NOTÍCIA DO SIMPÓSIO SOBRE O CINEMA

E A MEMÓRIA DO BRASIL

 

Sérvulo Siqueira

Este tecido de lembranças

de filmes brasileiros vistos ou

ouvidos recebe um singular reforço

de filmes não vistos nem ouvidos, porque decompostos,

desaparecidos, perdidos para sempre.

 

Paulo Emílio Salles Gomes

 

SIMPÓSIO SOBRE O CINEMA E A MEMÓRIA DO BRASIL

dias 17/18/19 de agosto de 1979 , às 20:00hs

Palácio da Cultura Rua da Imprensa 16 - Rio de Janeiro

 

patrocínio EMBRAFILME em colaboração com a

Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Fundação Cinemateca Brasileira

e a participação Departamento Geral de Cultura (RJ), FUNARTE, ICBA, MIS (RJ)

 

Com o objetivo de discutir a situação atual das pesquisas, da catalogação, da filmografia e da conservação de filmes com vistas à elaboração de um documento que proponha soluções e defina prioridades, a EMBRAFILME, a Fundação Cinemateca Brasileira de São Paulo e a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro promoveram, nos dias 17, 18 e 19 de agosto de 1979, um Simpósio sobre o Cinema e a Memória do Brasil. Realizado no Palácio da Cultura, na cidade do Rio de Janeiro, o Simpósio teve como participantes representantes de setores profissionais e de entidades públicas e particulares direta ou indiretamente interessadas no assunto e o público em geral e contou com a colaboração do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, da FUNARTE, do Instituto Cultural Brasil-Alemanha e do Departamento Geral de Cultura da Secretaria Municipal de Educação e Cultura do Rio de Janeiro. Paralelamente ao Simpósio, realizaram-se o Seminário sobre "Metodologia de Arquivamento", sob a coordenação de Maria Rita Galvão e um outro sobre "Descrição e Indexação de Conteúdo", sob a coordenação de Jean-Claude Bernardet e Elenice de Castro e projeções de filmes seguidas de debates que contaram com a participação de críticos de cinema, cineastas, pesquisadores de cinema, historiadores e outros interessados no assunto.

Os debates foram abertos com a presença do Secretário de Assuntos Culturais do MEC, Márcio Tavares do Amaral, e do Diretor Geral da EMBRAFILME, Celso Luiz Nunes Amorim. 0 Diretor Geral da EMBRAFILME lembrou no discurso de abertura que "a preocupação com a memória do cinema não é uma preocupação estática, de registrar fatos passados, de evocar fantasmas, de manter vivo apenas um leque de recordações que não tenham relação com o presente; pelo contrário, a nossa preocupação com a memória se relaciona, e muito, com o presente, pois é através da memória que recolhemos os elementos para a prática do presente e os projetos do futuro". Justificou a oportunidade do evento, dizendo que "a par das preocupações da EMBRAFILME naturalmente com as áreas de produção, exibição e distribuição, sentimos a necessidade de que a consciência sobre seu valor e importância não fique restrita às próprias pessoas que participam do meio cinematográfico". Frisou a importância do Simpósio "para obter recursos, até mesmo para nos projetarmos como uma atividade séria, industrialmente válida, culturalmente indispensável para o País", e lembrou a necessidade de que "outras comunidades, outros setores da nossa comunidade intelectual e da nossa sociedade compartilhem dessa consciência".

Celso Amorim observou que na preservação da memória cinematográfica brasileira cabe à EMBRAFILME "um papel catalizador muito importante, um papel de repassador de recursos, em alguns casos muito importantes e, para isso, inclusive, já foi possível consignar no orçamento do Ministério da Educação e Cultura, para o ano próximo, uma verba específica para asse fim". Finalizando, o Diretor Geral da EMBRAFILME passou a palavra ao Secretário de Assuntos Culturais do MEC, Márcio Tavares do Amaral, que abriu oficialmente o Simpósio.

Márcio Amaral iniciou afirmando que o esforço da Secretaria que dirige se relaciona com uma "cultura que não é um produto singular de uma elite, mas um processo social". E prosseguiu:

– A unidade cultural com a qual devemos trabalhar é composta por uma dada dispersão de traços culturais, no entanto unificados através de uma perspectiva histórica, sociopolítica, econômica e cultural comum, que vigora em determinado espaço do território nacional, mas não na sua totalidade. Conhecer essa diversidade regional é um passo imprescindível para que possamos de fato marchar na direção da ativação de um processo de desenvolvimento cultural como parte do processo de desenvolvimento social. (...) Ora, esse conhecimento da diversidade regional implica, em todos os casos, numa preservação do que esse esforço de conhecer revela e atualiza.

Para justificar a importância do Simpósio, o Secretário de Assuntos Culturais do MEC afirmou:

– O cinema brasileiro reúne em torno de sua aura uma série de problemas que foram sentidos em todas as regiões como problemas cruciais: o conhecimento das características culturais do nosso povo, o encontro de uma linguagem cultural que não seja apanágio de uma elite, mas que tenha a ver profundamente com o processo de desenvolvimento total do país, que não se dá sem a afirmação soberana da identidade cultural deste país. Portanto, um simpósio em que se trata de conhecer a diversidade, a especificidade do nosso cinema e de encontrar as formas de preservá-lo, não na dimensão do arquivo mas na dimensão da semente, não para guardar mas para disseminar, é, segundo me parece, uma grande função deste encontro, deste Simpósio, e que segue na linha das preocupações que o MEC tem desenvolvido e tem procurado discutir, ouvindo os setores mais expressivos e mais dinâmicos da comunidade cultural.

Após a abertura oficial, iniciou-se a discussão do tema "A Contribuição do Cinema no Processo de Identidade Cultural", que teve como relator o historiador e jornalista Paulo Sérgio Pinheiro e como debatedores os pesquisadores Ana Maria Murakami, Maria Rita Galvão, Miguel Pereira e Sílvio Tendler. Iniciando sua exposição, Paulo Sérgio Pinheiro ressalvou que "é bom desde logo ficar claro que tudo que vai ser dito aqui por mim é mais um testemunho, é um depoimento". Em seguida, considerou que a descoberta extremamente recente do cinema como fonte de documentação se devia "a falta de imaginação vigente na nossa Academia e nos meios de pesquisa". E observou:

Mas não é só um problema de falta de imaginação. Essa dificuldade em incorporar o cinema ao debate historiográfico e ao debate nas ciências sociais se deve a uma concepção de História enquanto periodicidade e a uma certa concepção de história social. Sob a alegação de que era necessário sempre um distanciamento em relação ã História, os historiadores se deliciavam com o Império, adoravam ficar na Colônia. Quer dizer: não se pode estudar o presente porque não se tem o distanciamento suficiente. Eu cito só um exemplo: 25 anos depois do suicídio do Presidente Getúlio Vargas, no dia 24 de agosto de 1954, não há uma biografia de autor brasileiro sobre esse Presidente. Naturalmente, não levamos em conta as biografias encomendadas - há várias - ou então as escritas em inglês - há muito boas. Mas de autor brasileiro, pesquisador brasileiro, não existe uma biografia como tal do Presidente Getúlio Vargas. De uma certa maneira, eu acho que através do documentário cinematográfico nós temos uma possibilidade dramática de romper com essa empreitada de ocultação da nossa História política recente.

0 cinema, pela sua própria realização depois da I Guerra Mundial, no nível dos documentários, dos documentários históricos de fábricas que eu vou mencionar e com os quais eu tenho lidado um pouco, oferece essa oportunidade de um mergulho dos historiadores e do pesquisador de ciências sociais no presente.

