11 de janeiro de
2015
Lembra de Jenin? E Fallujah?
Repórter: ‒ O que o senhor pensa da civilização ocidental?
Mahatma Ghandi: ‒ É uma boa ideia.
Desde há algum tempo, historiadores, sociólogos e pensadores vêm
observando o progressivo declínio em que mergulha o Ocidente, com a
contínua perda dos seus mais elevados valores. Entre muitos outros, Eric
Hobsbawm e Marc Ferro já consideraram que a grande era do Atlântico das
navegações, das conquistas e do longo período do colonialismo está
chegando ao fim. A atual recessão da Europa tende a agravar ainda mais o
quadro, especialmente quando muitos países da União Europeia voltam a
recorrer às guerras coloniais, com resultados catastróficos para a paz
mundial.
Durante mais de cinco séculos, muitos povos da Europa – e depois os
Estados Unidos – invadiram dezenas de nações nos quatro cantos da terra,
massacraram de forma sistemática a sua população para se apossar da
riqueza da terra e utilizá-la em proveito próprio.
Eventualmente, os nativos das terras arrasadas se vingavam com igual
violência – embora de modo muito menos organizado – e quando isto
acontecia a consciência europeia se declarava chocada com o fato.
Os
ataques à revista claramente islamofóbica Charlie Hebdo se inscrevem
neste quadro de decadência econômica e de crescente belicismo da aliança
da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) comandada pelos
Estados Unidos.
No
momento em que novos atos terroristas voltam a ocorrer, muitos europeus
se dão conta de que a violência que seus governos vêm patrocinando há
tanto tempo não ocorre apenas no mundo exterior – na fronteira da
barbárie – mas já está instalada em seu próprio território.
Poucos se lembram de que ações como as recentemente ocorridas em Paris
são apenas uma pálida retaliação, um contragolpe – blowback, nas
palavras do historiador Chalmers Johnson, que escreveu muitas páginas
sobre o assunto – de alguns poucos loucos e fanáticos, treinados e
armados na maioria das vezes pelos que agora se apresentam como suas
vítimas.
Como
os meios de comunicação não se dispõem – e, na verdade, nunca o fizeram
– a fornecer informações que esclareçam a questão, recorrendo de fato a
uma forma de terrorismo midiático, os cidadãos ficam privados de uma
correta análise sobre as causas que determinaram estes atos tão
violentos.
Fugindo de forma torpe à sua responsabilidade social e moral, os meios
de comunicação exploram o acontecimento sob o ângulo mais
sensacionalista e emocional e deixam de informar, por exemplo, que a
chamada "guerra de civilizações" nunca fez parte do ideário do mundo
islâmico – a não ser quando fomentada pelos próprios ocidentais – e que
sua ideologia tem origem em orientalistas como Bernard Lewis, tendo sido
mais tarde popularizada por Samuel Huntington em um contexto diferente.
Depois da queda da União Soviética, os Estados Unidos, na condição de
única grande potência remanescente da Guerra Fria, se utilizaram do
conceito para um vasto plano de dominação do Oriente Médio a serviço de
suas ambições imperiais e de Israel, seu principal aliado.
Praticaram então toda a sorte de iniquidades que podem ser
caracterizadas – dado o modo planejado como foram praticadas – como uma
forma de genocídio, bombardeando e aniquilando extensas regiões na
Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Iêmen, Líbia e Síria. Seus
cúmplices do estado judeu têm feito o mesmo nos territórios palestinos
que vêm ocupando ilegalmente de maneira sistemática, mercê da
transformação das vastas áreas tomadas em um verdadeiro campo de
concentração, de onde não se pode entrar ou sair sem o consentimento dos
israelenses.
Na
sua condição de instrumento servil dos interesses do capitalismo
americano e hebreu que – como sabemos – domina a grande parte dos meios
de comunicação no Ocidente, os órgãos de informação têm feito vista
grossa diante de outros massacres que tiveram uma dimensão muito maior
do que o que foi executado em Paris na semana passada.
Nos
primeiros dias do mês de abril de 2002, cerca de 150 tanques israelenses
entraram no campo de refugiados de Jenin, onde viviam mais de 15.000
pessoas. Depois de destruir com poderosos tratores todas as casas, o
Exército de Defesa de Israel (IDF, por sua sigla em inglês) teria matado
segundo algumas fontes em torno de 500 palestinos. Uma investigação da
Organização das Nações Unidas, embora tenha afirmado que o número de mortos foi menor, concluiu
que ocorreu efetivamente um massacre no local.
