Maurice Merleau-Ponty : O Cinema e a Nova Psicologia*

 

Se agora consideramos o filme como um objeto a perceber, podemos aplicar à sua percepção tudo o que acaba de ser dito da percepção em geral. E vai se constatar que deste ponto do vista a natureza e o significado do filme se esclarecem e a nova psicologia nos conduz precisamente às melhores observações dos estetas do cinema.

Digamos primeiramente que um filme não é uma soma de imagens, mas uma forma temporal. É o momento do lembrar a famosa experiência de Pudóvkin que coloca em evidência a unidade melódica do filme. Pudóvkin faz a tomada de um grande plano do rosto impassível de Mosjukin e projeta-o precedido de um prato de sopa, seguido de uma jovem mulher morta em seu caixão e, por último, de uma criança brincando com um ursinho de pelúcia. Percebe-se que primeiramente Mosjukin olhava o prato de sopa, a moça e a criança, e em seguida, que ele olhava o prato de sopa com um ar pensativo, a moça com tristeza, a criança com um sorriso luminoso, e o público fica maravilhado pela variedade das suas expressões, enquanto que em realidade a mesma tomada havia sido usada por três vezes e era notavelmente inexpressiva. 0 sentido de uma imagem depende então daquelas que a precedem no filme e sua sucessão cria uma nova realidade que não é a simples soma dos elementos empregados. Roger Leenhardt acrescentava, em um excelente artigo, que seria necessário ainda fazer ressaltar a duração de cada imagem: uma pequena duração convém ao sorriso divertido, uma duração média para o rosto indiferente e uma duração prolongada serviria melhor à expressão de dor. Assim Leenhardt extraía esta definição do ritmo cinematográfico: “uma tal ordem de tomadas e para cada uma destas tomadas ou planos uma tal duração, que o conjunto produza a impressão procurada, com o máximo efeito desejado. Há então uma verdadeira métrica cinematográfica cuja exigência é muito precisa e imperiosa. Vendo o filme tente adivinhar o instante onde a imagem, tendo atingido seu ápice, vai desaparecer, vai ser substituída por processos como mudança de ângulo, de distância ou de campo. Aprenda a sentir a inquietação interior que produz uma tomada ou um plano tão longos que freiam o movimento ou esta deliciosa aquiescência íntima em cujo manto passa-se de um plano ao outro" (Leenhardt).

Como há filme, além da seleção de tomadas ou planos, sua ordem e duração – a montagem – também acontece a seleção das cenas ou seqüências,de sua ordem e de sua duração – o que constitui a decupagem - a linguagem aparece como uma forma profundamente complexa no interior da qual ações e reações em grande número se exercem a cada momento,cujas leis permanecem desconhecidas e não foram percebidas até aqui pelo faro ou pelo tato do realizador, que manipula a linguagem cinematográfica como o homem que fala manipula a sintaxe – sem pensá-la expressamente – e sem estar sempre em condições de formular as regras daquilo que observa espontaneamente.

0 que acabamos de dizer do filme visual se aplica também ao filme sonoro, que não é uma soma de palavras ou ruídos mas também uma forma. Há tanto um ritmo do som como da imagem, uma montagem dos ruídos e dos sons, cujo exemplo Leenhardt encontrava no velho filme sonoro Broadway Melody.

"Dois atores estão em cena. Do alto das galerias podemos ouvi-los declamar. Imediatamente após um grande plano, ruídos de cochichos, percebe-se uma palavra que eles trocam em voz baixa".

A força expressiva desta montagem consiste em fazer sentir a coexistência, a simultaneidade de vidas num mesmo mundo – os atores para nós e para si mesmos – assim como, repentinamente, a montagem visual de Pudóvkin ligava o homem e seu olhar aos espetáculos que o envolviam. Gomo o filme visual não é a simples fotografia em movimento de um drama e como a escolha e a reunião de imagens constituem para o cinema um meio de expressão original, assim também o som no cinema não é a simples reprodução fonográfica dos ruídos e das palavras, mas comporta uma certa organização interna que o criador do filme deve inventar. 0 verdadeiro ancestral do som cinematográfico não é o fonógrafo, mas a montagem radiofônica.

