17 de março de
2011
Quase cem anos depois do início da Primeira Guerra Mundial, cujo
desdobramento de eventos mereceu da historiadora norte-americana Barbara
Tuchman o epíteto de “a marcha da insensatez”, políticos sem nenhum
escrúpulo, chefes militares ambiciosos e oportunistas de todas as
espécies parecem levar o planeta a um novo conflito global. Em meio a
uma imensa crise econômica, guerras civis disseminadas por vários países
do Terceiro Mundo, a destruição dos últimos recursos naturais da Terra e
a iminência de uma nova catástrofe nuclear, a falida Organização das
Nações Unidas (ONU) decide em sessão relâmpago ampliar ainda mais a área
de conflitos do planeta e declarar guerra a uma nação do norte da
África.
Curiosamente, a medida se dá menos de 48 horas depois da declaração de
um dos filhos do Coronel Khadafi de que este financiou a campanha
eleitoral do atual presidente da França e ocorre justamente por
iniciativa do próprio governo francês. Os meios de comunicação não
mencionaram a estranha coincidência entre a revelação deste conluio tão
escandaloso e a tentativa do governo cambaleante de Nicolas Sarkozy de
calar uma voz que possa fazer outras revelações sobre seu passado
nebuloso. Como sempre, também e mais uma vez de forma sinistra, o
pretexto para a declaração de guerra da ONU a um país pequeno são as
chamadas “razões humanitárias”, aqui como em todas as outras ocasiões
anteriores uma torpe justificativa para se apossar das gigantescas
reservas minerais do país.
Essa mesma organização – que se apresenta como a representante dos povos
da Terra mas que na verdade é apenas um braço político e militar dos
Estados Unidos – não dispõe de nenhuma autoridade moral para falar em
razões humanitárias, já que vem persistentemente se omitindo sobre essa
questão praticamente desde a sua criação em 1949, fazendo vista grossa
sobre o massacre dos palestinos e dos povos do Terceiro Mundo em suas
lutas de libertação contra os opressores, principalmente o império
americano na Ásia (Vietnã, Indonésia), América Latina (República
Dominicana, Porto Rico, Cuba, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Panamá,
Colômbia, Peru, Bolívia, Chile, Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai,
entre muitos outros), Europa Oriental (Grécia e a antiga Iugoslávia),
além da África, pilhada pelo colonialismo europeu e devastada por
guerras civis e genocídios como o ocorrido em Ruanda, entre os povos
hutu e tutsi, sem que esta Organização tivesse movido um dedo para
impedir os previsíveis acontecimentos.
Representa ao mesmo tempo uma clara interferência em um conflito interno
que não é um atributo exclusivo da Líbia mas que hoje se estende por uma
vasta região do mundo árabe onde ditaduras, em geral patrocinadas pelos
Estados Unidos, começam a ser contestadas por suas populações. Seria o
caso de se perguntar agora: a ONU pretende também intervir no Bahrein,
no Iêmen, no Marrocos, na Argélia, no Kuwait, na Jordânia, na Arábia
Saudita ou vai se limitar a aplicar mais sanções ao Irã por seu programa
nuclear?
Segundo os meios de comunicação corporativos, a resolução desta
desmoralizada organização foi adotada por dez votos a favor, com cinco
abstenções. O que esses veículos não informaram com o devido destaque –
como sempre – foram os países que sábia e prudentemente se abstiveram.
São eles: Rússia, China, Alemanha, Índia e Brasil. Justamente aqueles
que movem a economia mundial na atualidade. Por sua vez, a resolução foi
adotada pelas nações onde a crise econômica é maior e vem causando
desemprego e falência generalizada de empresas, o que mostra que a
guerra – hoje como em tempos passados – é o último recurso de quem já
perdeu quase tudo.
Um artigo de Manlio Dinucci no Il Manifesto, da Itália, publicado no
último dia 22 de abril, lança algumas luzes sobre os obscuros motivos da
intempestiva invasão da Líbia por algumas potências coloniais. À parte
as já conhecidas razões de ordem estratégica – reservas de petróleo
estimadas em 60 bilhões de barris e gás natural calculado em um bilhão e
meio de metros cúbicos – os grandes fundos soberanos do pequeno país
africano também teriam atraído o apetite dos abutres do novo
colonialismo americano-europeu.
Dinucci avalia que os fundos soberanos da Líbia, que são os recursos que
um país acumula em moeda estrangeira, podem superar hoje a soma de US$
150 bilhões, se forem considerados os investimentos externos do Banco
Central e de outros órgãos do governo. Segundo o analista, desde 2006 –
quando foram estabelecidos – os fundos soberanos líbios cresceram da
quantia de US$ 40 bilhões até as atuais provisões, mercê de
investimentos realizados em cerca de uma centena de companhias no Norte
da África, na Ásia, na Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul em
uma ampla variedade de negócios: corporações, bancos, imóveis, petróleo
e outros.
