Enfarte mata em S. Paulo cineasta Paulo Emílio Salles Gomes

SÃO PAULO (O GLOBO) – Um enfarte do miocárdio matou ontem aos 60 anos no Pronto-Socorro do Hospital do Servidor Público Estadual, o cineasta e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, que era professor-doutor da cadeira de Cinema da Universidade de São Paulo e diretor do Departamento de Informação e Documentação Artística da Prefeitura.

Paulo Emílio, que se sentiu mal em seu gabinete de trabalho, no Departamento, foi levado às pressas para o hospital, onde morreu um pouco depois – às 16h45m – na sala de terapia intensiva do Pronto-Socorro.

O enfarte que o vitimou foi extremamente agudo, e mesmo que houvesse mais tempo para medicá-lo, o resultado seria negativo – informou o cardiologista de plantão que o atende.

 

Velório

 

Até o fim da noite o corpo de Paulo Emílio estava no necrotério do Hospital do Servidor à espera da chegada de seu irmão Francisco Salles Gomes, que deveria liberá-lo.

Cogitou-se, a princípio, fazer o velório na Secretaria Municipal de Cultura, mas os amigos de Paulo Emílio decidiram velá-lo mesmo no hospital. Carlos Augusto Calil, que trabalhou com Paulo Emílio na Secretaria de Cultura e na Fundação Cinemateca Brasileira (que Paulo Emílio fundou), disse:

- Paulo Emílio sempre foi um homem não convencional. Nunca ligou para esse tipo de coisa. O que lhe faria diferença, não lhe faltará: o comparecimento de seus alunos, aos quais ele sempre se dedicou.

Paulo Emílio Salles Gomes será sepultado no jazigo da família, no Cemitério da Consolação.

 

O primeiro doutor em cinema

 

Sérvulo Siqueira

 

Paulo Emílio Salles Gomes morre sem ver publicado no Brasil seu livro sobre Jean Vigo escrito na França e editado em 1957. A obra ganhadora do prêmio Armand Tallier – a primeira a ser escrita sobre um dos maiores criadores do cinema – dizia bem da argúcia e inteligência de quem foi o maior ensaísta e pensador do cinema brasileiro. Mesmo na França – país onde Vigo realizou a sua curta obra de 4 filmes e viveu uma vida de trinta e poucos anos, não havia até aquele momento sequer um trabalho mais extenso sobre o cineasta que melhor marcou a passagem do cinema mudo para o sonoro.

Tendo convivido com Vigo nos anos 30, Paulo Emílio havia percebido estar ali um grande criador. Essa capacidade de sintonização Salles Gomes certamente conservou sempre e foi ela que lhe possibilitou – a partir de 1957 – quando retornou ao Brasil constituir-se no grande animador do nascente “cinema novo” brasileiro, através de artigos escritos no jornal O Estado de São Paulo e na revista Visão, em uma atividade contínua que vai até 1963.

É então que, como pioneiro da introdução do cinema nos estudos universitários, mantém um curso de cinema junto à cadeira de Teoria Literária da Faculdade de Filosofia da USP e mais tarde se torna responsável pelo setor de cinema da Universidade de Brasília. Seu interesse pelo cinema brasileiro aumenta na medida em que começa a programar cursos sobre aspectos da nossa história e principalmente sobre Humberto Mauro – cineasta que iria atrair as suas atenções de homem de cinema e intelectual preocupado com o vigor da cultura brasileira.

A colaboração com Ademar Gonzaga, com quem escreveu o livro “Setenta anos de cinema brasileiro” (1966), possibilitou-lhe melhor conhecer Humberto Mauro – o cineasta que foi chamado de “Freud de Cascadura” e que se constituiu no mais importante autor do cinema brasileiro do passado. “Cataguases e Cinearte na formação de Humberto Mauro” foi a tese que lhe valeu o título de Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 1972 – o primeiro dado no Brasil por um trabalho sobre cinema.

Já como doutor, recebeu o troféu Estácio de Sá, em 1973, prêmio a quem havia consagrado mais de 30 anos à cultura cinematográfica. Durante este tempo sua atividade não foi puramente teórica: na década de 60 participou também como ator em filmes brasileiros como Gimba de Flávio Rangel, Luba – A morte em três tempos de Fernando Coni Campos e Teremos Infância?, de Aluysio Raulino.

No desdobramento do vasto campo de interesses sobre os quais incidia a sua inteligência, ocupou recentemente a atenção dos homens de cinema no Brasil ao publicar um ensaio em que procurava elucidar as várias alternativas que podem ser seguidas por um cinema, como o brasileiro, em busca da conquista de seu próprio mercado. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento estabelece um paralelo entre a indústria cinematográfica do Egito e da Índia – países que como o Brasil se esforçam por criar uma linguagem cinematográfica em função de suas condições culturais específicas.

No ensaio, publicado em 1973, considera que “o cinema brasileiro caracteriza-se pela ausência de uma herança cultural distinta da metropolitana”. Para Paulo Emílio Salles Gomes “a incompetência criativa em copiar é o mínimo denominador de originalidade a partir do qual nossos cineastas têm buscado seus caminhos entre a concorrência esmagadora das produções estrangeiras, as vicissitudes políticas internas e a necessidade mais ou menos consciente de abrir janelas para o universo da maioria marginalizada”.

 

Publicada no jornal O Globo em 10 de setembro de 1977