, superpoder durante parte do século
20 e que ressurge com celeridade, apoiada na sua poderosa cultura, em
seu imenso capital humano e no desenvolvimento tecnológico que não
chegou a perder por completo durante os piores anos de sua crise.
A
celebração dos 70 anos decorridos do fim do II Guerra Mundial,
indiscutivelmente em grande parte vencida pela heroica resistência do
exército e do povo russo, sabotada pelos antigos aliados ‒ Estados
Unidos, França e Inglaterra ‒ acabou se transformando num momento de
grande força da nova aliança entre a China, a Rússia e a Índia ao
mostrarem que são capazes de aglutinar em torno de seus propósitos de
paz e progresso metade da população da Terra. Ao reverenciar seus mortos
na última grande guerra os mais de 12 milhões de russos, participantes
da passeata Os Imortais que se espalhou por todo o país, se somaram a
estes anseios.
Nos
Estados Unidos do século 19, uma frase atribuída ao jornalista e
político Horace Greeley: ‒ Go West, young man! (Vá para o Oeste, jovem!)
sintetizou o processo histórico do país naquele momento. Hoje os tempos
são outros e talvez se possa indicar o sentido contrário. A velha Ásia,
recuperada dos longos e duros anos de colonização, pode vir a se
transformar num baluarte da paz e do progresso da humanidade nos
perigosos tempos em que vivemos.
Sérvulo Siqueira |