21 de janeiro de 2021

Um conto de Cinderela no coração das trevas

 

 

Nos anos 30 do século passado, logo após o crash da Bolsa de Valores de Nova York em 24 de outubro de 1929, a realidade econômica e social norte-americana era assustadora.

Em Hollywood, do outro lado do país, nem tudo parecia tão sombrio para a indústria do entretenimento do cinema que, com sua política de filmes baseada sobre vários gêneros dramáticos explorava o imaginário popular e oferecia uma válvula de escape à população com a produção de comédias de costume recheadas de intrigas no estilo dos filmes de Preston Sturges, esfuziantes musicais com cenas em piscinas, adaptados por Mervyn Le Roy e Busby Berkeley dos teatros da Broadway, operetas de Lubitsch, dramas de Frank Capra e William Wyler e filmes de aventura onde já pontificavam as nascentes estrelas de Gary Cooper, James Stewart e Clark Gable. Não poderiam faltar também os policiais de Howard Hawks (Scarface, entre outros) e as fitas de faroeste de John Ford onde a presença da violência, um elemento constante na história do país, era compensada pela vitória do mocinho no final da narrativa.

Fora das telas a realidade era bem diferente. Mergulhado na maior crise do sistema capitalista já vivida até hoje, o país apresentava um quadro social onde dezenas de milhões de trabalhadores, mais de 25% da força produtiva, não dispunham de qualquer remuneração. Os mais dispostos e com maior necessidade eram obrigados a viajar ilegalmente em vagões vazios de trens em busca de temporárias oportunidades de trabalho que não duravam às vezes mais do que alguns dias ou até mesmo horas.

Muito pouco desta realidade aparecia nos filmes que a indústria do entretenimento de Hollywood produzia e enviava para outras plateias do mundo que, em razão disto, passavam a ter uma visão rósea da recessão americana, uma crise do sistema capitalista que iria se repetir por diversas vezes no futuro. Com a sua imensa capacidade de criação de uma atmosfera de ilusão no espectador e de fabricação de um universo paralelo – onde a realidade transparece apenas de forma periférica – a usina de sonhos de Hollywood ganhou um poder desmesurado e se transformou em uma das alavancas essenciais para a imposição do império americano na segunda metade do século 20.

Quase cem anos se passaram e a realidade norte-americana apresenta hoje um cenário muito próximo aos anos 30 do século passado. Políticas econômicas neoliberais levaram à concentração da riqueza do país na mão de alguns poucos setores e à hipertrofia do capital financeiro incrustado em Wall Street. Guerras infindáveis consumiram trilhões de dólares de recursos da nação que poderiam ser investidos em programas sociais de combate à desigualdade, reformas de estradas e outras obras de infraestrutura, além da modernização do parque industrial que não foi exportado para outras regiões em busca de maiores lucros.

Em decorrência destas políticas – que foram executadas tanto por governos republicanos quanto por democratas – os Estados Unidos da América, que ostentaram durante todo o século 20 a condição de maior potência econômica e industrial do planeta, vivem nos dias de hoje uma crise gigantesca com imensos bolsões de pobreza e até mesmo de miséria espalhados por todo o seu território.

Embora o Partido Democrata, derrotado nas eleições presidenciais de 2016, atribua a Donald Trump a responsabilidade por esta situação, a maior parte das análises isentas considera que o agravamento da situação social de extrema desigualdade começou a se intensificar no período do governo de Bill Clinton (1993-2001), que já foi chamado por muitos de “o presidente democrata mais republicano dos Estados Unidos”. Durante o seu governo, uma época marcada por privatizações em larga escala, os bancos de Wall Street ganharam um poder ainda maior do que já tinham e muitos direitos sociais foram retirados dos trabalhadores norte-americanos.

Foi também durante o governo Clinton que o Deep State, uma espécie de governo paralelo que vem se formando na nação do norte há algum tempo se deslocou do Partido Republicano, onde havia se abrigado, para o Partido Democrata. O Deep State, que muitos chamam de Estado Profundo, chegou a ser designado há 60 anos, em seu discurso de despedida do cargo em 1961, pelo ex-presidente Dwight Eisenhower pelo nome de complexo industrial-militar. Desde então, este sistema de poder acrescido dos neocons ligados às políticas expansionistas e genocidas de Israel, vem se assenhoreando do estado ianque e pode-se dizer que hoje dita a sua política externa de forma integral.

