Fragmentos da Carta Sétima de Platão

  

(...) Outrora, em minha juventude eu sentia o que sentem tantos jovens. Eu tinha o projeto, no dia em que pudesse dispor de mim mesmo, de militar na política. (...) Eu imaginava que aqueles que governavam a cidade restabeleceriam os caminhos da injustiça para os da justiça. Observava também ansiosamente o que eles iriam fazer. Então vi estes homens nos fazerem ter saudades da antiga ordem de coisas como de uma idade de ouro. Entre outros, meu querido velho amigo Sócrates, que eu não temo proclamar o homem mais justo de seu tempo, a quem quiseram associar a outros que estavam encarregados de conduzir à força um cidadão para matá-lo, e isso com o objetivo de envolvê-lo a qualquer preço em sua política.  Sócrates não obedeceu e preferiu se expor aos maiores perigos do que tornar-se cúmplice de ações criminosas. Diante de todas essas coisas e de outras ainda do mesmo gênero e não de menor importância, eu me indignei e me afastei das misérias dessa época.

(...) Mais tarde, ainda que sem muita energia, de novo senti desejo de me envolver nos assuntos do Estado. Como este era um período de convulsões, ocorriam então muitos fatos revoltantes e não é surpreendente que as revoluções tenham dado vazão a que se multiplicassem os atos de vingança pessoal. (...) Vendo isso e observando os homens que conduziam a política, à medida em que eu conhecia as leis e os costumes e que mais avançava em idade, mais me parecia difícil administrar adequadamente os negócios do Estado. (...) Além do mais, a legislação e a moralidade estavam corrompidas a um ponto tal que eu, a princípio cheio de ardor para trabalhar em proveito do bem público, acabei por me atordoar. Contudo, eu não deixava de espreitar os indícios possíveis de uma melhoria nos acontecimentos e especialmente no regime político mas esperava sempre o bom momento para agir. Finalmente, compreendi que em nossa época todos os Estados são mal governados porque as suas leis se tornam cada vez mais ineficazes quando não se tomam medidas enérgicas associadas a circunstâncias oportunas. Fui então irremediavelmente levado a louvar a filosofia verdadeira e a proclamar que somente sob sua luz pode-se  reconhecer onde está a justiça na vida pública e na vida privada. Assim os malefícios não deixarão de existir para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder e que os governantes das cidades, por uma graça divina, se disponham verdadeiramente a filosofar.

(...) Nas minhas relações com Dion, que era ainda muito jovem, desenvolvendo-lhe minhas impressões sobre o que me parecia melhor para os homens e incitando-o a realizá-las, eu quase não percebia que de uma certa maneira eu trabalhava inconscientemente para a queda da tirania. Porque Dion, muito receptivo à todas as coisas e especialmente aos discursos que eu lhe fazia, me compreendia admiravelmente, melhor ainda do que todos os jovens que conheci. A partir daí, ele decidiu levar uma vida diferente da que adotavam a maior parte dos jovens italianos ou sicilianos, dando mais importância à virtude do que a uma existência de prazeres e sensualidade. Desde então, a sua atitude se tornou cada vez mais odiosa aos partidários do regime tirânico, e isto até a morte de Denys.

Depois deste acontecimento, ele formulou o projeto de guardar não somente para si esses sentimentos que lhe haviam feito adquirir a verdadeira filosofia. (...) Por outro lado,  ele considerava que eu deveria chegar o mais rápido possível a Siracusa para ajudá-lo em seus objetivos: ele não esquecia a facilidade com que a nossa ligação lhe havia inspirado o desejo de uma vida bela e feliz. Se inspirasse esse mesmo desejo a Denys, como estava tentando, ele teria a maior esperança de estabelecer em todo o país, sem massacres, sem crimes, sem todos os males que acontecem atualmente, uma vida feliz e verdadeira. (...) Em suma, nunca antes como no presente se deparou a possibilidade de realizar a união nos mesmos homens da filosofia e da administração das cidades. (...) Como eu refletia e me perguntava com hesitação se seria necessário ou não me colocar a caminho e ceder a estas solicitações, o que fez no entanto pender  a balança foi o pensamento de que se eu um dia deveria colocar em execução os meus planos legislativos e políticos, esse era o momento de tentá-lo: bastava apenas persuadir de modo convincente um único homem e tudo estaria ganho.

