Trindade, Curto Caminho Longo

 

Direção, Roteiro a Produção: Luiz Keller e Tânia Quaresma. Fotografia e Câmera: Tânia Quaresma, Gilberto Otero, Antônio Luiz Mendes Soares, Lúcio Kodato. Som Direto, Montagem, Edição e Mixagem: Walter Goulart. Produção executiva: Nara Cardoso, Alfredo Guzman e Roger Sideris. Distribuição: Embrafilme. Brasil, 1978.

 

“Isso é apenas o início". Assim Luiz Keller – co-produtor e co-diretor de Trindade, Curto Caminho Longo – define o filme que realizou durante dois anos com Tânia Quaresma, destinado a documentar os sons e as imagens brasileiras. A idéia básica do projeto nasceu em fins de 1975, com o encontro entre Tânia, ex-jornalista, fotógrafa, cineasta, diretora do documentário Nordeste: Cordel, Repente, Canção, e o músico Luiz Keller, cantor e compositor, ex-integrante da Brazuca de Antônio Adolfo. Tânia vinha da realização de Nordeste – como Trindade, também uma produção independente que envolvia filme a disco – e Luiz acabava de retornar de uma viagem de cinco anos pela Inglaterra, França, Holanda, Suécia, Suíça, Espanha, Portugal e Libéria, onde trabalhou como cantor e instrumentista.

Isoladamente, os dois haviam cultivado uma idéia: criar um movimento que agrupasse os músicos brasileiros e lhes desse trabalho, prestígio e liberdade de criação. Com a fusão de duas experiências diferentes, nasceu um projeto que pouco a pouco foi assumindo forma definida: gravar, com a melhor técnica e nos melhores estúdios, temas de músicos brasileiros, por eles compostos, interpretados e arranjados; ilustrar esses temas com  imagens do Brasil, imagens fortes da gente, da terra e da vida em diversas regiões do País; promover shows com esses instrumentistas; editar em disco seus temas e documentar suas vidas, seu trabalho, sua situação. Em outras palavras, na difícil selva da música brasileira, permanentemente assolada pela competição desleal com o produto importado pela falta de recursos e pelas falhas básicas de estrutura de mercado e divulgação, "era necessário abrir uma grande clareira em som, imagem e palavra, onde a música e os músicos possam se movimentar".

Com o objetivo de deflagrar um movimento, “uma atitude dos próprios músicos que, vendo que é possível, partem para o trabalho por eles mesmos", foi fundada a Trindade Produções Artísticas. Esta produtora, estabelecida como uma sociedade civil de fins não lucrativos, funciona como uma fundação: o dinheiro gerado pelos shows, pelo filme e através da venda de discos reverte, em primeiro lugar, para os músicos participantes. O restante é, por cláusula contratual, reinvestido em atividades culturais futuras. Tendo como sócios Luiz Keller, Tânia Quaresma e Nara Cardoso, Trindade, como eles explicam, ''começa mesmo quando termina".

O projeto principiou a se tornar realidade em fevereiro de 76, com as filmagens do carnaval carioca, e seu primeiro segmento será concluído por ocasião do lançamento do filme, através da Embrafilme, juntamente com um grande show ao ar livre. A pré-estréia nacional foi realizada no dia 20 de dezembro último, no cinema Novo Pax, em sessão à meia-noite.