Embora Donald Trump tenha se curvado plenamente aos ditames dos sionistas judeus, transferindo a representação dos Estados Unidos para Jerusalém – com o objetivo de sacramentar uma ocupação claramente ilegal – e subornado os ditadores da Arábia Saudita para que fizessem um acordo com o Estado judeu, não obteve a apoio que necessitava para se reeleger e foi obrigado a entregar o cargo a um adversário que não pôde comprovar com exatidão que foi eleito pela maioria dos cidadãos norte-americanos, dadas as inúmeras alegações de fraudes, os votos não computados ou contados em excesso e outras denúncias de irregularidades na votação e no processamento dos votos que nunca foram efetivamente analisadas.

A cerimônia de transmissão do cargo de presidente da república e de inauguração, do termo em inglês“inauguration”, do mandato de Joe Biden, marca uma nova era na história do país que – a despeito a aparente aura de normalidade apresentada pelos meios de comunicação, que permaneceram ao longo deste tempo sempre ao lado dos democratas – vive um momento de grande turbulência e onde, em razão de uma profunda divisão interna da população, se admite inclusive a possibilidade de eclosão de uma nova guerra civil.

A transmissão do cargo, protagonizada na ausência de Trump por seu vice, Mike Pence, numa cidade ocupada por vinte mil membros da guarda nacional com centenas de blocos de concreto pesando toneladas separando o público dos participantes da cerimônia, cercas elétricas e arames farpados impedindo a entrada da população, ocorreu como se todas estas medidas extraordinárias não tivesse sido tomadas, os conflitos internos não estivessem corroendo o tecido social e a contínua restrição dos direitos civis com a crescente censura dos meios de comunicação já não projetassem um espectro sinistro de ditadura sobre o país.

Neste cenário típico da sociedade de espetáculo de Guy Debord, membros de uma elite política corrupta desempenharam hipocritamente o seu papel como corifeus de um regime em decadência mas que ainda representa um grande perigo para paz mundial.

Enquanto isto, nas ruas de muitas cidades americanas partidários dos democratas e apoiadores de Donald Trump se agrediam com atos e palavras como demônio, nazista, defensor da Ku-Klux-Klan, espião de Vladimir Putin de uma parte ou socialista, comunista, anticristão de outro lado.

Se os políticos revelam oportunismo e falta de caráter, tanto os partidários dos democratas quanto os trumpistas demonstram desespero e até mesmo alguma insanidade, provavelmente em razão da falência do modelo econômico da sociedade em que vivem.

Entretanto, ainda mais grotesca e vergonhosa é a conduta dos meios de comunicação do Tio Sam em seu afã de bajular o novo presidente. Muitos comentaristas já pressagiam que, como dizia Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do nosso inesquecível Sérgio Porto, “um verdadeiro festival de besteiras” provenientes da mídia ianque irá inundar a terra de Marlboro.

Na nossa tradição cristã, existe sempre a tendência de esperar que uma energia vinda do universo transcendente e do plano espiritual possa nos resgatar em nossa miséria psíquica e espiritual de seres humanos.

Infelizmente, esta mesma postura não pode ser transferida para o universo da política, muito mais concreto e relacionado ao nosso dia a dia. No quadro atual do mundo de hoje, não temos condição de esperar que os líderes que atuam neste plano sejam efetivamente capazes de nos conduzir para fora do sombrio cenário em que nos encontrarmos. Se a parte mais qualificada da população não decidir tomar o destino da sociedade em suas próprias mãos, organizando-se em torno de princípios calcados sobre os fundamentos que fazem da raça humana uma espécie com um projeto de sobrevivência e evolução, ficaremos à mercê de fabricantes de ilusões ou do simulacro de um Walt Disney cibernético.

 

Sérvulo Siqueira

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