14 de dezembro de 2024 Notórios terroristas e honoráveis bandidos derrubam governo secular na Síria
No último dia 7 de
dezembro, duas organizações militares: a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) e Hayat Tahir al-Sham, e os governos dos Estados
Unidos, Israel, Turquia e Qatar, todos eles com um retrospecto de
praticantes de várias ações terroristas, derrubaram após um processo
rápido de insurreição, um estado secular na Síria.
Dadas as
circunstâncias em que a rebelião foi concebida e executada e pelos
prognósticos funestos que pressagia, esta é uma data que certamente
entrará para a história como um dos momentos mais sombrios que vivemos.
Deflagrada no final
de novembro, um dia depois do início do cessar fogo entre Hezbollah e
Israel, a operação durou menos de dez dias. No dia seguinte ao início da
insurreição, o presidente Bashar al-Assad viajou a Moscou para pedir
apoio e voltou de mãos vazias, entregue ao próprio infortúnio por seu
aliado Vladimir Putin.
Menos de uma semana
depois, os ministros da Rússia, do Irã – aliados da Síria – e da Turquia
– um dos planejadores e patrocinadores do complô – se reuniram em Doha,
no Qatar, país que também patrocinou a conspiração, e emitiram um
comunicado vazio em que defendiam a integridade territorial do país
invadido.
Em menos de 48 horas,
o governo secular de Bashar al-Assad, quase uma verdadeira ilha num
arquipélago de ditaduras fundamentalistas, caía fragorosamente na
madrugada de domingo.
Seus apoiadores,
Rússia e Irã, que em 2011 o haviam ajudado a derrotar a imensa horda de
jihadistas combatentes
islâmicos treinados e financiados pelos Estados Unidos, Arábia Saudita,
Turquia e várias outros países da região para instaurar um califado numa
nação de grande importância histórica e estratégica, não ofereceram
qualquer apoio ao governo sírio, tendo mesmo declarado que não moveriam
sequer um dedo para salvar o aliado de outrora.
Esta não parece ser,
no entanto, a primeira vez que a Rússia falhou em ajudar o seu aliado
sírio. Em 2020, no final de uma guerra de quase 10 anos, o exército
sírio – vitorioso em várias frentes – se preparava para expulsar os
terroristas de Idlib quando foi contido pela Rússia que o impediu de
tentar expulsá-los, tarefa que àquela altura parecia difícil mas não
impossível.
Em Idlib, na região
oeste do país, iria nascer o movimento
Hayat Tahir al-Sham,
remanescente do Estado Islâmico ‒ ISIS ou Daesh, que havia sido
praticamente extinto na área. Sob uma nova liderança, THS, como é agora
conhecido, se reconstituiu como uma franquia da al Qaeda, seu
antecessor.
Sob uma nova
bandeira, o movimento – categorizado como uma organização terrorista
pelas Nações Unidas, os Estados Unidos e a Rússia, entre outros países –
viria a ser liderado por Muhammad Al-Julani ou Muhammad al-Golani, dois
dos nomes de guerra pelos quais é conhecido.
Sua cabeça estava até
agora colocada a prêmio por 10 milhões de dólares pelo governo
americano, o que como vemos não impediu que este mesmo governo
contratasse e treinasse sua milícia de 30 mil terroristas composta por
quirquizes, chechenos, líbios, uzbeques, até mesmo ucranianos e na qual
os sírios são minoria, para derrubar Bashar al-Assad.
Num país enfraquecido
por muitos anos de guerra e a aplicação de sanções por parte dos países
ocidentais, além do roubo de seus recursos naturais do trigo e do
petróleo por parte dos Estados Unidos, os milicianos do THS encontraram
um terreno suave por onde transitaram sem enfrentar qualquer resistência
do exército sírio, que se rendeu ou foi comprado por seus agressores
para não entrar em ação.
Uma miríade de
interpretações têm sido levantada por
observadores e comentaristas de todos os lados sobre a inesperada
e vertiginosa rapidez com que os fatos se desenrolaram e a ausência de
reação do exército do país invadido e de seus aliados.
Enquanto a imprensa
corporativa, como de hábito a serviço dos interesses imperiais dos
americanos e dos genocidas de Israel, se empenha denodadamente em
demonizar a figura de Bashar, os analistas simpáticos à causa síria e
palestina se esforçam em explicar a súbita traição de Putin a seu aliado
numa hora tão dramática. A extrema parcialidade de suas argumentações
revela a cada vez maior falta de independência tanto da imprensa
corporativa quanto alternanativa. No entanto, no aparente pensamento
único que tem determinado a conduta de apoiadores e adversários de
Bashar al-Assad, algumas vozes independentes ofereceram informações que
não se enquadram no mainstream
da direita ou da esquerda.
