A Guerra do Paraguai

 

Com duras consequências para todos os paises envolvidos, a Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado internacional ocorrido na América do Sul. Após cruéis combates ocorridos entre dezembro de 1864 e março de 1870, as nações da Tríplice Aliança - Brasil, Argentina e Uruguai – derrotaram o Paraguai, pondo fim a uma guerra da qual participaram centenas de milhares de homens, mulheres e crianças. 

O Brasil enviou em torno de 150 mil homens para o conflito, sofrendo perdas da ordem de 50 mil efetivos, que chegaram a 60 mil vidas humanas, quando é considerada a população civil.

A Argentina e o Uruguai tiveram baixas ainda maiores, estimadas em 50% das tropas de combate. No entanto, foi o Paraguai, país derrotado, quem terminou por perder cerca de 600 mil pessoas entre civis e militares - além de 40% do seu território, anexado pelos países vencedores. 

Após os combates, a população do Paraguai foi reduzida em 75%, o que caracteriza um genocídio cujas circunstâncias jamais foram devidamente apuradas. 

Até hoje, os documentos secretos relativos a este conflito de tamanhas proporções - que consolidou a hegemonia colonial da Inglaterra na região por um longo tempo - jamais foram divulgados ao conhecimento da população dos países envolvidos. (SAS)

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Despacho privado do marquês de Caxias, marechal de exército na guerra contra o governo do Paraguai, à S. M. o imperador do Brasil, Dom Pedro II.

 

Quartel general em marcha em Tuiucué,

18 de Novembro de 1867

 

Majestade,

 

(...) Não obstante o esforço colocado em formar a consciência das tropas, de que o lamentável acontecimento do Tuiuti foi favorável para nossas armas, por ter o pequeno resto de nossas forças naquele campo restabelecido a posse das posições perdidas em mãos do inimigo, durante o combate, tais têm sido seus efeitos, como já tive a honra de informar a V. M., que é moralmente impossível sufocar a profunda comoção que esse deplorável acontecimento produziu, e ainda está produzindo, em nossas tropas.

 

(...) O contraste de Tuiuti foi adormecido por esta inesperada e felicíssima perspectiva; mas, pesaroso me é ter que informar a V. M., que se grande foi a esperança, o ânimo e o contentamento dos exércitos imperiais, de que tenho a muito distinta honra de ser seu comandante-em-chefe, em grau ainda muito maior foi sua crescente desilusão e seu desmoralizador desalento, quando se viu, por feitos práticos de lamentáveis efeitos e conseqüências, que o inimigo não só conserva seu vigor e atividade, depois de tantos dias desse cerrado sitio, senão que burlando nossas esperanças e nossos meios, abriu um caminho grande e largo de comunicação pela parte do Chaco, que se encontra protegido e fora do alcance de nossas armas.

 

(...) Todos os encontros, todos os assaltos, todos os combates havidos desce Coimbra e Tuiuti mostram e sustentam, de uma maneira incontestável, que os soldados paraguaios são caracterizados por uma bravura, por um arrojo, por uma intrepidez e por uma valentia que raia à ferocidade sem exemplo na história do mundo.

 