Isto não é tudo. Acabamos de considerar a imagem cinematográfica e o som lado a lado. Mas, na realidade a sua ligação (reunião) introduz ainda uma vez um fato novo e irredutível nos elementos que entraram em sua composição. Um filme sonoro não é um filme mudo acrescido de sons e palavras que seriam destinadas senão apenas para completar a ilusão cinematográfica. A relação entre som e imagem é muito mais estreita e a imagem é transformada pela proximidade do som. Podemos perceber isso muito bem na projeção de um filme dublado, onde se ouve vozes de gordos faladas por magros, jovens falando por velhos, grandes falando por pequenos, o que é um absurdo se, como dissemos, a voz, a silhueta e o caráter formam um todo indecomposto (estruturado). Não é por acaso que em certos momentos os personagens se calam e em outros eles falam. A variação e a alternância das palavras e do silêncio é dirigida pelo maior efeito da imagem. Como dizia Malraux (Verve, 1940) há três espécies de diálogos. Primeiramente o dialogo de exposição, destinado a fazer conhecer as circunstâncias da ação dramática: o romance e o cinema evitam-no de comum acordo. Em seguida o diálogo de tom que nos fornece a entonação de cada personagem, e que domina por exemplo em um Proust, cujos personagens são mal percebidos e, por outro lado, são facilmente reconhecidos a partir do momento em que começam a falar. A prodigalidade ou avareza das palavras, sua exatidão ou sua afetação, fazem sentir a essência de um personagem mais seguramente que muitas descrições. Não há entretanto diálogo de tom no cinema, a presença visível do ator com seu próprio comportamento não se presta a isso senão excepcionalmente. Enfim, há um diálogo de cena, que nos apresenta o debate e o confronto dos personagens, este é o principal do diálogo no cinema. Então, ele está longe de ser constante. No teatro, fala-se sem parar mas no cinema não. Nos filmes mais recentes, dizia Malraux, o diretor passa ao diálogo depois de grandes trechos de mudez exatamente como o faz um romancista, depois de longos trechos de relato. A separação do silêncio e do diálogo constitui então, acima da métrica visual e da métrica sonora, uma métrica mais complexa que superpõe suas exigências àquelas das duas primeiras. Seria necessário ainda, para ser completo, analisar a função da música no interior desse conjunto. Digamos somente que ela deve se incorporar e não se justapor. Ela deverá existir então não para preencher os vazios sonoros, nem para comentar de maneira exterior os sentimentos e as imagens, como acontece em tantos filmes onde a tempestade de cólera deflagra uma tempestade de metais e onde a música imita laboriosamente um ruído de passos ou a queda de uma moeda sobre o solo. Ela deverá intervir para apontar uma mudança de estilo no filme como, por exemplo, a passagem de uma cena de ação no interior do personagem para uma evocação de cenas anteriores ou de descrição de uma paisagem; de uma maneira geral ela acompanha e contribui para realizar, como dizia Gaubert, uma ruptura do equilíbrio sensorial.

Enfim, não é necessário que ela seja um outro meio de expressão justaposto à expressão visual, mas que por meios rigorosamente musicais – ritmo, forma, instrumentação – ela recrie sob a matéria plástica da imagem uma matéria sonora, por meio uma misteriosa alquimia de correspondências que deveria ser o próprio fundamento do ofício do compositor de filme; que ela nos torne, enfim, fisicamente sensíveis ao ritmo interno da imagem sem que para isso tenha que se esforçar em traduzir o conteúdo sentimental, dramático ou poético (Gaubert).

A palavra, no cinema, não é encarregada de acrescentar idéias às imagens nem sentimentos à música. 0 conjunto nos fala de alguma coisa muito precisa que não é nem um pensamento, nem uma evocação de sentimentos de vida.

Que significa, que quer então dizer o filme?

Cada filme conta uma história, vale dizer um certo número de acontecimentos que residem na tomada dos personagens e que podem ser também contados em prosa, como efetivamente o são no roteiro após o qual o filme é feito. O cinema falado, com seu diálogo freqüentemente envolvente, completa nossa ilusão. Concebe-se então geralmente o filme como a representação visual e sonora, a reprodução tanto fiel quanto possível de um drama que a literatura poderia evocar apenas com palavras e que o cinema tem a boa fortuna de poder fotografar. "O que mantém o equívoco é que há com efeito um realismo fundamental do cinema; o ator deve representar naturalmente, a encenação deve ser tão verdadeira quanto possível porque o poder da imagem que distila a tela", diz Leenhardt, "é tal que a menor estilização chocaria".

Mas isto não quer dizer que o filme seja destinado a nos fazer ver e ouvir o que nós veríamos e ouviríamos se assistíssemos na vida à história que ele nos conta nem de outra forma nos sugerir, através de uma situação edificante, alguma concepção geral da vida. 0 problema que encontramos aqui, a estética já encontrou a propósito da poesia e do romance. Há sempre no romance uma idéia que se pode resumir em algumas palavras, um roteiro que contém algumas linhas. Há sempre num poema alusão a coisas ou à idéias. E entretanto o romance puro, a poesia pura não têm simplesmente por função nos fazer significar estes fatos, idéias ou coisas, porque assim o poema poderia ser traduzido exatamente em prosa e o romance não perderia nada ao ser resumido. As idéias e os fatos não são senão os materiais da arte e a arte do romance consiste na escolha das perspectivas (tal capítulo será escrito do ponto de vista de tal personagem, tal outro do ponto de vista de outro personagem), e do tempo variável do relato; a arte da poesia não consiste em descrever didaticamente as coisas ou em expor as idéias, mas em criar uma máquina da linguagem que, de uma maneira quase infalível, coloca o leitor num estado poético. Da mesma maneira, há sempre no filme uma história e freqüentemente uma idéia (por exemplo, em Etrange sursis, a morte não é terrível senão para quem ela não é consentida), mas a função do filme não é a de fazer conhecer os fatos ou a idéia. Kant diz com profundidade que no conhecimento a imaginação trabalha em função do entendimento, enquanto que na arte o entendimento trabalha em proveito da imaginação. Vale dizer; a idéia e os fatos prosaicos não estão lá senão para dar ao criador a ocasião de procurar neles emblemas sensíveis e de por meio deles traçar o monograma sensível e sonoro. 0 sentido do filme é incorporado ao seu ritmo como o sentido de um gesto é imediatamente lisível no gesto, o filme não quer dizer nada senão ele mesmo. A idéia é aqui considerada no estado nascente, ela emerge da estrutura temporal do filme, como, um quadro, da coexistência de suas partes. É felicidade da arte mostrar como alguma coisa se põe a significar, não por alusão a idéias já formadas ou adquiridas, mas pelo arranjo temporal ou espacial dos elementos. Um filme significa, como vimos, muito mais que uma coisa significa: um e outro não falam a um entendimento separado, mas se dirigem ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo ou os homens e de coexistir com eles. É verdade que, no cotidiano da vida, perdemos de vista este valor estético da menor coisa percebida. É verdade também que no real a forma percebida não é perfeita, há sempre instabilidades, indefinições, arestas e um excesso de matéria.

