14 de abril de 2018
Piratas do espaço na sociedade do espetáculo
Inglaterra: o império onde o sol nunca nasce.
(Ulisses, James Joyce)
A história não deixará de registrar que na noite de ontem – uma
sexta-feira, 13, deste mês de abril – um presidente da república de um
país, que vem sendo sucessivamente derrotado nas últimas guerras que
empreendeu, anunciou pela televisão um ataque a uma nação por motivos
que não foram explicados até hoje e que dificilmente poderão ser
cabalmente demonstrados.
Os países agressores alegaram que agiam em represália a um ataque com
armas perpetrado pela Síria contra uma população indefesa em um
território ocupado por terroristas a mando dos Estados Unidos,
Inglaterra e França. Por sua vez, as autoridades sírias afirmam que o
objetivo do ataque se deve a uma verdadeira queima de
arquivo, ou seja, à intenção desses países de eliminar os
indícios de que o ataque com armas químicas foi executado por seus
aliados.
A justificativa para este ataque bélico é irrelevante porque igualmente
pouco tem importado à ordem jurídica internacional – que vem sendo
persistentemente violada − o fato de que a Inglaterra venha mantendo
dois cidadãos russos sob sequestro há mais de um mês com o argumento de
que foram envenenados com uma substância química inoculada por seu país
de nascimento, sem no entanto apresentar qualquer prova.
Na verdade, vivemos hoje numa atmosfera suprarreal, ou de realidade
paralela, em que a qualquer momento um ataque pode ser feito a uma
pessoa, instituição ou nação sem nenhuma razão aparente e em seguida
desencadeado um processo de calúnias e difamações que criarão a
justificativa para a sua completa eliminação, em um processo semelhante
àquele descrito por George Orwell no livro
1984 e mostrado neste vídeo:
Do ponto de vista da política internacional, o ataque dos Estados Unidos
e das antigas potências coloniais, Inglaterra
e França, contra a capital síria sob um pretexto que está longe de ser
verificado constitui um claro ato de pirataria remanescente de uma
conduta que foi praticada durante séculos.
Ao mesmo tempo em que marca o retorno da velha política da canhoneira,
esta ação precipitada revela a fragilidade dos governos que a
conduziram, hoje sob pressão de suas populações e, como no caso de
Donald Trump, à mercê dos grupos políticos ultraconservadores pró-Israel
que controlam o poder.
De outra parte, o ato truculento esgota todas as possibilidades de
negociação que vinham sendo conduzidas tanto pela atualmente
enfraquecida Organização das Nações Unidas quanto por sua agência
encarregada do controle e eliminação de armas químicas.
Enquanto no plano militar suas repercussões são praticamente
nulas porque os objetivos não foram alcançados – uma vez que dos 103 mísseis lançados pela coalizão neocolonial
71
foram interceptados pela defesa síria – no plano político e diplomático as consequências poderão ser
desastrosas para a paz mundial.
Estas potências imperiais não vivem um momento muito feliz em sua
história: a Inglaterra e a França são países que já desfrutaram de
grande poder no passado e há algum tempo se limitam a seguir a liderança
dos Estados Unidos; por sua vez, os ianques até recentemente ainda comandavam a economia
mundial, posição que hoje começa a ser assumida de forma decisiva pela
China.
Tudo indica que o episódio de hoje representa uma tentativa desesperada
desses países que patrocinaram a invasão da Síria há sete anos – e foram
impedidos em seu intento − no sentido de recuperar um poder que vem
perdendo de forma acentuada e que acaba de sofrer um severo golpe com
sua derrota nesse país do Oriente Médio.
A história registra exaustivamente que por séculos flibusteiros,
corsários e bucaneiros da Inglaterra e da França dominaram os mares e
pilharam inúmeros povos e nações. Nascido a partir de uma colonização
inglesa, os Estados Unidos a princípio se insurgiram contra o domínio
dos europeus mas principalmente a partir do século 20 vêm praticando
esta forma de conquista e submissão de povos mais fracos com o objetivo
de se apossar de suas preciosas matérias-primas.
Na condição de legítimos herdeiros dos piratas do passado que assolavam
os mares e as populações da costa, os atuais chefes dos estados
neocoloniais já não fazem mais uso da via marítima mas − com os mesmos
objetivos − exercem sua ação destruidora com mísseis e bombas lançadas
por aviões de combate.
Ainda que de forma lenta, esta situação já vem se alterando com a
progressiva conscientização de muitos cidadãos dos países da América
Latina, Ásia e África. A partir da instalação do socialismo real na
Rússia, União Soviética, Vietnã e Cuba, esta luta ganhou um novo ímpeto
e – embora o modelo socialista tenha desaparecido na Rússia e na China –
as lutas anticoloniais persistiram e levaram ao fortalecimento de uma
aliança que ameaça resistir nos dias de hoje ao velho e decadente
colonialismo dos últimos 300 anos.
Mergulhados em enormes conflitos políticos e sociais devido ao fracasso
de seu sistema econômico, aos Estados Unidos somente parecem restar
ações como a que protagonizaram no dia de ontem com a encenação de uma
diplomacia de pantomima e a produção de fogos de artifício na noite de
Damasco que, embora não deixem de ter um enorme efeito letal, não
levarão a nenhuma consequência positiva na guerra da Síria onde – após
seis anos de contínua devastação do país – já foram derrotados tanto no
campo de batalha quanto nos corações e mentes dos habitantes daquela
nação do Oriente Próximo.
O ataque “de um único disparo” – como foi chamado pelo comando militar
norte-americano – “destinado a enviar uma mensagem forte ao presidente
Bashar Al-Assad” e que teve dois terços de seus mísseis
interceptados pela defesa do país poderá na verdade produzir um efeito
contrário ao desejado e levar àquilo que o historiador Chalmers Johnson
chamava de blowback , um
revide com consequências funestas para os agressores.
Como um país que acaba de emergir de um processo penoso de pilhagem e
desintegração, a Rússia começa a perceber que não pode mais levar a
sério esses países agressores e já afirmou que se reserva o direito de
retaliar na mesma proporção. Muitos analistas já especulam sobre como o
urso russo – uma vez, tendo perdido sua paciência – poderá utilizar sua
superioridade bélica em muitos campos para aplicar um corretivo neste
comportamento irresponsável de Theresa May, Emmanuel M(i)cron e Donald
Trump, que certamente representam a pior geração de estadistas desses
países em muitos e muitos anos.
Por outro lado, esta flagrante quebra da ordem internacional impõe uma
enérgica intervenção da ONU, cuja posição moderadora foi claramente
desprezada. Se isto não ocorrer – o que é perfeitamente possível já que
este organismo vem se omitindo de forma contínua – existe a
possibilidade do recurso sistemático à força, que poderá levar a uma
conflagração mundial.
Esta situação não interessa especialmente à China e à Rússia porque –
dada a contínua decadência da economia norte-americana – é necessário
que tenhamos ainda algum tempo de relativa estabilidade política e
econômica para que esses efeitos se consolidem e venhamos a chegar,
finalmente, a uma situação multipolar no planeta, com os Estados Unidos
perdendo a sua condição de potência hegemônica.
A paz no nosso planeta, já fragilizado pela destruição de seus recursos
naturais, depende hoje da perda de poder do império norte-americano e de
sua imensa capacidade de aniquilação.
Sérvulo Siqueira |