Seria o caso de se perguntar: se por acaso, a vida de um palestino vale
menos do que a de um israelense? Segundo a lógica do estado judeu, um
soldado do Exército de Defesa de Israel vale de fato 1000 palestinos e é
segundo este critério que o IDF tem praticado os seus bombardeios e
aniquilado milhares de vidas dos habitantes de Gaza.
No
momento em que os franceses choram a perda dos seus cartunistas, quantos
se lembram de que a França tem estado sempre ao lado das políticas
genocidas de Israel e vem apoiando os jihadistas que no momento destroem
o Iraque, o Afeganistão, a Síria e a Líbia?
Entre abril e dezembro de 2004, 36.000 casas dos 50.000 lares – assim
como 60 escolas e outras 65 mesquitas e templos da cidade de Fallujah –
foram destruídos pelo exército americano, depois que cerca de 200
habitantes ousaram desafiar um toque de recolher imposto pelos
ocupantes. Estima-se que em torno de mais de 30.000 pessoas tenham
perecido na rebelião, abatidas por armas que incluíam o uso de fósforo
branco, proibido por convenções internacionais. Atualmente, cerca de
150.000 sobreviventes do massacre ainda vivem em tendas nos arredores da
cidade, já que a reconstrução do lugar – prometida pelos americanos –
somente contemplou uma minoria de privilegiados e aliados.
Será
que o massacre de uma cidade com mais de 300.000 habitantes não tem
nenhum valor diante do ocorrido? Certamente, toda vida humana perdida de
forma absurda e inútil deve ser lamentada mas nem por um momento um
pensamento semelhante teria ocupado a mente de todos aqueles que
proclamam Je suis Charlie, esquecendo-se que o jornal tocou durante
muitos anos de forma ferina e cáustica em feridas de um povo humilhado
por
uma enorme destruição de sua cultura e seus entes queridos como
os argelinos, agora apontados como os assassinos?
Um
novo 11 de setembro?
Um
perigoso irracionalismo e um soturno grau de manipulação da opinião
pública parece envolver os violentos episódios que vêm ocorrendo em
Paris no momento.
Os
trágicos acontecimentos não conseguem ser explicados de forma coerente
porque, embora os meios de comunicação tenham responsabilizado
inicialmente de forma unânime os jihadistas muçulmanos que a OTAN e os
Estados Unidos treinaram e armaram para lutar na Síria contra Bashar-Al
Assad, as características da operação apontam para uma ação semelhante
às que os Estados Unidos realizaram depois da 2ª Guerra, conhecida como
projeto Gládio, que visava responsabilizar os comunistas por
assassinatos seletivos executados em solo europeu.
Por
outro lado, a clara sonegação de informações por parte do governo – em
nome de uma hipócrita política de segurança – impede que se revele a
verdadeira situação dos chamados terroristas que supostamente atacaram o
jornal Charlie Hebdo. Várias informações vazadas para alguns jornais
indicam que eles foram criados pelo estado francês, armados e treinados
para serem utilizados como cães de guerra em várias frentes coloniais no
Oriente Médio. Mais comprometedor ainda é o fato de que os órgãos de
segurança tinham até conhecimento de que um ataque estava em vias de ser
perpetrado.
Também indicador de que uma ampla manipulação está sendo fabricada foi a
recente decisão do parlamento francês de reconhecer o estado palestino e
as declarações de François Hollande de que pretende colocar um fim no
processo de sanções contra a Rússia, decisões que certamente não são do
agrado dos Estados Unidos e de Israel.
É
possível, considera o analista Thierry Meyssan, que neste caso
Washington tenha decidido ressuscitar a velha operação Gládio – que
tantos resultados favoráveis trouxe para Tio Sam na segunda metade do
século 20 – e, uma vez que a ameaça comunista parece ter sido
definitivamente banida, nada melhor do que assustar os europeus com o
espectro do terrorismo islâmico.
De
outra parte, a natureza da operação não parece indicar que se trata de
fanáticos muçulmanos mas de assassinos profissionais e então – dada a
competência já demonstrada em outras ocasiões – o Mossad, serviço
secreto de Israel, também pode ser considerado como um possível suspeito
dos crimes.
Em
qualquer circunstância, como já aconteceu em outras ocasiões, é muito
pouco provável que os verdadeiros responsáveis sejam um dia julgados e
condenados porque em toda a cortina de fumaça armada, os assassinos já
teriam sido definidos de antemão e devidamente silenciados.
