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22 de dezembro de 2014
Cowboys com armas atômicas
O futuro dirá se o reatamento das relações diplomáticas entre Estados
Unidos e Cuba foi um simples gesto de relações públicas, um
reconhecimento da importância do país caribenho ou a primeira etapa de
uma estratégia já concebida para a instauração de um novo governo ‒
certamente mais favorável aos Estados Unidos ‒ na ilha.
De qualquer forma, as primeiras reações do governo cubano foram no
sentido de que não estava embevecido por tamanha generosidade ianque. A
calorosa recepção aos três antiterroristas que permaneceram presos por
16 anos no gulag americano deve ter reavivado no povo cubano a
consciência do tratamento que os Estados Unidos vêm dispensando ao
regime socialista por mais de meio século.
Coincidentemente, ao mesmo tempo em que as relações eram restabelecidas
uma grande delegação russa era recebida por Raúl Castro e assinava
inúmeros acordos com Cuba, o que afasta de imediato os rumores
difundidos pela corrupta imprensa do hemisfério de que a ilha do Caribe
já estava prestes a cair nos braços de Tio Sam. A agência de notícias
Bloomberg chegou a postar a seguinte manchete:
Obama para Putin: ‒ Você perdeu, nós ganhamos!
Por sua vez, uma firme declaração de Raúl Castro enfatizou que Cuba não
fará concessões para melhorar as suas relações com o governo de
Washington.
Em seu pronunciamento, o presidente cubano também ressaltou que há ainda
um longo caminho a percorrer e ele deve passar necessariamente pelo fim
do iníquo embargo à pequena nação.
Neste momento, muitos se perguntam o que estaria por trás do
reconhecimento americano de Cuba. Por acaso isto seria uma verdadeira
mudança de atitude, que levará a relações de respeito para com o governo
da ilha, adversário dos EUA durante mais de 50 anos?
As sanções que o governo americano impôs à Rússia e à Venezuela, os dois
maiores aliados de Cuba, 48 horas após o reconhecimento, podem induzir a
uma reflexão que esclareça essa pergunta. Que razões podem levar um
governo ‒ ao mesmo tempo em que supostamente demonstra apreço e respeito
por um país ‒ a impor duras restrições a habitantes e empresas dos
maiores amigos do Estado que acaba de reconhecer?
Um elementar raciocínio somente poderá concluir que o que está por trás
destas decisões é o desejo de enfraquecer as três nações ao mesmo tempo
porque os dois países sancionados ‒ ao sofrerem restrições de natureza
comercial e industrial ‒ ficam limitados em seus recursos para ajudar a
nação amiga enquanto o pequeno país que acaba de ser reconhecido,
enfraquecido pela perda do apoio dos aliados, se torna ainda mais
exposto à sanha do gigante capitalista que ‒ depois de mais de 50 anos
de hostilidades ‒ vem ao seu encontro acenando com falsas promessas.
Esta parece ser a situação que os EUA preparam para Cuba com seu "abraço
de urso".
A estratégia não tem passado despercebida pelos cubanos, nem pelos
russos ou por vários analistas internacionais, muitos deles acreditando
que se trata de mais uma empreitada colonial dos neocons que hoje regem
a política de Washington e na qual eles deverão ser derrotados, como já
o estão sendo em outras frentes de batalha no Oriente Médio, na África e
na Ásia Central.
Levando em consideração o momento em que ocorreu, a decisão de
reconhecer Cuba faz parte de uma ampla estratégia que os ianques têm
desenvolvido nos últimos dois anos contra a Rússia, desde que este país
mostrou que não aceitaria com facilidade a derrubada de Bashar Al-Assad
e impediu com muita astúcia a total destruição da Síria.
Por não ter aceito a impossibilidade de derrubar o presidente sírio ‒
que parece desfrutar também do apoio da maioria da população ‒ Barack
Obama vem desde então vibrando uma intensa campanha política, econômica
e militar contra Vladimir Putin ao financiar a derrubada de seu aliado
na Ucrânia por meio da ação de milícias nazistas e a instalação de um
regime fantoche na fronteira do seu adversário, patrocinar a ação de
grupos opositores dentro do território russo, forçar a União Europeia a
aplicar injustificadas sanções assim como também impor duras restrições
a empresas e cidadãos deste país no Ocidente.