A jornalista Vanessa
Beeley, que há mais de dez anos cobre a guerra e vive no país, pergunta
por que o discurso de despedida de Bashar al-Assad, gravado antes de sua
partida para o exílio, ainda não foi divulgado. Quem o teria impedido de
divulgá-lo? Certamente não foram os terroristas do HTS, mesmo porque
ainda não haviam chegado a Damasco!
Forçada também a
abandonar a Síria após a sua casa ter sido invadida, ela relata alguns
dos mais de 350 bombardeios que as aviações israelense e americana já
executaram no país sobre os centros científicos em Damasco e áreas do
campo nos arredores da capital, o porto mediterrâneo de Latakia,
inclusive os navios ancorados no local, assim como a destruição de todos
os sistemas de defesa aérea e aeroportos militares, com o objetivo de
dizimar qualquer possibilidade de resistência dos habitantes da nação no
momento em que sionistas de Tel Aviv concluírem a ocupação da terra.
A Síria é certamente
um dos países mais bombardeados em toda a história. Segundo um
levantamento realizado entre 2014 e 2016, o número de missões da
coalizão liderada pelos Estados Unidos na Síria e no Iraque durante o
período foi da ordem de 111.410. Isto representa uma média de 147
missões por dia (em um período de 755 dias).
Segundo o
Departamento de Estado dos EUA mais de 8.300 bombardeios foram lançados
contra a Síria. De acordo com a mesma fonte, 31.900 alvos na Síria e no
Iraque foram atingidos por aviões de guerra norte-americanos.
Tanto os países que
comandaram a operação vitoriosa nas últimas semanas na Síria quanto os
antigos aliados do deposto Bashar al-Assad apresentam um retrospecto
recente de ações que visam ampliar o seu próprio território.
Os Estados Unidos,
com suas quase mil bases militares espalhadas por todo o mundo, se veem
como a nova encarnação do império romano e em nome deste projeto,
chamado de Destino Manifesto,
têm invadido e ocupado dezenas de países nos quatro cantos da terra.
Por sua vez, Israel,
se acredita o povo escolhido de Deus e em nome desse messianismo jamais
concretizado, vem praticando toda a sorte de crimes contra o povo
palestino a quem parece desejar extinguir ou expulsar do território que
quer ocupar, para constituir uma vasta região do Oriente Médio que vai
do Nilo ao Eufrates e que compreenderia partes dos territórios que hoje
compõem a Síria, o Iraque, a Arábia Saudita, a Jordânia e o Líbano.
Neste sentido, o
atual primeiro-ministro de Israel chegou a mostrar na Assembleia das
Nações Unidas um mapa com os contornos geográficos do chamado
Grande Israel.
A Turquia, por seu
turno, presidida no momento por um adepto da organização fundamentalista
Irmandade Muçulmana, ocupou
no passado territórios anteriormente pertencentes à Grécia, à Síria e a
Chipre. Recep Tayyp Erdogan foi um dos patrocinadores da invasão da
Síria em 2011 por terroristas salafistas e proveu fundos para o
movimento quando os Estados Unidos deixaram de financiar as suas
operações.
Muitos observadores
consideram que entre os planos grandiloquentes de Erdogan está o de se
tornar um novo sultão, restaurando o império otomano do passado.
Entre aqueles que
foram vencidos com a derrubada de Bashar, a Rússia tem sido acusada,
depois da ascensão de Vladimir Putin ao poder, de pretender restaurar a
União Soviética, da qual o atual presidente, antigo funcionário da KGB,
declarou ter uma boa lembrança.
A campanha militar
que desencadeou na Ucrânia há quase três anos já conquistou uma grande
parte do território do Donbass, habitado em sua grande maioria por
russos étnicos. Logo após o golpe militar na Ucrânia apoiado pelos
Estados Unidos em 2014, a Crimeia, após um rápido referendo, foi
incorporada à Rússia.
Comenta-se que a
Bielorrússia deverá se incorporar no futuro ao território russo, assim
como a Transnítria, uma região de maioria russa que é também
reivindicada pela Moldávia.
Quanto ao Irã,
trata-se de um país cujos objetivos expansionistas são mais de natureza
religiosa e cultural. Fruto de um movimento ocorrido nos anos 1970, a
Revolução Islâmica almeja a disseminação por todo o imenso mundo
islâmico da doutrina xiita. Para alcançar seus projeto apoia-se na sua
condição de continuador do legado do império persa, umas das grandes
civilizações do passado.
Vivemos numa época
regressiva, em que muitas conquistas sociais obtidas pela luta dos povos
nos últimos dois séculos têm sido sistematicamente sabotadas e
retiradas, com o retorno do velho colonialismo e sua estratégia de
dominação cultural e ocupação de território. Os sonhos de libertação dos
combatentes do passado foram expropriados por um sofisticado sistema
tecnológico e vendidos como um produto de consumo para bilhões em toda a
terra.
Sérvulo Siqueira
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