Quando falou das dificuldades de pesquisa no Brasil, o relator lembrou uma frase de Lévi-Strauss na parte do texto de Tristes Trópicos que cabe ao Brasil, ao se referir à angústia do pesquisador que lamenta não ter "condições de ver tudo o que o pesquisador, que virá depois dele, poderá ver e lamentar". Argumentou, com sua experiência no levantamento de filmes antigos, que o trabalho de pesquisa é na verdade um antídoto a este sentimento:

– Acho que através do esforço em recuperar o cinema, nós temos uma possibilidade incrível de superar essa angústia, porque pelo menos nos documentários que eu recuperei, mesmo que eles sejam, por exemplo, realizados por encomenda das próprias empresas, como é o caso de alguns que eu vou apontar aqui, a empresa nunca controla todas as informações registradas no filme. Diante da possibilidade de romper uma determinada periodização e a possibilidade de romper com uma certa concepção de historia - a história das classes dominantes em direção a uma história da sociedade - eu concebo a utilização do cinema não como a ilustração de uma tese já estabelecida, assim como o Museu de Cera de Madame Tussaud, que reconstitui os quadros históricos, mas em termos de abrir possibilidades para a formulação de novas hipóteses.

Para Paulo Sérgio Pinheiro, "tratar da fonte cinematográfica é outra coisa; é dinamitar esta concepção de ilustração do cinema em termos de reflexão histórica". Seu argumento se fundamentou em alguns exemplos, extraídos de uma pesquisa realizada entre 1976/77 na Unicamp, com o apoio da Secretaria de Tecnologia Industrial, durante a gestão do Ministro Severo Gomes como titular da Pasta da Indústria e do Comércio. Explicou o historiador:

– As Indústrias Matarazzo têm um belíssimo acervo iconográfico, não só de fotografias como de cinema. O que eles nos deram e que eu acho que é uma seleção de 80 minutos, ou uma hora, representa uma pequeníssima parte do arquivo deles; eles registraram toda a vida da Empresa e toda a vida da família, que é notável. Então, uma reflexão que nos ocorreu, vendo alguns dos filmes das Indústrias Matarazzo, partiu da idéia clichê que uma certa historiografia tem a respeito do cooperativismo no Brasil, de que ele caiu do céu em 1937 e talvez por alguns condutos do fascismo italiano chegou aqui e se implantou. O maravilhoso nos filmes das Indústrias Matarazzo é ver que, de uma certa maneira, os grandes empresários italianos, em sua grande maioria estabelecidos em São Paulo no setor têxtil, adiantaram essa prática, adiantaram o corporativismo na prática. Os mecanismos de manipulação, de controle e de autopromoção, que nós vamos encontrar no Estado da ditadura a partir de 1937, estão em germe na prática diária das grandes empresas de São Paulo. Há filmes sobre as comemorações dos 80 anos do Conde Francisco Matarazzo, quando milhares de operários desfilaram em homenagem ao seu patrão. São passeatas de trabalhadores, razoavelmente espontâneas; isto é, eu não acredito que as pessoas fossem obrigadas, pressionadíssimas para ir a essas passeatas pelos canais de coerção que existiam dentro da Empresa. Eu dou um exemplo para mostrar de que maneira, ao nível da relação industrial, o corporativismo foi adiantado em comparação a seu estabelecimento pelo Estado. Através das circulares do Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem – onde nós também trabalhamos nesse mesmo período – podemos tentar ver como eram comemoradas essas datas de aniversário. Para nós foi um deslumbramento descobrir isso no filme, não só como ilustração do que nós já presumíamos que tivesse acontecido mas para aprofundar de uma maneira antes impensada. Ê preciso também acabarmos com esse clichê, próprio a uma certa historiografia, de que os anarcossindicalistas eram flores exóticas ultrapassadas em relação ao passado. Na França e na Itália no mesmo período, as bandeiras eram as mesmas, redefinidas naturalmente pelos contextos específicos. Também o cinema, os filmes que nós descobrimos, favoreceram a elaboração destas especulações.

Prosseguindo sua comunicação, o relator disse que "seria melhor colocar de uma maneira mais articulada a nossa experiência, mesmo que aos olhos do pesquisador mais ligado ao cinema estejamos cometendo imprecisões terríveis":

– Eu gostaria de precisar três tipos de cinema que seriam englobados nesse esforço. Em primeiro lugar está a questão do documentário, da documentação elaborada pela própria Empresa, e o que nos resta a fazer é ir lá, recuperar e recolher. As empresas são muito mais receptíveis do que se pensa e nós fizemos isso antes da atual tendência em relação à abertura. Os temores eram bastante maiores do que os atuais e, apesar disso, alguns empresários estavam entusiasmadíssimos. Na sua maioria, dependendo do tipo de pesquisa, eles sempre têm medo de que estejamos querendo fazer a historia da Empresa para denegrir a boa imagem dos empresários. Mas nós temos de mostrar, na prática, que não interessa denegrir a imagem do empresário e fazer o panteão do operário. 0 problema é fazer a historia complexa e acho que a abertura da EMBRAFILME com relação a isso tem condições de ser defendida em termos de uma busca da complexidade e a partir do imenso interesse que tem as empresas com a possibilidade de não eliminar a memória empresarial. No Brasil não se faz arqueologia industrial. Há iniciativas fantásticas por parte dos próprios empresários e, além disso, o Centro Nacional de Referência Cultural, em Brasília, tem propiciado algum tipo de iniciativa em relação ao esforço de comunidades no Brasil inteiro - à arqueologia industrial, à preservação da maquinaria, ao registro da arquitetura que está sendo destruída e para a presença dos operários nessas fases.

Paulo Sérgio Pinheiro lembrou então outro tipo de dificuldade encontrada no decurso da pesquisa realizada por uma equipe da Universidade de Campinas:

– Então, no caso da Fábrica Votorantin todo mundo negava: "Não tem filme nenhum, não adianta ir lá". E nós fuçando daqui e dali, e a segurança da Empresa, que não é segurança-repressão mas segurança empresarial, dizendo que "não tem nada, não adianta vocês ficarem pesquisando", etc. Bom, até que o Lauro Escorei, que era o coordenador desta parte, descobriu o homem que projetava os filmes num cineclube e ele disse: – "Não tem nada aí, tem uns latões velhos, nada que interesse." Eram simplesmente 80 minutos de filmes realizados em 1924 pela Empresa, que nós recuperamos. Eram filmes em péssimo estado - que foram recuperados – nós demos uma cópia de presente para a Empresa, ficamos com outra e devolvemos os originais. Então, nesses 80 minutos estão registradas todas as seções da fábrica, as diversas seções da indústria têxtil, em 1924. Depois disso, o filme passa por todos os conjuntos habitacionais dentro da fábrica – dos operários até os gerentes, mostrando os diversos tipos de casas dentro da vila operária. Depois, vêm os investimentos que essa fábrica fazia, a fábrica de cimento e os loteamentos em São Paulo, tudo isso foi filmado. E nós descobrimos assim por acaso, isso ia se perder irremediavelmente. Outros filmes, de que nós vamos mostrar alguns pedacinhos aqui, foram captados dessa maneira nas Industrias Crespi. Da mesma forma, a fábrica de tecidos Crespi fez um filme nos anos 20 sobre a indústria, a família e os detentores do capital nessa fábrica. Mas como eu já disse antes, não vi ainda nenhum exemplo que superasse o das Empresas Matarazzo ao nível da riqueza e da abundância do material.