Para ilustrar a extensão das atividades em que a Líbia de Khadafi está
envolvida, Dinucci cita o seu próprio país, a Itália, onde grandes e
conhecidas empresas como a Finmeccanica e a ENI – além do time de
futebol Juventus de Turim – contam com a participação acionária de
recursos do país africano que está sendo agora invadido pela Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Desde 2004, o governo de Khadafi
vem mantendo um superavit na sua balança comercial com o estrangeiro da
ordem de US$ 30 bilhões, o que lhe possibilita uma política de
investimentos externos. A imensa disponibilidade de recursos criou um
grande problema político e administrativo para Khadafi porque permitiu
uma larga margem de corrupção entre seus ministros, muitos dos quais se
voltam no momento contra o antigo chefe e apoiam os autoproclamados
rebeldes. Para conter esse grande desvio de recursos públicos, o coronel
– utilizando o poder que mais de 40 anos de ditadura sobre o país lhe
facultam – determinou que US$ 30 bilhões de recursos provenientes do
petróleo deveriam se destinar “diretamente ao povo da Líbia”.
Ainda segundo Manlio Dinucci, mais do que a perspectiva de pilhagem dos
recursos energéticos da Líbia, o que atraiu a atenção imediata dos
países invasores foi o volume dos fundos soberanos. Segundo um telegrama
liberado pelo site Wikileaks, foi o próprio representante da Empresa
Líbia de Investimento, Mohamed Layas, quem informou diretamente ao
embaixador americano em Trípoli, em 20 de janeiro de 2011, que a agência
havia depositado US$ 32 bilhões em bancos americanos. Cinco semanas
depois, o Departamento do Tesouro americano “congelou” essas contas.
Segundo especialistas, trata-se da “mais alta soma de recursos já
bloqueada nos Estados Unidos”. Naturalmente, os americanos alegam que
esses valores “serão preservados com vistas a serem usados para o futuro
da Líbia” mas – conhecendo os procedimentos anteriores dos Estados
Unidos como quando “congelou” recursos do Iraque, que até hoje são
reclamados pelo governo do país islâmico – sabemos que isto nunca vai
acontecer. Certamente, esse capital representará por um tempo uma
injeção de saúde financeira na combalida economia norte-americana. Na
mesma linha desse raciocínio baseado na rapina, a União Européia, outra
economia em frangalhos, também “congelou” 45 bilhões de euros de fundos
soberanos deste pequeno país do norte da África.
Os contínuos protestos de mais de 50 nações da União Africana mostram
que essas medidas terão um impacto imediato no continente, especialmente
na região subsaariana, onde o coronel Khadafi planejava aumentar os seus
investimentos nas áreas de mineração, manufatura, turismo e
telecomunicações de 25 países. As inversões líbias foram cruciais para a
implementação do Rascom, o primeiro satélite de telecomunicações da
África, que entrou em órbita em agosto de 2010, permitindo que os países
do continente se libertassem do monopólio americano e europeu da
informação e pudessem economizar assim centenas de milhões de dólares.
De acordo com Dinucci, os investimentos da Líbia destinados à
implementação de três instituições financeiras da União Africana – o
Banco Africano de Investimento, sediado em Trípoli; o Fundo Monetário
Africano, baseado em Yaoundé na República dos Camarões e o Banco Central
Africano estabelecido em Abuja na Nigéria – serão ainda mais importantes
para o futuro do continente. Caso as potências coloniais da Europa e os
Estados Unidos sejam bem-sucedidos em seu plano de assassinar Khadafi e
derrubar o seu regime, as nações da África serão obrigadas a voltar ao
controle do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, tenebrosos
instrumentos da dominação neocolonial.
Neste sentido, o bloqueio dos fundos representa mais um golpe que os
Estados Unidos e seus aliados europeus impõem aos países do Terceiro
Mundo. Mudam-se os tempos mas não os costumes e a velha estratégia
colonial continua a não sofrer nenhuma alteração: se em outros tempos
brandia-se a “Bíblia em u’a mão e a espada em outra”, hoje os falsos
pregoeiros alegam “razões humanitárias” enquanto os recursos de um povo
sofrido são pilhados e obstaculizado o seu legítimo desenvolvimento.
Filho da África islâmica, o presidente norte-americano Barack Hussein
Obama poderia encontrar uma pausa em seus múltiplos afazeres – enquanto
bombardeia o Iraque, o Afeganistão e o Paquistão com mísseis e aviões
não tripulados – para refletir sobre o mal que está perpetrando contra o
seu povo de origem. Talvez em seu esforço para agradar os brancos – que
afinal, permitiram que se sentasse numa cadeira tão cobiçada – ele já
tenha perdido a noção de sua identidade. Ou, então, como observou o
próprio Khadafi durante a campanha eleitoral americana de 2008, para se
tornar mais “branco” do que os próprios brancos Barack
O’Bomb vá ainda mais além em
suas maldades.
Sérvulo Siqueira |