Os mais recentes atos desta política se deram nas últimas duas semanas
quando o petróleo ‒ que responde por cerca de 40% das divisas de
exportação da Rússia ‒ e o rublo sofreram quedas drásticas, o que
levantou clamores de uma possível crise financeira mundial.
De todos esses ataques, certamente o mais perigoso para a paz no planeta
é o crescente aumento do fornecimento de armas à Ucrânia e a recente
decisão do Congresso dos Estados Unidos de ajudar este país na luta
contra o que considera atos de hostilidade da Rússia.
Como consequência desses posicionamentos, os bombardeios perpetrados por
milícias neonazistas com armamento americano se intensificaram contra as
populações da região pró-russa de Donbass e teve início a edificação de
um enorme muro que deve delimitar a fronteira da Ucrânia com a Rússia,
construção que se soma a outros dois notáveis "muros da vergonha" ‒ na
Palestina e no México ‒ que os Estados Unidos e seus aliados erigiram
nos últimos tempos.
Ainda não se sabe como reagirá Vladimir Putin, hoje constantemente
demonizado pelos meios de comunicação apesar de sua postura certamente
muito menos belicosa que a do seu algoz Barack Obama.
Em sua mais recente entrevista para a imprensa estrangeira no país, o
presidente da Rússia deu algumas demonstrações de que está consciente da
verdadeira natureza destas ações colonialistas e predatórias quando
mencionou comentários publicados na imprensa ocidental de que “uma
região como a Sibéria não poderia pertencer a um só país”. Sua resposta
foi a seguinte:
- Para os americanos, é justo que eles possam tomar o Texas do México.
Como brasileiros, nós também nos acostumamos a escutar comentários
semelhantes sobre a Amazônia ‒ igualmente emitidos pelos gringos ‒ que
chegaram inclusive a publicar um mapa apontando-a como uma região sob
administração internacional.
Analistas como Paul Craig Roberts, Mike Whitney, William Engdahl e Peter
Koenig consideram que a estratégia americana ‒ embora pareça estar no
momento em nítida vantagem ‒ é bastante arriscada e proporciona a Putin
um enorme arsenal de contragolpes (blowbacks), que têm se constituído
nos últimos tempos na verdadeira nêmesis do império americano.
Atuando com muita prudência, Putin vem construindo sólidas alianças com
a China, a Índia, alguns países da Ásia Central e o Irã, assim como com
nações da América Latina ‒ especialmente o Brasil, Argentina, Cuba e a
Venezuela ‒ que podem desta forma começar a se desgarrar das teias do
império americano que os vem sufocando por mais de um século.
É por esta razão que comentaristas como Tony Cartalucci consideram que o
reatamento de relações com Cuba, sem um verdadeiro compromisso quanto ao
fim do embargo, deve ser interpretado como um mero ato de relações
públicas ‒ uma jogada para a plateia no bom estilo do nosso futebol ‒ ou
o gesto desesperado de um império em decadência.
Em qualquer circunstância, certo é que o destino da maior parte dos
países da América Latina ‒ ainda dependente e periférica em relação às
grandes potências ‒ está ligado a um conflito que se vislumbra num
futuro muito próximo.
De forma paradoxal, este confronto colocará um sistema de poder ainda
bastante forte mas já em franca decadência ‒ os Estados Unidos, a União
Europeia e seu braço armado da OTAN ‒ frente a novas organizações
multilaterais que vêm se formando diante da crescente ameaça do
militarismo americano: o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul), a Organização para a Cooperação de Xangai, que deve
receber novos membros em futuro próximo, a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a Aliança Bolivariana para as
Américas (ALBA), o Mercosul, entre outros.
Durante o período da Guerra Fria, a diplomacia americana foi capaz de
desenvolver inteligentes estratégias que levaram os Estados Unidos à
condição de maior potência mundial. Desde a administração de George W.
Bushinho ‒ com Colin Powell, Condoleezza Rice e a participação de Dick
Cheney e Donald Rumsfeld, que os iranianos apelidaram de "cowboys com
armas atômicas" ‒ o legado de George F. Kennan e dos chamados "homens
sábios" de sua diplomacia foi transformado numa política de terra
arrasada.
Há o risco de que "o império do caos" americano, epíteto cunhado pelo
jornalista Pepe Escobar, não encontre outro recurso ‒ senão a guerra ‒
para tentar evitar a débâcle que se aproxima.
Sérvulo Siqueira |