Dentro do que considera representar os três tipos de esforços necessários a preservação da memória nacional através do cinema, Paulo Sérgio Pinheiro propôs o que seria a segunda e a terceira modalidades deste processo:

O segundo patamar seria o que eu chamaria especificamente de arqueologia industrial, quer dizer, equipes produzirem o que não está elaborado. Por exemplo, nós fizemos vários filmes em algumas fábricas no Estado de São Paulo – Sorocaba, Jundiaí, Itu – registrando a arquitetura, as máquinas e os operários, naturalmente. Esses pequenos filmes foram produzidos por nós e alguns foram aproveitados num dos trabalhos que vou apresentar, realizado com material do nosso acervo. 0 terceiro patamar eu especificaria como o da reconstrução histórica. É o tipo de filme que a Ana Carolina fez sobre Getúlio Vargas e o filme que Lauro Escorei realizou com material recolhido pela nossa pesquisa: Os Libertários, sobre o anarcossindicalismo no Brasil 1890-1920, em que esse material – de acervo ou elaborado por grupos de pesquisa – possa ser trabalhado por pessoas que mexem com cinema, para uma nova reinterpretação da nossa história. Acredito que com todo esse percurso através do cinema nós sejamos capazes de chegar a uma história mais complexa e que incorpore as diferenças, já que eu acho que esse deve ser o objetivo dos verdadeiros pesquisadores. Para ilustrar esses pontos, que eu abordei brevemente, sugeri que se passasse três trechos de filmes. Primeiro, são alguns minutos de filme – eu não sei o que vai aparecer primeiro, se o Matarazzo ou o Crespi – para se ver o tipo de material que foi incorporado. 0 segundo é um filme em curso, que infelizmente está interrompido por falta de recursos, um filme do Adrian Cooper, que é um fotógrafo e cineasta que trabalhou na nossa equipe, sobre uma fábrica que está na iminência de ser desmontada. É a fábrica de chapéus Curi, em Campinas, uma fábrica de chapéus absolutamente intacta. O processo de fabricação de chapéu é o mesmo de 1910. Só tem o copião, ainda falta ser montado. Sugeri que se passasse a parte a cores, que dá maior realce ao material. E finalmente, terminando a ilustração, 10 minutos do filme elaborado pelo Lauro Escorei com o material do Arquivo Edgar Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas, relativo à História Social, em que há uma tentativa de reinterpretação da nossa história política, desse período mergulhado nos clichês da historiografia das classes dominantes.

 

OS DEBATES

 

Após a exibição dos filmes, Paulo Sérgio Pinheiro deu algumas informações e explicações sobre o que foi projetado. Discorreu sobre a importância dos filmes, e disse que "as noções que nós temos ao nível do documento escrito e dos depoimentos podem ser bastante sofisticadas através do registro cinematográfico".

Em seguida, começaram os debates, que estavam abertos à intervenção do público e que contaram com a participação de Maria Rita Galvão, Sílvio Tendler, Miguel Pereira e Ana Maria Murakami. As primeiras observações foram feitas pela pesquisadora, ensaísta e professora Maria Rita Galvão, que procurou "chamar a atenção para uma série de fatos sobre os quais a gente talvez deva refletir um pouco". E explicou:

– Em primeiro lugar, o que me chamou a atenção foram exatamente os três exemplos que o relator deu e sobre as fontes desse material cinematográfico, que são as Fábricas Votorantin, Crespi e Matarazzo. Gostaria de chamar a atenção para o fato que, do ponto de vista da produção cinematográfica, estas não são fábricas quaisquer mas exemplos, todos eles, bastante significativos. Em primeiro lugar, a Votorantin é uma fábrica que foi a primeira a pensar na instalação de um cinema para operários, na utilização de um cinema funcionando dentro da própria fabrica. Isso aconteceu nos primeiros anos do século e, portanto, muito antes desse tempo a que Paulo Sérgio Pinheiro se referiu. Depois, é a fabrica de onde saiu uma das primeiras produções filmadas por Alberto Botelho, um pioneiro que os historiadores aqui presentes sabem o que representa em termos de documentação cinematográfica. É ainda a fábrica de onde saiu José Medina, que começou exatamente como projecionista e, em seguida, foi cinegrafista dentro da fábrica Votorantin. Enfim, trata-se de uma empresa que dava atenção especialíssima à documentação cinematográfica e ao cinema em geral, a ponto de ter permanentemente funcionando, desde o início do século, um cinema para operários.

Em seguida, Maria Rita Galvão lembrou as participações importantes dos outros empresários na produção cinematográfica brasileira dos anos 20:

– Bom, em segundo lugar temos a Fabrica Crespi e, então, é preciso lembrar que o Conde Crespi era um dos financiadores de Arturo Carrari, que foi um dos mais ativos cinegrafistas de São Paulo nos anos 20. E, em terceiro lugar, o Conde Matarazzo, que é talvez o mais flagrante dos exemplos que a gente poderia citar. Matarazzo foi um produtor cinematográfico e durante mais de 10 anos teve uma das grandes firmas importadoras e distribuidoras de filmes em São Paulo, além de filmar sistematicamente documentários e de ter, inclusive, um Cinejornal Matarazzo. Na verdade, esse cinejornal era basicamente formado de material importado mas também incluía material para exibição cinematográfica que era de origem nacional. Matarazzo chegava mesmo a produzir filmes de ficção. Entretanto, esses são exemplos particulares que não invalidam o que disse o relator, mesmo porque havia na época um hábito generalizado de se mandar filmar fábricas. Outro problema que o relator levanta, e que me parece básico, toca na necessidade de prospecção em todas essas fábricas sobre o material existente. Ora, prospectar não significa simplesmente tentar achar os filmes, tentar obtê-los de seus donos e levá-los para um lugar adequado; significa todo um processo paralelo de recuperação e utilização destes filmes, com uma verba que a gente não tem e que precisamos descobrir. 0 problema da prospecção é impensável sem que esteja paralelamente aliado à recuperação, para o que necessitamos de verbas que não temos.

Maria Rita Galvão, autora de Crônica do Cinema Paulistano (1900/1930), professora de cinema da Universidade de São Paulo, procurou estabelecer outras distinções entre os filmes apresentados pelo professor da Unicamp e relator, Paulo Sérgio Pinheiro:

– Quando a gente pensa num tipo de filme como esses que vocês fizeram agora, como o da fábrica Curi, a gente está utilizando o cinema como forma de registro de determinadas coisas e os problemas implicados são bastante diversos. 0 mesmo acontece quando se usa um material encontrado em filmes de montagem ou filmes que, entre outras coisas, têm uma utilização bastante diversificada em termos de estudo, de pesquisa histórica e de reflexão, do que aquela que implica num mero exame do original. Enquanto se projetava um dos filmes que o relator nos mostrou, ele chamou a atenção para alguns planos em que havia determinada proporção de homens, outra de mulheres, outra de crianças, etc. Filmes como esse passam pelas nossas mãos, às vezes às dúzias, sem que a gente saiba o que ê significativo isolar neles para chamar a atenção de historiadores, sociólogos, etc, de forma que algo se torne útil e profícuo para o trabalho que vocês fazem. Era realmente preciso que vocês nos dissessem de que modo se pode tornar acessível todo esse material, de maneira que ele sirva de documento para vocês. E isso vale não só para cinejornais, documentários, mas, também em outros níveis, para inúmeras partes de filmes de ficção que podem ser isoladas como documentos. A gente precisava entrar em contato com todos os pesquisadores que, como vocês, se interessam por isso e que vocês nos dessem alguns parâmetros para lidar com esse material. Coloco essas coisas apenas à guisa de questões para a gente discutir. É claro que não estou pedindo, no momento, nenhuma espécie de resposta concreta.

Paulo Sérgio Pinheiro – Eu acho que uma noção que nós devíamos perder ê essa noção de "nós" e de "vocês". Penso que hoje só tem sentido essas equipes interdisciplinares, ou seja, essa etiqueta de historiador, sociólogo, diretor, fotógrafo, cada vez interessa menos; o importante ê que tenhamos objetivos comuns. Eu desconfio um pouco dessa possibilidade de "nós" darmos algum tipo de saída para esse problema, a descoberta só pode ser feita se estivermos juntos e na medida em que nos associarmos em torno desse projeto. Nossa mini-experiência em Campinas, que já foi alguma coisa, não tinha nada de inovador, mas ao nível da prática foi boa; tínhamos um fotógrafo, um cineasta, um designer, historiadores, sociólogos. Naturalmente, essas pessoas só podiam ser associadas porque havia uma verba generosa. Na época eram 30 pessoas trabalhando nesse negócio delirante. É por isso que eu acredito que quanto mais rápido derrubemos a separação entre aqueles que estão trabalhando na prospecção e recuperação dos filmes nas Cinematecas e os trabalhos que esses chamados pesquisadores estejam fazendo em quaisquer áreas, maior sucesso nós teremos.

