19 de novembro de 2023

Um mundo dividido e o grande capital acima de tudo

No dia 29 de outubro deste ano, cerca de três semanas após a invasão de Gaza pelo exército de Israel, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou em discurso:

Nós estamos nos defrontando com um ponto de inflexão na história. Um destes momentos em que as decisões que tomamos hoje irão determinar o futuro nas décadas que virão.

Se o ponto de inflexão é o momento em que uma função muda de tendência, consideremos, por exemplo, o momento em que numa estrada sinuosa o motorista corrige a direção do volante para acompanhar a mudança da curva da esquerda para a direita ou vice-versa.

O que estaria, então, querendo dizer o holograma Joe Biden, conhecido por suas gafes e comentário impróprios? Quais são as correções que a política norte-americana estaria fazendo diante das curvas que se apresentaram em seu caminho?
Talvez a recente visita do presidente da China, Xi Jinping, aos Estados Unidos, que acaba de ocorrer em São Francisco, possa indicar algumas das respostas a esta questão.

A atmosfera amigável do encontro, nublado pelas tradicionais declarações pouco apropriadas de Biden ao chamar o presidente da China de “ditador”, sugere que os chefes de estado das duas maiores forças econômicas do planeta possam estar tentando criar um clima mais harmonioso de negócios como uma alternativa aos sinais de recessão que o planeta já está vivendo.

A próxima visita do ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita à China com o objetivo de costurar um cessar-fogo na Faixa de Gaza dá a entender que o primeiro passo no sentido de estabelecer um acordo de convivência já está sendo dado e que a China deverá assumir – assim como o fez em relação à entente Arábia Saudita e Irã – o papel de mediador.

Os outros sinais que já estão sendo emitidos envolvem a proposta dos gringos de que a Autoridade Palestina – que hoje “governa” a Cisjordânia, se é que se pode usar esta palavra, porque Israel é quem manda na região – venha a assumir o controle da Faixa de Gaza e o desejo expresso de Biden de que os palestinos não sejam expulsos do enclave.
Certamente, os americanos estão acreditando que essas medidas vão aplacar o crescente sentimento contra os Estados Unidos no mundo.

No seio deste acordo, que estabeleceria uma maior harmonia entre os superpoderes, os EUA e a China poderiam reter as suas principais áreas de interesses – com Formosa permanecendo na órbita americana – enquanto o país asiático teria provavelmente maior liberdade para desenvolver o seu projeto da Nova Rota da Seda, também conhecido como Belt and Road Initiative.

Certamente haverá muitas arestas a serem contornadas nesta nova relação e pode-se questionar qual papel a China aceitaria desempenhar nesta nova ordem mundial, que certamente continuaria a ser gerida pelos Estados Unidos.
Outro ponto crítico de conflito seria certamente a possível permanência das sanções contra a China, que hoje se constituem num alicerce da política americana diante de seus adversários e, inversamente, o seu contraponto: o objetivo dos BRICS+ em descartar o dólar como a principal moeda de intercâmbio mundial.

Por outro lado, também seria importante conhecer a posição que a Rússia viria a ter em relação a este suposto acordo e qual seria o seu papel já que é certo que Washington buscaria uma aliança com a China como uma desforra contra o país eslavo por sua derrota na Ucrânia.

O que pensará Putin, que, com a eclosão da guerra de Israel contra o Hamas, foi deslocado de sua posição de principal protagonista da cena mundial assumida com a guerra da Ucrânia? Será que os chineses se deixarão levar pelas boas palavras dos ianques que não têm o hábito de cumprir a palavra que dão ou de respeitar os contratos que assinam? Certamente não escapará aos perspicazes chineses o consenso popular de que é melhor ser inimigo dos Estados Unidos do que seu aliado.

Quem parece ter compreendido com rapidez esta nova situação é um notório aliado dos gringos, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que declarou de imediato que há uma divisão do mundo sendo acertada entre os maiores poderes.
Embora o títere da Ucrânia não tenha elaborado sobre o assunto, é certo que – caso este acordo seja concluído – tudo indica que Zelensky poderá ficar pendurado no arame já que os dólares que espera e o armamento de que dispôs por algum tempo não mais chegarão com tanta facilidade.

A declaração de Biden também pode ser analisada sob outros ângulos.

Desde o dia 7 de outubro, quando ocorreu o ataque a Israel, alguns analistas vêm chamando a atenção para o fato de que foi o Mossad, serviço secreto de Israel, que criou o Hamas, como uma alternativa de poder ao Fatah, grupo político da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Em diversos artigos publicados, Michel Chossudovsky, Peter Koenig e Manlio Dinucci sustentam que o ataque do Hamas foi previamente acertado com Netanyahu, com o objetivo de fortalecer o seu governo no momento em que ele enfrenta uma feroz resistência de seus adversários no Parlamento, que se estendeu à opinião pública, com manifestações populares que se prolongaram por mais de 40 semanas consecutivas.

Os analistas acreditam também que que nenhuma parte deste acordo poderia ser concretizada sem um amplo consentimento dos Estados Unidos, que deseja retomar seu poder no Oeste da Ásia/Oriente Médio, após ter sido sucessivamente derrotado no Afeganistão, Iraque e Síria.

Estima-se que uma correta interpretação do discurso de Biden é a de que o ponto de inflexão referido deverá ser a completa mudança na atual política americana de contenção da China e o estabelecimento de uma parceria que criaria um novo estímulo à combalida economia mundial, com consequências imediatas para a solução ou o equacionamento de conflitos regionais tais como o que se desenrola no momento no Oeste da Ásia, o que evitaria o seu alastramento para uma escala maior, assim como um acordo na Ucrânia, que contemplaria a solução das demandas de segurança da Rússia.
Quanto aos habitantes de Gaza, assassinados aos magotes por seus carrascos sionistas, talvez lhes reste a miserável vida nas tendas em meio a um cenário deixado em ruínas pelas bombas de Israel, caso se chegue a um cessar-fogo e se consolide a proposta dos States e da União Europeia de entregar o poder à Autoridade Palestina, que não parece receber um grande apoio dos habitantes do local.

Com esta iniciativa, os americanos e europeus não fazem mais do que repetir o velho costume do colonialismo de impor sua vontade àqueles que consideram seus súditos, na mesma linha do que fizeram por 500 anos. Esta postura reflete a sua já conhecida conduta em relação aos palestinos, a quem parecem em muitos casos desmerecer como seres humanos.

Os antigos poderes coloniais consideram também a possibilidade de criar uma força de paz, na verdade uma nova força de ocupação, que seria composta por soldados dos países árabes. No entanto, esta ideia não está sendo bem recebida pelas nações de onde estes soldados viriam que, astutamente, não aceitam fazer o papel de vilão da história neste caso.
Se ainda assim esta proposta falhar, os habitantes de Gaza serão movidos para o deserto do Sinai – onde viverão em tendas ou ao abrigo das estrelas – após a sua completa expulsão do enclave.

Com a “solução“ deste intrincado problema, que se constitui na última grande luta de um povo contra a derradeira relíquia do estamento colonial do século 16, o grande capital entronizado nas corporações bancárias, nos monopólios e oligopólios, nos fundos de investimento e nas duas grandes potências reminiscentes ficará à vontade para implantar o Great Reset (A Grande Reestruturação), seu projeto colonial do novo milênio de criação de uma ordem econômica digital sem moeda, planejada pelo Fórum de Davos.

Sérvulo Siqueira

 

 

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