(...) Isto mostra inamovivelmente que, se nós tivéssemos duzentos mil homens para continuar a guerra ao Paraguai, haveríamos, em caso de triunfo, conseguido reduzir a cinzas a população paraguaia inteira; e isto não é exagerado, porque estou de posse de dados irrefutáveis que antecipadamente provam que, se acabássemos de matar os homens, teríamos que combater com as mulheres, que sucederiam a estes com igual valor, com o mesmo ardor marcial, e com o ímpeto e a constância que inspiram o exemplo dos parentes queridos, e nutrem a sede de vingança. E seria admissível um triunfo possível sobre um povo dessa natureza? Podemos, acaso, contar com elementos para consegui-lo? E, se ainda o conseguíssemos, como o haveríamos conseguido? E, depois, o que haveríamos conseguido? Como haveríamos conseguido, fácil é saber-se, tomando por exalo o infalível antecedente do tempo que temos empregado nessa guerra, os imensos recursos e elementos esterilmente empregados nela; os muitos milhares de homens esterilmente também sacrificados nela; em uma palavra, os incalculáveis e imensos sacrifícios de todo gênero que ela nos custa; e se tudo isto não tem dado por resultado mais que nossa abatida situação, quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e quantos elementos e recursos precisaremos para terminar a guerra, isto é, para converter em fumo e pó toda a população paraguaia, para matar até o feto do ventre da mulher, e matá-lo não como a um feto, mas como a um adail. E o que teríamos conseguido também é difícil dizer: seria sacrificar um número dez vezes maior de homens do que são os paraguaios; seria sacrificar um número dez ou vinte vezes maior de mulheres e crianças ao que são as crianças e mulheres paraguaias; seria sacrificar um número cem mil vezes maior de toda classe de recursos do que são os recursos paraguaios; seria conquistar não um povo, mas um vasto cemitério em que sepultaríamos no nada toda a população e recursos paraguaios, e cem vezes mais a população e recursos brasileiros.

 

(...) Nossas tropas, virtualmente opostas à milícia e à carreira militar, em face aos sofrimentos, disciplina e perigos que lhes são inerentes; nossas tropas, que o amor aos gozos de família é superior e dominante a todo outro sofrimento, e que hoje se encontram a milhares de léguas desses gozos, e muito mais distantes ainda da esperança de voltar a eles; nossas tropas, que sem antecedentes, sem predisposição e sem hábitos militares se têm arrojado de frente a uma campanha de mais sacrifícios, de mais sangrentas e formidáveis batalhas, e todas funestas, de quantas na América e na Europa apresenta a história contemporânea; nossas tropas, que abandonam pela ação da força seus caros lares e se lançam a remotos climas, e um clima que por si só é bastante para combatê-las e consumi-las, como tem sucedido, nossas tropas, que antes de serem soldados têm sido dizimadas ou destroçadas pelas armas inimigas ou a peste; nossas tropas que se comovem de reservas de crianças e anciões, que têm vindo a impregnar-se da desmoralização dos que com a morte têm conduzido sua carreira, e que, debaixo do constante açoite do inimigo, não conseguem respirar mais que o mefítico ar da desesperação; nossas tropas, misturadas com tantos estrangeiros, muitos sem pátria, como os franceses, ingleses, austríacos, suíços, prussianos, italianos, norte-americanos, etc., e outros traindo sua pátria como os argentinos e orientais, sem aspiração legítima alguma em favor da causa do Império, e geralmente todos eles corrompidos, e por demais antipáticos aos súditos brasileiros, e vice-versa; nossas tropas, que não têm à frente mais que ruínas, montões de cadáveres e cruas derrotas em que se inspirar, e que afinal se encontram reduzidas já materialmente a uma quinta parte do que foram, e moralmente a uma qüinquagésima parte.

 

(...) ... as forças argentinas e orientais estavam sempre na vanguarda, sofriam a pior parte, e por último acabaram-se tornando apenas um pequeno resto, e resto pernicioso.

 

(...) Já nas poucas forças argentinas que existem, houve nesses dias um começo de motim que foi sufocado, mas creio que o fogo não se extinguiu e precisamente não nasceu nessas forças, senão que veio da República Argentina e ali tem seu foco; o que me faz temer que, de um momento a outro, arrebente uma sublevação que será de todos os modos funesta, porque dará lugar a um combate entre as tropas argentinas e brasileiras; o êxito de nossa parte se faz duvidoso, porque, embora nossas forças sejam superiores em numero às argentinas, estas, com o arrojo que caracteriza as conspirações, com as vantagens de poder tomar as melhores posições de apoio, e com o amparo que em todo evento poderão encontrar no inimigo, isto é, se não fosse sua eficaz proteção, nossas forças se encontrariam envoltas em uma difícil e sumamente crítica situação.