A palavra passou então para a pesquisadora Ana Maria Murakami, que deu sua opinião sobre a colaboração entre vários especialistas num amplo projeto de pesquisa para a recuperação da memória brasileira:

– Nos países que se encontram num estágio mais adiantado de desenvolvimento, é muito grande o trabalho promovido por esses grupos na área de cinema e isso só vem fortalecer a posição colocada pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro no sentido da formação de uma equipe interdisciplinar. Agora, como já refleti muito sobre o problema da identificação de filmes, prospecção e catalogação, gostaria de dizer que cheguei ã conclusão de que na medida em que as Cinematecas e as pessoas que possuem um acervo fílmico pudessem separá-los mais ou menos por décadas, aí seria possível convocar os especialistas para que auxiliassem no trabalho. Mas a ajuda dos conhecedores profundos da história do cinema seria essencial, porque a técnica usada na elaboração de um filme é um elemento que pessoas consideradas do meio acadêmico desconhecem, mas que são vitais para que se possa trabalhar na identificação de um filme. Além do mais, essa separação por décadas facilitaria, porque poderíamos convocar pessoas que estivessem realizando trabalhos sobre determinados períodos históricos. Eu posso ilustrar isso da seguinte maneira: analisando alguns filmes sobre a Revolução de 30, de João Batista Groff, verificamos a grande dificuldade em identificar não só pessoas, como começaram a surgir dúvidas quanto ao próprio documento que estava sendo visto, que tipo de material bélico estava sendo utilizado, vestuário, etc., o que nos obrigava a recorrer a outras pessoas que conhecessem história militar e equipamentos, por exemplo. Daí porque eu também considero que a formação de uma equipe interdisciplinar, na realização desse trabalho, é vital. Outra grande preocupação é no sentido de tentar conscientizar os órgãos federais para que seja criada uma legislação que garanta o depósito legal de filmes feitos no Brasil. Sem nenhum critério de seleção é difícil para nós emitir um juízo de valor sobre um filme de hoje mas que daqui a 30 ou 100 anos poderá vir a ter uma grande importância.

Ana Maria Murakami encerrou a sua participação com uma re-flexão sobre a contínua destruição da memória visual do Brasil:

– Consentir numa destruição deliberada e sistemática de filmes, principalmente dos mais antigos, devido ao material com que eles eram feitos, muitas vezes para preservar uma versão oficial da história – como o que ocorreu há pouco tempo com os cinejornais da própria Agência Nacional – me parece uma coisa muito séria que tem de ser denunciada. Devemos lutar para evitar que, do mesmo modo que destróem documentos escritos, bibliotecas, etc., não acabem com a memória visual de um país.

A seguir falou o pesquisador e cineasta Sílvio Tendler, diretor do filme Os Anos JK – Uma Trajetória Política:

– Eu acho que, por uma serie de circunstâncias políticas, a gente vive num país desmemoriado. Me parece que a frase síntese sobre esta situação é a do Ivan Lessa, que diz "que de 15 em 15 anos a gente esquece o que ocorreu no Brasil nos últimos 15 anos". Essa situação não é uma exceção em relação ã memória visual já que, quando foi abolida a escravidão, queimaram-se todos os documentos relativos ao período da escravidão, para que esse período negro fosse abolido da nossa história. O mesmo aconteceu quando caiu o Estado Novo e constantemente se faz isso em relação a nossas imagens. Isso quer dizer que a não preservação das imagens da história brasileira ocorre para evitar o conhecimento de uma série de fatos que as imagens revelam e os documentos escamoteiam. Agora, esse acervo, como disse a Maria Rita, só teria interesse em ser recuperado na medida em que a democratização de sua utilização pudesse ser aumentada e se ficasse nas mãos das Cinematecas, que o abririam ao público, aos pesquisadores e historiadores, para ser utilizado como forma de revitalização da memória nacional. Outra questão que eu acho fundamental é que uma memória deve estar voltada para o presente e para o futuro e não apenas para o passado. Essa memória deve estar dirigida para a perspectiva específica de utilização do conhecimento dessa história, do domínio dessa história e da transformação da vida que a gente leva. A outra questão que eu coloco: acho que a recuperação de filmes ê fundamental; agora, ela não deve ser excludente, isto é, devemos procurar recuperar os filmes dentro de uma perspectiva realista e que busque preservar o máximo de filmes mas que considere o critério da qualidade. Por outro lado, deve-se abrir o leque para outras fontes. É preciso ver também fotografias e a televisão como fontes fundamentais da memória nacional assim como penso que esse debate tem que ser aberto nacionalmente. É fundamental também fugir do eixo Rio-São Paulo e aqui estão presentes apenas as entidades representativas do Rio e de São Paulo. Em Pernambuco, o Instituto Joaquim Nabuco, que está fazendo um trabalho de pesquisa e documentação utilizando a imagem como memória, teria muita contribuição a dar nesse debate. Além disto, a gente não deve ficar apenas correndo atrás do passado, é preciso fazer também uma documentação sistemática do que ocorre hoje, isto é, não captar somente o que já foi filmado por profissionais, mas também montar equipes que documentem a vida nacional, hoje, de forma que ela possa ser permanentemente registrada e guardada nos acervos que constituirão a nossa memória futura. Basicamente, são essas as questões que eu coloco.

Silvio Tendler encerrou a sua participação com uma observação sobre os filmes que foram apresentados pelo relator Paulo Sérgio Pinheiro:

– Agora, quanto à análise que o Paulo Sérgio fez do filme da Fabrica Matarazzo, eu discordo. Quer dizer, eu discordo em parte quanto ao fato de que considero que aquelas imagens são produto da classe dominante, foram filmadas com os olhos da classe dominante. Nós não podemos esquecer naquilo ali a presença do fator cinema e ali as pessoas estão atuando para a câmera; a câmera está presente e o Matarazzo está sendo enquadrado da forma como convinha a ele. Essas imagens podem ser utilizadas e analisadas perfeitamente como um documento de época mas levando em consideração o fato de que foram produzidas e montadas pela classe dominante, e nas quais ela se apresenta.

Paulo Sérgio Pinheiro – Quero dizer que concordo plenamente com esse seu ultimo comentário. 0 que eu estava dizendo era o seguinte: para mim a novidade e que particulares pudessem fazer passeatas populistas no período, apesar de o Estado, na época, ter horror a manifestação de rua. Mas reafirmo que concordo plenamente com você.

O último a falar foi o crítico e pesquisador Miguel Pereira, que procurou abordar um ângulo diferente dos que até então haviam sido tocados pelos outros participantes:

– O problema que me preocupa é o da formação de pesquisadores, de pessoas capazes de apanhar esse material, fazer uma análise e de trabalhar sobre ele a partir de sua recuperação. 0 que nos estamos percebendo aqui é que as informações não circulam, de que os Centros estão isolados e de que outras instituições, outros grupos teriam interesse em participar dessa mesma atividade, de estudar esse mesmo problema. Daí porque este Simpósio tem grande importância e talvez a EMBRAFILME pudesse ajudar, criando novas formas para que os diversos grupos interessados em desenvolver esse trabalho se reunissem e trocassem informações. Posso dizer isso porque no caso específico da instituição na qual eu trabalho, que é a PUC do Rio, há um interesse muito grande, inclusive porque recursos humanos nós temos. Concordo inteiramente também com a posição do Sílvio, ao dizer que se precisa fazer a documentação hoje. Então, a Universidade poderia ser esse lugar, onde se desenvolva a análise sociológica, política, histórica do material filmado e onde se poderia também registrar a atualidade da vida nacional.