O drama cinematográfico tem, por assim dizer, uma estrutura mais rigorosa que os dramas da vida real, ele se passa em um mundo mais exato que o mundo real. Mas, enfim, é pela percepção que nós podemos compreender o significado do cinema: o filme não se pensa, ele se percebe.

Eis porque a expressão do homem pode ser no cinema tão aguda e sensível; o cinema não nos dá, como o romance fez durante longo tempo, os pensamentos do homem, ele nos mostra sua conduta ou seu comportamento, ele nos oferece diretamente esta maneira especial de ser no mundo, de tratar as coisas e os outros, o que é para uns visível num gesto, no olhar, na mímica, e que põe em evidência cada pessoa que nós conhecemos.

Se o cinema quer nos mostrar um personagem com vertigem, não deverá tentar mostrar a paisagem interior da vertigem, como Daquin em Premier de Cordée e Malraux em Sierra de Teruel (Espoir) quiseram fazer. Nós sentimos muito melhor a vertigem vendo-a do exterior, contemplando este corpo desequilibrado que despenca sobre um rochedo ou esta caminhada vacilante que tenta se adaptar a não se sabe qual perturbação do espaço. Para o cinema, como para a psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio são comportamentos. Esta psicologia e as filosofias contemporâneas têm a característica comum de nos apresentar não mais, como as filosofias clássicas, o espírito e o mundo, cada consciência e as outras, mas a consciência projetada no mundo, submetida ao olhar dos outros e apreendendo dele aquilo que ela é. Uma boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste em se espantar diante dessa inerência do eu ao mundo, do eu ao outro, em nos descrever este paradoxo e esta confusão, em fazer ver os liames do sujeito e do mundo, do sujeito e dos outros, em vez de explicá-los como o faziam os clássicos, por meio de alguns recursos ao espírito absoluto. Ora, o cinema está particularmente apto a fazer aparecer a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não é surpreendente que a crítica possa, a propósito de um filme, evocar a filosofia. Em um relato produzido no Défunt récalcitrant, Alexandre Astruc conta o filme em termos sartreanos: esta morte que sobrevive a seu corpo e é obrigada a habitar em outro, permanece a mesma para si, mas é estranha para o outro e não poderia permanecer em repouso ate que o amor de uma jovem a reconheça através de sua nova embalagem e seja restabelecida a concordância do eu para si e do eu para o outro. Sobre isso o Canard Enchaîné se zanga e quer remeter Astruc às suas pesquisas filosóficas. A verdade é que todos os dois têm razão: um porque a arte não é feita para expor idéias, e o outro porque a filosofia contemporânea não consiste em encadear conceitos, mas em descrever a mescla da consciência com o mundo, seu engajamento em um corpo, sua coexistência com os outros, e este assunto é cinematográfico por excelência.

Se, enfim, nós perguntamos porque esta filosofia se desenvolveu justamente na época do cinema, não deveremos evidentemente dizer que o cinema vem dela. O cinema é primeiramente uma invenção técnica onde a filosofia não é para nada. Mas não deveremos dizer além disso que esta filosofia vem do cinema e o traduz sobre o plano das idéias. Porque pode-se usar mal o cinema, e o instrumento técnico uma vez inventado deve ser retornado por uma vontade artística e como que inventado uma segunda vez, antes que se comece a.fazer verdadeiros filmes. Se então a filosofia e o cinema estão de acordo, se a reflexão e o trabalho técnico caminham num mesmo sentido, é porque o filósofo e o cineasta têm em comum certa maneira de ser, um certo ponto de vista do mundo que é aquele de sua geração. Ainda uma vez, uma ocasião de verificar que o pensamento e as técnicas se correspondem e que, segundo a frase de Goethe, "o que está dentro também está fora".

 

* Fragmento da conferência Le cinéma et la nouvelle psychologie, pronunciada na Escola de Altos Estudos Cinematográficos, em 13 de março de 1945.

 

          Tradução de Sérvulo Siqueira (Outubro de 1968)