 

(...) Meus sérios temores nesse sentido me tem feito conceber a idéia de colocar na vanguarda a este resto de forças argentinas para que, se o inimigo nos atacar, pereçam elas como por acaso entre dois fogos, como temos feito em muitas ocasiões anteriores; e, em caso de conspiração, fiquem nossas forças asseguradas por suas posições, e assegurada também sua retaguarda; embora, por outra parte, estas forças rebeldes, que estão contagiadas já da idéia prática de conspiração que pulula em todas as partes da República Argentina contra a causa imperial sobre o Paraguai, porque o mistério retirou suas vendas e as consequências já começam a sentir-se e a temer-se, que farão na vanguarda? Nada mais natural do que conjeturar, senão que se ponham de acordo com o inimigo, franqueiem suas posições a eles em caso de um ataque a nós, incorporem-se e operem conjuntamente sobre o exército brasileiro; ou passem simplesmente ao inimigo debaixo de expresso pacto que garanta suas vidas e seus fitos passados. Já vê V. Majestade que a aliança com o general Mitre e o general Flores hoje já não existe quanto às condições nela propostas; e que se de alguma forma algo se cumpriu pela desaparição de mais de vinte mil argentinos, e mais de oito mil orientais, hoje que estes já não vêm ao campo de guerra, e se vêm aumentam os perigos que nos cercam, parece de extrema conveniência que os exércitos de V. Majestade fiquem estritamente reduzidos aos súditos brasileiros; mas, se isto se fizer assim, não teremos, pelo que deixo exposto a V. Majestade, nem como sustentar a campanha, nem a guerra contra o Paraguai, e correremos o perigo de que a um golpe do inimigo desapareçam de sobre a terra os exércitos de V. Majestade, e então, que será do Império? V. Majestade deve muito bem supor.

 

(...) Que V. Majestade, sobrepondo-se ainda ao direito constitucional, havia aplainado todas as garantias que este fornecia ao povo brasileiro, e havia ordenado a apreensão capciosa e coercitiva de homens, agarrando, por este meio, a pais de família, a anciões, a toda classe de trabalhadores e artistas, e até a crianças, para encarcerá-los e mandá-los a nossos exércitos; mas que, em Pernambuco, na Bahia e em quase todas as províncias do Império aconteceram sublevações armadas, destruição de cárceres e manifestas conspirações contra esses meios violentos e anticonstitucionais, com tendência marcada de uma aberta oposição à guerra, e que, ameaçando muito seriamente a unidade do Império, havia Vossa Majestade, para aquietar o espírito público, feito o que fez com as Repúblicas Argentina e Oriental: prometido a paz próxima e algo mais, que já não marcharia um só brasileiro à guerra. Que, por estas razões, e outras não menos capitais que deixo de mencionar, como o relativo a algumas repúblicas sul-americanas, os últimos sucessos do México com o imperador Maximiliano, e os Estados Unidos do Norte, V. Majestade havia tido por bem comunicar-me sua indeclinável resolução, com consentimento de minha responsabilidade, de sair de nosso plano de defesa; mas que sem abandoná-lo, ative minhas operações até chegar ao rio Paraguai, e fechar ali o sítio ao inimigo por mar e por terra para alcançar o desejado objetivo de fazê-lo render-se sem condições.

 

(...) Os perigos que cercam a situação do exército e armada de Vossa Majestade no Paraguai, não é possível narrá-los detalhadamente sem cair, quem o faça, na suspeita de que se encontra dominado de um grande medo, que está atemorizado e acovardado; mas confio que V. Majestade, fazendo justiça aos meus antecedentes e meus sentimentos, não encontrará nessa exposição senão rasgos de lealdade e retidão, de amor à sorte do Império de Vossa Majestade.