A última intervenção, antes de se encerrarem os debates do dia, coube ao professor Hélio Furtado, que apoiou alguns pontos levantados anteriormente pelos debatedores. Em sua participação, Hélio Furtado enfatizou a necessidade de descentralização fora do eixo Rio-São Paulo, proposta pelo cineasta Sílvio Tendler. Lembrou que, em Goiânia, um cinegrafista realizou, há mais de 30 anos, cerca de 400 filmes sobre índios brasileiros e chamou a atenção para a importância de se aproveitar o que sobrou dessa documentação. Por último, reforçou a posição do crítico e pesquisador Miguel Pereira no sentido de que se formem cada vez mais novos profissionais que trabalhem na recuperação da nossa memória.

A SITUAÇÃO DOS ARQUIVOS DE CINEMA NO BRASIL

O Simpósio foi reaberto no dia seguinte com um debate sobre "A Situação dos Arquivos de Cinema no Brasil", tendo como relatores o crítico José Carlos Avellar, da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o pesquisador Carlos Roberto de Souza, da Fundação Cinemateca Brasileira de São Paulo. A coordenação do debate ficou a cargo de Carlos Augusto Calil, Diretor de Operações Não-Comerciais da EMBRAFILME, a entidade promotora do Encontro.

Iniciou a sua exposição o crítico José Carlos Avellar, que antes de fazer um relato sobre a situação atual da Cinemateca do Rio de Janeiro, lembrou a origem das cinematecas nos primórdios da História do Cinema:

Essa idéia surgiu logo depois das primeiras sessões públicas dos cinematógrafos Lumière. Um dos seus cinegrafistas, um polonês chamado Boleslaw Matuschewski, escreveu, logo na metade de 1896, um livro chamado Uma Nova Fonte da História, onde recomendava que todas as pessoas lutassem para que oficialmente todos aqueles filmezinhos que estavam sendo feitos pelos cinematógrafos Lumière fossem depositados e guardados legalmente e conservados como fonte de história. Outras tentativas surgiram em 1908, na França, quando começaram a aparecer os primeiros cinejornais de Charles Pathé e em 1911, quando também se tentou fazer um depósito legal. Mas, na verdade, por maiores que tenham sido os esforços e as tentativas de normalizar o arquivamento de filmes, a organização das cinematecas partiu sempre de impulsos pessoais. Uma pessoa ou um grupo de pessoas começou a juntar filmes e depois de um certo número de filmes guardados se formava realmente uma coleção. No Brasil, a coisa evidentemente não foi diferente e o que a gente tem guardado de filmes começou sempre com uma coleção particular ou com uma coleção que foi se desenvolvendo a partir de alguns particulares que se juntaram, reuniram filmes, entraram em contato com outras cinematecas,as quais, por sua vez, começaram a guardar e a trocar filmes. Isso explica muito, de um lado, essa preocupação constante agora, que é a de tentar organizar os diversos arquivos de filmes que existem, de concentrar esforços em torno de algumas cinematecas, as do Rio e de São Paulo, para que se possa tentar fazer um acervo seguro e localizado num lugar preciso e onde ele possa ser identificado e conservado. Isso quer dizer que o material existente na Cinemateca do Rio é composto de uma serie de filmes que vieram de outras cinematecas: uma parte da cinemateca francesa, outra parte constituída por uma série de filmes brasileiros que foram depositados no MAM e uma pequena parcela de filmes que foram obtidos através de trocas de filmes brasileiros por filmes estrangeiros com cinematecas estrangeiras.

José Carlos Avellar passou então a expor as varias atividades desenvolvidas pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, explicando que ela não se limita apenas a guardar filmes:

– Basicamente, além do arquivo de filmes propriamente dito, a cinemateca se encarrega de guardar todo tipo de material cinematográfico que possa ser de interesse para o estudo do cinema: recortes de jornais, publicações especializadas em cinema, cartazes, fotografias, manuscritos originais de roteiros de filmes e até mesmo textos que sejam ou possam vir a ser públicos sobre cinema. Uma das características que se procura imprimir à Cinemateca do Rio é a de não funcionar exclusivamente como um local onde se conservam filmes mas também a de um lugar onde esse material seja permanentemente colocado à disposição das pessoas interessadas. É importante que a Cinemateca possa funcionar como um centro onde a atividade cinematográfica permaneça constantemente em exercício, não só para guardar material de cinema mas para colocar esse material sempre à disposição das pessoas que possam dele se servir. No entanto, desde o incêndio do Museu, nos não temos conseguido promover as sessões e abrir o arquivo com o mesmo tom de consulta que ele tinha antes e o que se vem fazendo é organizar o material existente, de maneira que a consulta desse material, uma vez reaberta a Cinemateca, seja feita de modo mais fácil pelo interessado. Nesse período em que a nossa atividade externa foi reduzida, o que tem preocupado a Cinemateca é a notação dos filmes, seu arquivamento e fichamento e que o restante do material seja organizado de modo que a consulta do público se torne simplificada e facilitada. Ao mesmo tempo, estamos procurando selecionar filmes que possam ser encaminhados para uma recuperação, listando esse material em ordem prioritária. É preciso lembrar aqui que, paralelamente ao arquivo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, existem no Rio uma série de outros acervos conservados de modo inteiramente desorganizado ou que são periodicamente destruídos para desocupação de espaço. Quer dizer, existem conjuntos de filmes agrupados em emissoras de televisão, com colecionadores particulares, em pequenas distribuidoras, em pequenos cinemas ou em mãos de colecionadores particulares com os quais nós temos procurado manter contato com o objetivo de depositar esses filmes no Museu – sem que eles percam a propriedade deles – para que possamos conservar esses filmes em condições de estocagem que lhes garantam uma vida mais longa. Essa é a atividade básica e o quadro geral em que se encontra a Cinemateca do Rio de Janeiro.

Carlos Augusto Calil – Eu queria dar um depoimento, antes de passar a palavra para o Carlos Roberto. É que, apesar da minha ligação quase profissional com a Cinemateca do MAM, antes da minha vinda para o Rio, agora é que verifiquei a sua importância como formadora de pessoal qualificado. Todas as pessoas que mexem com cinema e que estão interessadas por cinema, que militam em cinema de alguma forma aqui no Rio, passaram por lá, foram conquistadas e sensibilizadas pela Cinemateca do MAM.

A exposição de Carlos Roberto de Souza procurou, de forma às vezes até extremamente minuciosa, fazer um amplo levantamento dos mais importantes acervos cinematográficos do país e de suas características básicas:

– Em termos de arquivos, de materiais cinematográficos no Brasil, nós costumamos dividir em acervos concentrados e acervos dispersos. Considero que pode ser incluído na categoria de arquivo de cinema a documentação em papel, uma forma de registro sobre o cinema e que não é o próprio cinema. Começando por São Paulo, vamos lembrar um tipo de arquivo genérico de cinema que é o da Biblioteca do Museu Lasar Segall, além da Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que por sua vez também tem uma pequena filmoteca, embora mais concentrada sobretudo no material produzido pelo próprio setor de cinema. Já em termos de filmes, temos o arquivo do Museu da Imagem e do Som, que guarda principalmente os filmes produzidos pelo Governo do Estado de São Paulo e que, em geral, são documentários. Existem também, embora não especificamente concentrados em cinema, o acervo de documentos do IDART, que é um setor de pesquisa da Secretaria Municipal de Cultura, dotado de uma pequena filmoteca composta por filmes (produzidos pela Prefeitura de São Paulo e por outros produtores) cujas matrizes são conservadas na Fundação Cinemateca Brasileira. Esse seria um ligeiro panorama desses arquivos mais ou menos definidos na cidade de São Paulo. Poderíamos falar também, para concluirmos essa resenha dos arquivos paulistas, de um acervo que é uma coisa meio exótica: trata-se do arquivo de Jordano Martineli, em São Bernardo. Jordano Martineli juntou uma imensidão de coisas, que vão desde gravatas de atores até livros com uma documentação importantíssima sobre a Vera Cruz. Ele possui um imenso acervo de coisas, de cenários, de figurinos, de filmes, inclusive, que estão no meio dessas coisas todas e se encontram sem nenhuma catalogação.