Nesses dois anos, a equipe de Trindade deslocou-se por todas as regiões do País e promoveu os mais diversos shows em diferentes lugares. Em julho de 76, nos estúdios Vice-Versa, em São Paulo, Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas, Frederyko, Luís Alves, Jamil Joanes, Paulinho Braga e Márcio Borges gravaram os primeiros seis temas. Pouco depois, foi a vez de Antônio Adolfo, Franklin, Elber Bedaque, Luiz Cláudio, Luizão e Geraldo Azevedo. Em setembro de 77, Trindade montou no posto Leonardo Villas-Boas, no Alto Xingu, um insólito espetáculo; a exibição do Ballet Stagium, dançando para uma platéia de mais de 800 índios o tema de Egberto Gismonti, Conforme a Altura do Sol/Conforme a Altura da Lua. Em novembro do ano passado, Hermeto Paschoal e Seus Músicos tocaram em plena feira de Caruaru, num espetáculo registrado em som direto por Trindade. Já em setembro do mesmo ano, no dia 17, tinha sido iniciada uma série de shows no cine Ópera, do Rio, reunindo à meia-noite e meia o grupo Index e os músicos/compositores Edu Lobo e Nivaldo Ornellas, com seus conjuntos. No mês seguinte, dia 14, um novo show teve lugar no Ópera, com Wagner Tiso, Joyce e Maurício e o grupo Azymuth. No dia 12 de novembro, tocaram Antônio Adolfo, Toninho Horta, Márcio Montarroyos e Pomoja e o grupo Mandengo. A série teve seu encerramento com um grande concerto na Concha Acústica da UERJ, Rio de Janeiro, com a participação de Wagner Tiso, Toninho Horta, Paulo Moura e a Rio Jazz Orchestra, Nivaldo Ornellas, Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal, na tarde do dia 25 de março de 78.  E, de abril a agosto, foram concluídas as filmagens e gravações.

Música, Palavra e Imagem

Durante duas horas, desfilam no filme os sons e as imagens do universo cultural brasileiro, captados e filtrados pelos mais importantes músicos do País. Para cada um deles isto representa um trabalho de muitos anos que, em muitos casos, ainda permanecia completamente inédito No disco como no filme - que foram lançados conjuntamente - inscrevem-se as participações de figuras conhecidas como Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, Nivaldo Ornellas, Wagner Tiso, entre outros – sem falar em Heitor Villa-Lobos – assim como as de outros nomes ainda pouco notórios – embora não menos criativos como Waltel Branco, Marcos Rezende, Edson Maciel, Franklin e Luiz Cláudio – não esquecendo o maraka’yp Sapaim, o maior mestre de música vivo do Xingu.

A abertura do filme cabe à música-tema Trindade, composta e cantada por Luiz Keller. Enquanto a câmera flui por entre imagens da natureza, música e letra falam das relações que se estabelecem entre o cérebro, os membros do corpo e o coração como a trindade fundamental do homem. Segundo Luiz, "ela é uma síntese de tudo o que eu vivi, a música do próprio ser humano, buscando o equilíbrio entre a razão e a emoção". Logo a monumental Floresta Amazônica, de Villa-Lobos, nos introduz no imenso universo ainda inexplorado das nossas selvas, nossos rios, fauna e flora. Contrapontuando o desvelamento visual das grandes "mansões verdes" da floresta e seus habitantes, o som registra a audição da Sinfônica do Ar e Coral gravada em som direito, em setembro de 77, em pleno Pantanal do Mato Grosso.

No Nordeste, ocorre um inesperado happening: a presença de Hermeto Paschoal e Seus Músicos durante o agitado burburinho da feira de Caruaru. Registrada em som direto e diante de várias câmeras, ela representa também — à maneira do que Trindade realizou no encontro do Ballet Stagium com os índios do Xingu — a reunião da documentação ao vivo de dois extremos no mesmo caminho: a matéria-prima e o produto acabado, as raízes culturais e seu desdobramento cosmopolitano. A Bahia é o local onde melhor se estabeleceram os ritmos afro-brasileiros: a capoeira, o maculelê e o candomblé. Esforçando-se para evitar o exotismo com que são freqüentemente pintados, o filme procura suas raízes e significados mais recônditos; da capoeira e do maculelê, como antigos adestramentos físicos, ao candomblé, com seus antigos rituais e sua verdadeira legitimidade africana, hoje quase desaparecida nos centros urbanos.