A
grande pergunta – que percorre praticamente todos os comentários dos
mais argutos analistas – remete à velha questão latina sobre quem deve
tirar proveito de todos estes crimes e, nesta situação, a resposta é
inequívoca: os Estados Unidos e sua estratégia de criação de um mundo em
permanente conflito.
Com
seu governo mergulhado numa crise econômica, política e social sem
precedentes na história norte-americana, desacreditado perante quase
todos os povos da face da terra, dominado por uma camarilha de fanáticos
conservadores que não encontram nenhum outro recurso senão a guerra e a
destruição de adversários e enfrentando já crescentes protestos em seu
próprio território, o atual presidente americano Barack Obama está sendo
visto como uma marionete no poder e parece não saber escapar às pressões
do círculo mais fechado de poder em Washington.
Os
atentados em Paris contra o jornal racista Charlie Hebdo podem oferecer
à sua estratégia de dominação o já batido mas sempre eficaz expediente
de “dividir para governar”, na medida em que ações como a ocorrida no
último dia 7 de janeiro em Paris têm a possibilidade de provocar um
conflito interno de grandes proporções na França além de, naturalmente,
impedir o reconhecimento do governo palestino e abortar o projeto de
Hollande de interromper as sanções à Rússia.
Neste caminho tortuoso, Barack O’Bomber se defrontará com uma parte da
população francesa que neste momento deve estar refletindo sobre as
terríveis consequências que está sofrendo em decorrência das políticas
adotadas pelos catastróficos governos de Nicolas Sarkozy e de François
Hollande de submissão ao diktat de Washington e que levaram a França à
crise em que se encontra.
Com
a iminente vitória do partido Syriza* na Grécia nas próximas eleições, há
a perspectiva já anunciada por algumas posturas já assumidas na Hungria,
na Bulgária e na República Tcheca – além de declarações de altos
dirigentes na Alemanha – de que o monolitismo da União Europeia esteja
chegando ao fim.
Também na França, o crescente fortalecimento da Frente Nacional de
Marine Le Pen – com posições à direita, contra a imigração, e à
esquerda, opondo-se às recessivas políticas impostas pelo FMI e os
Estados Unidos – ameaça a reeleição de Hollande. Sabe-se também que o
próprio governo francês havia pedido à direção do Charlie Hebdo para
atenuar as críticas ao Islã e que quase 40 % da população do país não
apoiava a linha editorial do jornal.
Como
sabemos, a destruição do World Trade Center foi utilizada pelos Estados
Unidos para desencadear uma ampla guerra ao terrorismo, que trouxe
consequências funestas para a humanidade. Procurando descartar qualquer
discussão mais aprofundada sobre a verdadeira autoria dos atentados –
uma vez que centenas de testemunhos contradiziam a versão oficial – o
então presidente americano George W. Bushinho cunhou na época o bordão
maniqueísta: "Ou você está conosco ou contra nós"!
Como
a sociedade francesa – não tão homogênea e certamente muito mais
diversificada do que a americana – não conseguirá alcançar o monolitismo
que possibilitou o apoio de que George W. Bushinho desfrutou durante
algum tempo, a estratégia do império americano visa agora dividir o país
para enfraquecê-lo e continuar a desfrutar do aval dos medíocres
governantes – como Sarkozy e Hollande – que têm ocupado a cadeira
presidencial da França nos últimos tempos.
Segundo as informações de que dispomos até o momento, os atentados de
Paris podem ter sido fabricados para criar um conflito interno de
grandes proporções no país europeu, enfraquecer as posições daqueles que
pretendem afastá-lo da órbita da hoje decadente política dos Estados
Unidos e envolver toda a União Europeia, que já começa a mostrar
fissuras abertas por países que se recusam a continuar praticando uma
política recessiva contrária aos interesses da maioria da população.
Quanto aos assassinos de Paris, eles – como o psicopata de M - O Vampiro
de Dusseldorf, de Fritz Lang – não conseguem escapar à sua sina, já que
foram feitos para matar.
Sérvulo Siqueira * Acrônimo de Coligação de Esquerda Radical, em grego, que ganhou as eleições parlamentares em 2015, entronizando como primeiro-ministro seu líder, Alexis Tsipras. O Syriza não conseguiu implementar suas políticas sociais de melhor distribuição de renda para a população e de renogociação da dívida pública. Sua derrota em 2019 representou mais um fracasso da esquerda que levou à formação de uma aliança de direita que hoje governa a Grécia. (Atualizado em dezembro de 2023) |