Carlos Roberto prosseguiu falando sobre outros acervos existentes em outras partes do país:

– Fora de São Paulo, eu gostaria de falar de um acervo que existe no Rio Grande do Sul. Na verdade, esse arquivo não existe como um todo porque, a rigor, ele não está concentrado em nenhum lugar. São principalmente os filmes que Antônio Jesus Pfeil, que é um pesquisador e principalmente um prospector, busca por todo o Rio Grande do Sul. Antônio Jesus chegou inclusive, nesses envolvimentos que ele tem com e xibidores e colecionadores, a descobrir um fragmento de Os Óculos da Vovó, filme gaúcho feito em 1913 e que é o filme de ficção mais antigo até hoje preservado. Uma das utilizações que Antônio Jesus Pfeil dá aos filmes que encontra é incluí-los em documentários que ele próprio realiza ou que outros diretores realizam. Essa é uma das maneiras que ele encontra para salvar esse material e recuperá-lo. Em termos de papéis e documentação sobre cinema no Rio Grande do Sul, há o arquivo de Paulo Gastal e principalmente outro, que foi adquirido pelo próprio Gastal, de Peri Ribas. Esses dois arquivos não estão catalogados e não se encontram abertos ao público. A grande parte dos filmes descobertos por Jesus Pfeil são documentários da década de 20 e a maior parte deles já foi recuperada pela Cinemateca Brasileira. Outro material relativamente organizado é o que se encontra na Cinemateca do Museu Guido Viaro da Fundação Cultural de Curitiba. Não sei que documentação eles possuem e, infelizmente, não está presente aqui o Valêncio Xavier, que seria a pessoa mais categorizada para falar sobre essa cinemateca. O principal problema que a Cinemateca do Paraná enfrenta é a pouca quantidade de pessoal disponível e principalmente a reduzida mão de obra especializada no exame e identificação dos filmes. Outro acervo, bastante razoável e concentrado, é aquele que Primo Carbonari juntou durante as ultimas décadas. Ele estima em aproximadamente 45.000 latas de filmes a quantidade de material que tem armazenada em sua produtora e diz que não tem cópias desses filmes embora conserve principalmente os negativos. Primo Carbonari, que considera seu arquivo o mais completo em cinejornais do Brasil, começou a reunir esse material a partir de 1935, quando ele iniciou sua carreira de produtor. Alem desse material, ele ainda tem filmes a partir dos anos 10 e nos informou que arrematou, num leilão, um grande lote de filmes produzidos pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda de São Paulo. Essas 45.000 latas não estão guardadas em depósitos com controle de temperatura e umidade e há o problema da ferrugem das latas onde estão acondicionados os filmes. Carbonari acredita, no entanto, ter resolvido o problema da desintegração dos filmes, colocando pedaços de cânfora nas latas dos filmes que são revisados. Em termos de colecionador pessoal, acredito que o Sr. Primo Carbonari seja um exemplo único.

Carlos Roberto de Souza concluiu sua comunicação, detendo-se de forma mais pormenorizada no exame do acervo concentrado na Fundação Cinemateca Brasileira de São Paulo:

– Esse acervo se divide basicamente em papéis e em filmes. Tanto em relação a uma categoria quanto à outra, a gente não tem muita certeza dos números exatos. Um exemplo pode ser dado pela coleção de recortes que existem no Arquivo da Cinemateca. Num primeiro momento, esse lote foi estimado em 20.000 recortes. Hoje existem cerca de 8.000 recortes catalogados. Existe também uma imensa coleção de folhetos também não catalogada e da qual não se pode ter sequer uma idéia da quantidade. Em relação ao acervo fílmico estima-se – e aí com uma precisão um pouco maior – que a quantidade esteja ultrapassando um pouco a casa dos 20.000 rolos. De maneira bastante semelhante ã da Cinemateca do Rio de Janeiro, existe muita coisa que foi incorporada ao acervo por meio de doações e compras de material às cinematecas européias e americanas através da Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Existem na Cinemateca Brasileira boas amostragens sobre primitivos franceses, filmes de Griffith, Chaplin, Max Linder e dos cinemas alemão, francês e soviético, em geral do período mudo. Há também uma coleção bastante grande de documentários britânicos. Parte dela, porém, está bastante deteriorada e não pode ser projetada. Outro lote de filmes que não está recuperado e não pode ser manuseado em projeções ou na moviola é constituído por filmes europeus, principalmente franceses e italianos da segunda década do século. Temos a impressão de que vários filmes conservados na Cinemateca Brasileira talvez sejam cópias únicas no mundo porque os catálogos que a Federação Internacional de Arquivos de Filmes publica com a relação dos acervos das cinematecas européias e americanas não registram esses filmes.

O relator trata, então, mais especificamente do trabalho que a Fundação Cinemateca Brasileira realiza no sentido da preservação da memória visual do nosso país:

– Em termos de cinema brasileiro, existe na Cinemateca Brasileira quase toda a produção muda de ficção que se conservou ate hoje e também quase tudo do pouco que restou da produção documental muda. Existem, por exemplo, os mais diversos documentários sobre revoluções, sobre o café, filmes de viagem, índios, administrações públicas, curandeiros e petróleo. Das décadas de 30 e 40 existe muito pouca coisa em termos de filmes de enredo. Mas, em compensação, existem lotes bastante importantes de cinejornais dessas duas décadas, como os produzidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, pela Agência Nacional, filmes feitos em Juiz de Fora, além de um lote significativo mas bastante deteriorado do jornal Bandeirantes da Tela, produzido pela Divulgação Cinematográfica Bandeirantes, do ex-governador Ademar de Barros. 0 maior lote de filmes nacionais de ficção da Cinemateca Brasileira cobre o cinema paulista das décadas de 50 e 60. Esse conhecimento mais ou menos aproximado que se tem de títulos e lotes do acervo ê bastante teórico porque o estado físico dos rolos de filmes é muito menos conhecido e o inventário é bastante lento, tendo os filmes permanecido durante anos a fio nas piores condições de armazenamento. Conseguimos instalar um pequeno módulo de laboratório de restauração mas a produção é bastante lenta e o trabalho é artesanal, pois cada rolo exige um cuidado especial. Apesar disso, temos o cuidado de incorporar acervos que estejam visivelmente sem cuidado, como os que localizamos nas mãos de antigos produtores e cinegrafistas.

Encerrando sua comunicação, o relator procurou fazer um balanço do árduo trabalho de recuperação de filmes e da escassa margem de preservação que se conseguiu atingir atualmente:

 – O pouco conhecimento que se tem da filmografia nacional e da história do cinema brasileiro coincide ou se equilibra com o pouco conhecimento que a gente tem do material que resta, do material que foi filmado e chegou até os nossos dias. Dessa forma, a nossa impressão, melhor dizendo, a nossa certeza é de que o nosso passado cinematográfico precisa de socorro urgente. É necessário levantar o que foi produzido, constituir a filmografia brasileira para que, em comparação com os filmes que sobraram, cheguemos a uma estimativa do que restou, do que chegou até hoje. Em todo o caso, acho que será bastante otimista dizer que chegou aos nossos dias 50% do que foi filmado. Certamente as perdas foram muito maiores.