O posto Leonardo Villas-Boas é o palco do encontro da música de Egberto Gismonti, um constante pesquisador de nossas raízes, do Ballet Stagium, coreografado por Márika Gidali e Décio Otero, e a espontânea musicalidade de seus índios habitantes. Desse encontro, registrado ao vivo pela equipe do filme, disse Gismonti - que por duas horas improvisou uma exibição de flauta e violão - que se tratava de "uma platéia tão aberta e receptiva quanto... sei lá... uma européia, de festival de jazz, superinformada; não há nenhum preconceito, nenhuma idéia pré-estabelecida, eles só querem sentir se o som lhes agrada ou não".

Sobre imagens de um vasto horizonte e grandes planícies onde se instalou a nova capital, surge o tema de Marcos Rezende, Festa Para Um Novo Rei, executado pelo grupo Index e o autor. Enquanto o tema é desenvolvido, a câmera vasculha os mais diversos ângulos e realidades de Brasília.

Lá no Curral D'El Rey/Quem falou morrer/Quis talvez pedir/Calma ou talvez dizer/As estrelas dormem/As paixões valerão/Cantar quer dizer que não/Ou traduzir sílêncio/Violência igual de montanha e animal.

A letra de Márcio Borges, cantada por Luiz Keller, e a música de Nivaldo Ornellas, executada por uma banda, marcam a passagem de Trindade por Minas Gerais, cuja paisagem o filme desvenda e recompõe visualmente com imagens de rostos, ruas, janelas, igrejas, colinas, cafezais, sacadas, velhas nas janelas, mãos negras na enxada, enquanto Nivaldo Ornellas e seus acordes alternam música religiosa e ritmo negro, numa verdadeira Memória das Minas, tema que no filme ocupa 11 minutos.

Das montanhas para o mar, da memória das Minas à lembrança do Rio antigo: aparece então o reavivamento poético e pictórlco de fragmentos da Glória de antigamente com suas ruas e bares que são recapturados musicalmente no tema Santo Amaro, composto e executado pelo flautista Franklín e o violonista Luiz Cláudio especialmente para o filme. Enquanto o passado apenas sobrevive através de resquícios, a Zona Sul carioca se agita no vigor de sua paisagem – que ainda resiste – e no cosmopolitismo de sua cultura, cujo comentário musical é composto e interpretado por Joyce, E se o tema da Zona Sul cabe a uma compositora de formação mais roqueira, a música da Zona Norte – uma paisagem diferente com o trem de subúrbio e seu pique rápido – se ajusta perfeitamente ao free~jazz de Edson Maciel, um velho-novo músico que viveu intensamente os últimos 30 anos da música brasileira.

Djair de Barros e Silva – que ninguém conhece – ou Novelli – que todo mundo conhece como músico mas poucos como compositor - é o autor de Baião do Acordar, sob cujos sons e palavras que dizem "Jogue nessa loteria que sua vida resolve/ Passe a perna no destino, fure a fila, seja breve/Mas não deixe de ouvir uma música amanhã/Ao acordar", que lembram ao migrante nordestino não se esquecer de suas raízes, oferece a Trindade a oportunidade de procurar evidenciar a sua visão do trabalhador na cidade de São Paulo. A trilogia dedicada aos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – Minuano, de Waltel Blanco – é uma peça que possui vários climas. A primeira parte procura captar o Paraná, através de uma musicalizacão que ele chama de aleatória. Já Santa Catarina aparece sublinhada por uma peça tipicamente clássica executada por um quarteto de cordas, enquanto o terceiro e último segmento procura captar o Rio Grande do Sul, "um verdadeiro faroeste", segundo Waltel, evocando boiadas, bombachas e chimarrões do Pampa.

Tragicômico, composição de Wagner Tiso com letra de Luiz Keller, procura sintetizar e finalizar poeticamente toda a proposição do trabalho, apesar dos obstáculos ao longo do caminho:

Mesmo ainda que o caminho me apresente gente estranha/ Mais teimosa que sabida, mais medrosa que sozinha/ Amo mesmo, sem vergonha de dizer de cara ao mundo.

                                                

Sérvulo Siqueira

 

Publicada na revista Filme Cultura 32, Fev 1979