(...) Foram razoáveis e justos os meus motivos e todas as minhas ações?

(...) O conselheiro de um homem doente, se esse doente segue um mau regime, não tem como seu primeiro dever fazê-lo modificar o seu gênero de vida? Se o doente quiser obedecer, ele fará então novas prescrições. Se ele se recusa, é dever de um homem correto e de um verdadeiro médico não mais se prestar a novas consultas. Aquele que se resignasse, eu o consideraria, ao contrário, um fraco e um charlatão. O mesmo ocorre com o Estado, quer ele seja conduzido por um ou mais dirigentes.

Tudo isso, eu o disse para que sirva de advertência aos amigos e pais de Dion. Que a Sicília não seja submetida aos déspotas, não mais do que qualquer outra cidade, – pelo menos em minha opinião –  mas às leis. Porque isso não é bom para os que se submetem nem para aqueles que dominam, assim como para os seus filhos e os filhos dos seus filhos.  

(...) O homem que aspira às riquezas e que tem a alma pobre não escuta essa linguagem. Se ele as escuta, pensa que deve rir e sem pudor se lança de todos os lados, como uma besta selvagem, sobre tudo o que pode  comer ou beber ou tudo o que é capaz de oferecer até a saciedade o indigno e grosseiro prazer que se chama erradamente de amor. Cego que não vê a quais de suas ações se vincula a impiedade, que de alguma forma é sempre ligada a cada um dos seus crimes, impiedade que a alma forçosamente injusta carrega com ela, e sobre esta terra e sob a terra e todas as suas vergonhosas e miseráveis peregrinações. (...) Contudo (Denys) tinha o poder supremo e se ele tivesse unido verdadeiramente em uma só pessoa a filosofia e o poder teria feito transparecer aos olhos de todos, gregos e bárbaros, e teria gravado de forma indelével no espírito de todos essa verdade de que nem a cidade nem o indivíduo poderiam ser felizes sem uma vida de sabedoria comandada pela justiça, desde que eles mesmos possuam esta virtude ou que tenham sido encaminhados e instruídos de maneira adequada para os procedimentos de alguns mestres piedosos.

(...) Acredito que é um mal menor ser vítima de grandes crimes ou injustiças do que cometê-las. (...) Dion, seguindo esta linha de conduta, preferiu sofrer injustiças que cometê-las, tomando não obstante suas precauções para evitar se transformar em uma vítima. No entanto, sucumbiu no momento de atingir seus objetivos, a vitória sobre seus inimigos. Seu destino não tem nada de surpreendente. Um homem justo, precavido e dotado de capacidade de reflexão não pode jamais se enganar por completo sobre o caráter dos homens injustos, mas não há nada de espantoso que ele sofresse o destino de um piloto que não ignora de forma alguma o perigo de uma tempestade mas não pode prever a sua violência extraordinária e inesperada e acaba forçosamente por submergir.  Eis o que de uma certa forma também iludiu Dion. A malícia daqueles que o perderam não lhe escapava por certo, mas a profundidade da sua tolice, da sua maledicência e da sua cobiça, isso era o que ele não podia suspeitar. Esse erro o levou ao túmulo e um luto imenso se derramou sobre a Sicília.

(...) Se então as minhas explicações parecem razoáveis e se os motivos que dão razão aos fatos são considerados satisfatórios, a exposição que venho de concluir terá atingido a boa e justa medida.

 

Traduzido do francês por Sérvulo Siqueira