Antes de serem abertos os debates sobre a situação dos arquivos de cinema no Brasil, foi convidado a falar o professor Aloísio Magalhães, Diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e que abordou o tema Alternativas para a Captação de Recursos. Confessando uma certa perplexidade quando recebeu o convite para falar sobre um assunto do qual não se considera uma pessoa capacitada, Aloísio Magalhães disse que esta "é uma área complexa e abismosamente intrincada". E explicou:

– Sobretudo quando a gente ouve depoimentos como os anteriores, nos quais se evidencia a carência e o descaso com que de certo modo o poder público tem cuidado de assuntos desta natureza. De forma que eu acho que a gente deveria fazer uma reflexão quando se analisa o estado em que se encontra o problema da memória nacional. Refiro-me aqui – e não posso deixar de participar dado o tamanho da tarefa que desabou sobre as minhas costas (Aloísio Magalhães assumira, há pouco, o Instituto do Patrimônio Histórico do MEC) – não só ao problema do filme. Temos que pensar nisso com uma visão do conjunto. A dificuldade de equacionamento e de valorização correta das coisas existe em uma dimensão muito variada dentro de uma grande forma de heterogeneidade em que se compõe hoje o quadro cultural social, o ambiente, o espaço brasileiro. Acho que há um erro de cálculo e uma mesma relação de erro de cálculo em várias direções. Se por um lado, escasseiam recursos para coisas fundamentais, por outro lado se gasta muito dinheiro com bobagens. A quantidade de recursos que são dispersos é muito grande e põe em risco a própria possibilidade de se ver este país tomar um rumo certo. Eu trago apenas dois exemplos. É que na periferia do Brasil – e eu chamo periferia os grandes centros urbanos – para se tomar um copo de água hoje, compra-se um copo de plástico e esse copo, esse invólucro, é feito à base de derivados de petróleo com todas as complexidades e sofisticações do consumismo e, depois de usado, e jogado fora. Outro exemplo que também estarrece e eu acho que vocês concordarão comigo nesse ponto é que numa viagem de avião entre Rio e Brasília, que demora exatamente uma hora e 15 minutos, se serve uma refeição tão fantástica que não dá tempo de acabar antes de chegar. Isso parece que são valores que nos ajudariam a repensar, dentro desse espaço objetivo, o que está acontecendo com vocês...

– Numa outra comparação, é interessante lembrar que os recursos estimados neste Simpósio para a recuperação de todo o acervo existente nas duas maiores cinematecas, a do Rio e a de São Paulo, representam aproximadamente dez metros de metrô do Rio de Janeiro. Então me parece que, à maneira do biólogo inglês J. B. S. Haldane, deveríamos repensar esses problemas procurando encontrar referências e pontos que situem verdadeiramente a relação das coisas. Dez metros de metrô não valem nada porque não dá nem para sair um carro. Em outras palavras, não chega a atingir uma fração do seu propósito. A escala de aferição da construção do metrô tem que ser de outra ordem.

O Diretor do IPHAN passou então a proposições no sentido de se buscar novas alternativas para a captação de recursos:

– Do ponto de vista objetivo, o que eu posso propor deriva exatamente da minha responsabilidade à frente de um organismo que se propõe a ser o guardião dos bens culturais do Brasil: tentar vencer esta inércia, essa situação de valores e de posição das coisas vistas por parâmetros errados e tentar modificar isso na direção de um melhor posicionamento ou do verdadeiro posicionamento que o bem cultural deve ter no plano das coisas dentro do país. Nessa mesma ordem de idéias seria conveniente fugir um pouco do que eu chamaria a oscilação temperamental dos orçamentos. Em outras palavras, seria bom se nós pudéssemos construir para o bem cultural um sistema de captação de recursos que não ficasse unicamente dependente dessa área, já que ela é temperamental e por sua temperamentalidade oferece uma oscilação muito freqüente. É nesse sentido que o IPHAN propôs ao Governo a criação de um instrumento que pudesse ser captador de recursos não orçamentários e que se constituiria inicialmente com um lastro que pertence ao patrimônio da União, ou seja, com um acervo de bens imóveis do patrimônio da União: jurídicos, casas, hotéis, heranças jacentes, fórum, tipos de pagamento de forma jurídica, inclusive os de caráter antiquado. Seria a passagem de parte disso, de elementos que constituem esse patrimônio parado, para a constituição de um fundo gerido pelo IPHAN, pelo patrimônio histórico, que se destinaria a incentivar, ajudar, interagir com as instituições competentes na busca de uma solução para esses problemas. Em outras palavras, o IPHAN se transformaria num órgão que não deteria em si coisas, mas que seria um instrumento aglutinador e estimulador das competências nos seus respectivos lugares.

Representando o Centro Nacional de Referência Cultural, falou, então, a Sra. Clara Alvim. Sua exposição partiu de uma divisão dos bens culturais em duas características:

Dentro dos Museus Brasileiros, nós encontramos dois tipos de bem cultural: aquele que denominamos experimentalmente de bens que não são partilháveis; existem para serem respeitados, conservados, e que são peças únicas, e os outros bens, muito comuns nos museus brasileiros: coleções de discos, filmes, fotografias, etc., denominados provisoriamente bens partilháveis; bens que se destinam a ser funcionais, a ser usados, mas que permanecem nos museus como se fossem não partilháveis e identificados aos não partilháveis. Tenho a impressão de que no Brasil é muito importante a identificação daquilo que é para ser partilhado e que não deve ser preservado como se fosse peça única. É preciso que a gente tenha realmente a capacidade de convencer as autoridades públicas de que cinema é importante não apenas para os especialistas, que se deve tirar o cinema de uma zona de elite e passá-lo para um uso ainda muito maior. Ou seja, tirar do não partilhável e deslocá-lo para o partilhável em todos os níveis.

O poeta e ensaísta Mário Chamie, Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, expôs o trabalho que se desenvolve no IDART (Departamento de Informação e Documentação Artísticas) ligado à sua Secretaria.

O IDART promove um trabalho de pesquisa e de criação de um acervo e atua no sentido da preservação, documentação e dinamização da memória artística, particularmente no que diz respeito ã arte contemporânea. Como estou começando uma administração, a primeira impressão que tenho é de que, apesar do grande trabalho desenvolvido pelo IDART, há um certo descompasso entre o que se faz, o que se conquista e o que se usa e me parece que esse é um tema crucial do próprio processo da memória cultural brasileira. Por várias razões, a memória cultural brasileira está muito próxima da perda de memória. Identifica-se muito a memória com um passado que se procura conhecer e cujas dificuldades para reconhecê-lo crescem ainda mais à medida que o tempo passa. Já o IDART luta exatamente com o problema da perda da memória atual, ou seja, tenta salvar a memória atual.

Mário Chamie propôs que se fizesse uma reflexão sobre os métodos que têm sido usados até hoje na preservação da memória cultural nacional. E questionou:

– Acho que, em primeiro lugar, é preciso pensar o que é resgatar a cultura ou o que é resgatar a memória atual. De que maneira resgatar a memória atual? Que procedimento adotar para resgatar essa memória? A primeira coisa é a localização certa daquele produto que realmente pode constituir memória. Em segundo lugar, a documentação também certa disto que pode constituir memória. E aí não há discriminação nenhuma, trata-se apenas de usar os recursos de maneira eficiente. Depois, há o problema do arquivo propriamente dito. Um arquivo deve ter formas de disponibilidade, formas de consulta inteiramente diversas dos esquemas atuais de consulta, que me parecem muito convencionais, baseados em esquemas muito de demanda e nunca de oferta. Acho que o IDART pode funcionar como um arquivo multidisciplinar ou como um arquivo interdisciplinar, mesmo reconhecendo as suas insuficiências e carências. E acho que isso pode acontecer inclusive com outras concentrações, como as cinematecas, que me parecem obedecer ainda a esquemas muito convencionais de arquivo e registro e com fortes razões – como a falta de verbas e de recursos – para continuarem a ser convencionais por mais tempo. Mas eu faria uma sugestão no sentido de que se repensasse esse processo, para que se chegasse a uma comunicação mais dinâmica e interdisciplinar do que a que tem sido feita. E talvez a memória atual necessite de muito mais amparo do que a outra que, por sua vez, também precisa de amparo total.