 

(...) Vossa Majestade, não duvido, haverá de ver o que vejo através dessa situação: de que nossos exércitos, quanto a sua organização, que é, no geral a combinação dos elementos constitutivos dos mesmos exércitos, baseada nos interesses militares, políticos e econômicos do país; e que têm por objeto especial: garantir a segurança interna e externa do país, desarmando a seus inimigos; sustentar e defender as instituições pátrias; desafrontar a honra nacional e manter ilesos os direitos do Estado em suas relações com as outras potências, têm deixado de existir. Como têm deixado de existir como o meio poderoso e único de sustentar a guerra contra o Paraguai, e de chegar aos fins do governo imperial nela. Não são, pesaroso é dizê-lo, senão um corpo que contém as flagrantes infrações do direito público interno do Império; um corpo que, longe de salvar a honra e sustentar seus interesses, a mancham e o põe em iminente perigo; e um corpo que, longe de prometer a consecução dos fins da guerra, compromete a vitalidade do Império, e engrandece ao inimigo, enaltecendo sua fama, que já tem subido a um grau eminentíssimo, e que, sem mais acidentes que o feito de sua resistência por tanto tempo, é bastante para que, ante o mundo, ante a história, ante nós mesmos, e para si mesmo repute uma grande vitória ganha em cada hora, em cada minuto, em cada instante, e vitória, Majestade, sobre nós, sobre o Império, sobre a Aliança e sobre nossos recursos.

 

(...) Quanto ao general Flores, havendo-se ele se retirado ex abrupto do campo da guerra, e não concorrido com um só homem, claro é que não tem direito a gestão alguma sobre os aros de V. Majestade na solução da questão; devendo considerar-se, por todos os respeitos, como um membro passivo das deliberações de V. Majestade. O general Mitre está resignado plenamente e sem reservas às minhas ordens; ele faz tudo quanto lhe indico, como tem estado muito de acordo comigo, em tudo, até a que os cadáveres coléricos sejam jogados desde a esquadra como de Itapiru às águas do Paraná, para levar o contágio às populações ribeirinhas, principalmente as de Corrientes, Entre Ríos e Santa Fe, que lhe são apostas; mas convencido de nossa situação, e ainda que com a paz fiquem nulas suas aspirações de vice-reinado, compreende também que é razoável e imperioso abandoná-las, e que a paz é o único meio salvador de nossa perigosa situação. O general Mitre está também convencido que devem exterminar-se os restos de forças argentinas que ainda lhe sobram, pois que delas não divisa senão perigos para sua pessoa.

 

(...) A sombra dessa guerra, nada pode livrar-nos de que aquela imensa escravatura do Brasil dê o grito de sua divina e humanamente legítima liberdade; e tenha lugar uma guerra interna, como no Haiti, de negros contra brancos, que sempre tem ameaçado o Brasil, e desapareça dele a escassíssima e diminuta parte branca que há.

 

Todas essas considerações e outras que ainda omito, por deixá-las à ilustrada penetração de V. Majestade, fazem-me insistir na idéia da paz. A paz com López, a paz, Imperial Majestade, é o único meio salvador que nos resta. López é invencível, López pode tudo; e sem a paz, Majestade, tudo estará perdido e, antes de presenciar esse cataclisma funesto, estando eu à frente dos exércitos imperiais, impetro a V. Majestade a especialíssima graça de outorgar-me minha demissão do honroso posto que V. Majestade me tem confiado.

 

Entendo cumpridos meus altos deveres, de marechal e comandante-em-chefe dos exércitos de V. Majestade, de leal súdito de V. Majestade, das caracterizadas dignidades que me ligam à casa imperial e de minha lealdade de cidadão, rogo a V. Majestade, queira dignar-se receber em boa hora esta minha exposição privada. (...)

 

O Marquês de Caxias.

 

 

 Fonte: Chiavenatto, Julio José. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, s.d.