 

A PERDA DE MEMÓRIA DA TELEVISÃO

 

No debate que se seguiu, participaram o produtor Primo Carbonari; o poeta e ensaísta Mario Chamie, Maria Eugênia Franco; o cineasta Paulo Bastos Martins; o professor Aloísio Magalhães, diretor do IPHAN; o crítico José Carlos Avellar; o cineasta e pesquisador Jurandir Noronha; o montador Mario Murakami; o cineasta Sílvio Tendler; a pesquisadora e ensaísta Maria Rita Galvão e a arquivista-pesquisadora Eugênia Álvaro Moreira, da TV Globo. A coordenação ficou a cargo do Diretor de Operações Não Comerciais da EMBRAFILME e cineasta Carlos Augusto Calil. A seguir, algumas intervenções significativas para o conhecimento de vários pontos relativos à pesquisa e conservação de filmes no Brasil.

Primo Carbonari – Nós, homens do cinejornalismo, vivemos uma grande missão. Assim, quando falam em extinguir o cinejornal, eu acho que o cinejornal não pode ser extinto. Por incrível que pareça, a televisão não está preenchendo o papel do cinejornal, que documenta e guarda. A televisão produz os seus filmes em tape, e no dia seguinte não tem mais nada. Não vi nenhuma coisa que se possa levantar de um arquivo de televisão. Baseio-me na Tupi, que realmente tem um bom acervo e que eu conheço na palma da mão. Mas, muitas vezes, a gente cede material para o telejornalismo. E muita gente ainda pensa que o cinejornal brasileiro não tem servido de muita coisa na televisão. É preciso olhar para a conservação dos cinejornais com muita rapidez, porque o tempo passa com uma velocidade tremenda. E se nos não acharmos as verbas que precisam ser usadas para construir e guardar esse acervo, estaremos automaticamente perdendo a história do povo. Esta é a verdade.

Mário Murakami – Eu só queria colocar aqui uma questão do momento atual. É que as maiores produtoras de filmes no mundo ainda são as televisões e dentro da televisão propõe-se sistematicamente a destruição dos materiais. Mesmo a sua conservação para uma possível utilização a posteriori não é tratada devidamente. Uma outra posição é que há apenas perspectiva de se utilizarem os registros feitos através de processos eletrônicos em confronto com o sistema do negativo, que é considerado ultrapassado. Quase sempre se utiliza, na filmagem em televisão, o material reversível, que vai ao ar tal como é, sendo destruído na sua passagem do telecine para o processo de gravação ou no momento de sua emissão natural.

Carlos Augusto Calil – Uma coisa a que não podemos nos furtar de reconhecer é que quem está fazendo a documentação do presente é a televisão. E esse material é entendido pela televisão como de durabilidade restrita, de uso imediato e descartável. Na prática, isso quer dizer: vai para o ar e acabou. Por isso, a nossa preocupação deve ser a de atrair os arquivos particulares, seja de que natureza forem, para que esse registro da nossa contemporaneidade não se perca em estruturas puramente comerciais. Temos a tendência de tratar esses assuntos de uma maneira cíclica, num círculo vicioso. Nos falamos para nós mesmos, já estamos quase sabendo de cor o que o outro tem a dizer e nunca rompemos um pequeno círculo de pessoas para atingir o que hoje me parece o mais importante sistema de documentação da vida brasileira: a televisão. Todos temos de tomar cuidado com isso, devemos nos aproximar da televisão e tentar intervir nesse processo, pois acho muito perigosa a alienação desse material.

Sílvio Tendler – Eu queria citar um exemplo a propósito disso. Em 1977, estive na TV Itacolomi, em Minas Gerais, fazendo um levantamento. A TV Itacolomi foi uma das primeiras a surgir no país, a primeira em Minas Gerais. Como antigamente o telejornal se fazia todo em filme, a TV Itacolomi tinha um acervo incrível da memória mineira, da vida política brasileira e não só política, mas de cultura, costumes, esportes, tudo. Então, conversando com um funcionário da televisão, que quase chorava, ouvi a seguinte história: um dia chegou lá um diretor precisando de uma sala para montar um escritório e a única sala que havia era a do arquivo. Então ele mandou jogar tudo fora e instalou o escritório. Isso significa que alguns anos da memória nacional foram embora em troca de um lugar para uma mesa. Isso aconteceu também na TV Tupi de Brasília e está acontecendo agora naturalmente. Assim, se daqui a alguns anos a gente quiser fazer filmes documentários baseados nos acervos da televisão, vai ser inviável.

Carlos Augusto Calil – Eu queria trazer um depoimento que não estava previsto na nossa organização e cuja ausência certamente significaria um empobrecimento das discussões. Refiro-me ã ausência de uma informação sobre os arquivos de televisão no nosso trabalho. Assim, foi localizada e espontaneamente se apresentou Eugênia Álvaro Moreira, que trabalha no arquivo da TV Globo, e que poderá dar um pequeno depoimento de como as coisas estão constituídas na televisão, na principal rede de televisão do Brasil e sobre o acervo, a possibilidade de acesso a ele e sua utilização.

Eugênia Álvaro Moreira – Eu ouvi dizer aqui que a televisão não tem arquivo, que as fitas são apagadas e tal... Realmente, é mais ou menos isso que acontece; isto ê, a televisão, por não usar mesmo, por estar muito fora da nossa realidade, por não mostrar esse material, arrisca esses documentos a se perderem. Mas, apesar de tudo, a gente tem um arquivo razoável de filmes e algumas coisas bem difíceis de encontrar em outros lugares. Por exemplo, a gente tem filmes da época de 64, da greve dos marinheiros e tudo isso são coisas que não tem uma utilidade imediata. Então, além disso, a gente tem um arquivo de videocassete com matérias, não só as matérias que foram editadas como as que não entraram nos jornais. Temos, por exemplo, todas as passeatas que tem acontecido. Talvez seja possível que mais tarde a gente comece a manipular esse material, inclusive cedendo para fora. E temos toda uma parafernália técnica, um computador que trabalha para nós e através do qual recuperamos imediatamente qualquer tipo de informação visual que se queira usar; temos um sistema de palavras-chaves, de assuntos, identidades, que se cruzam e nos informam imediatamente. Mas normalmente o arquivo tem uma função bastante passiva. Além de simplesmente atender a uma demanda, nunca se preocupa em dinamizar mais a coisa. No entanto, o funcionamento de toda essa parte do arquivo é bastante bom. As coisas são recuperadas com muita rapidez e, nesse sentido, as informações são bastante eficientes. Acredito que esse sistema seja uma tradução de um sistema de fora, embora o arquivo tenha começado lã de uma maneira bem brasileira, com as pessoas pegando os filmes, guardando e fazendo as fichas, numa forma bem experimental. Mas, depois a coisa sofisticou, cresceu mais e aí eu acho que eles praticamente importaram técnicas da TV americana e também alguma coisa da TV alemã. Mas o que acho mais difícil no arquivo da televisão é de como torná-lo mais agressivo, mais dinâmico, isto é, o fato de ele poder realmente existir enquanto um acervo da História do país, de memória, já que há muita coisa ali dentro, o material é realmente muito bom e importante.

Artigo publicado em: CALIL, Carlos Augusto M.; SIQUEIRA, Sérvulo, KARNSTAEDT, Hans, et alii. Cinemateca imaginária: cinema & memória. Rio de Janeiro: EMBRAFILME/DDD, 1981. 160 p. il.