Galileo Galilei e o telescópio
De todos os instrumentos astronômicos nenhum teve um efeito imediato mais dramático no curso da ciência do que o telescópio. A idéia do telescópio certamente precedeu de longa data a sua realização. Lentes comuns, como as chamamos hoje, foram conhecidas desde os tempos mais remotos, não apenas como gotas de água e gelo mas como o resultado de um processo de criação espontâneo no polimento de gemas transparentes, cristais de rocha e, no devido tempo, do vidro. No final do século XIII, lentes convergentes (convexas) eram usadas para óculos de leitura (a palavra latina spectaculum era empregada para uma única lente no início do mesmo século). No século XVII, já havia um estabelecido comércio de óculos de leitura e é de certa forma surpreendente que a descoberta de um método de combiná-las em um telescópio – e mais tarde em um microscópio composto – tenha levado tanto tempo para surgir. Galileo Galilei, professor de matemática na Universidade de Pádua, foi um engenhoso construtor de instrumentos. Para complementar seu magro salário, ele mantinha uma pequena loja na cidade onde vendia aparelhos científicos. Em maio de 1609, tomou conhecimento dos telescópios e começou a construí-los. Esses instrumentos eram vistos principalmente como elementos de observação da terra e do mar. Galileo, no entanto, decidiu usá-los em direção ao céu. Os impressionantes resultados, publicados em março de 1610, em um panfleto de 24 páginas intitulado O Mensageiro Sideral - redigido num estilo conciso que nenhum cientista havia empregado antes - provocaram uma revolução no mundo do conhecimento da época. (SAS)
(...) Grandes sem dúvida são as coisas que neste breve tratado proponho à contemplação dos estudiosos da natureza. Grandes, digo, seja pela excelência da matéria mesma, seja por sua inaudita novidade, seja enfim pelo instrumento em virtude do qual estas coisas se desvelaram aos nossos sentidos.
Enumeração dos descobrimentos
Grande coisa é sem dúvida acrescentar à numerosa multitude de estrelas fixas que até os nossos dias puderam ser observadas por meio da faculdade natural outras inumeráveis nunca vistas anteriormente, expondo-as patentemente ante os olhos em um número mais de dez vezes superior ao das antigas já conhecidas. Belíssima coisa e sobremaneira agradável à vista é poder contemplar o corpo lunar, afastado de nós quase sessenta diâmetros terrestres, tão próximo como se estivesse somente a duas dessas medidas de maneira que seu diâmetro apareça quase trinta vezes maior, a superfície aproximadamente novecentas e o volume, portanto, cerca de vinte e sete mil vezes maior do que quando se observa apenas com a simples vista. Graças a ele, qualquer pessoa pode saber com a certeza dos sentidos que a Lua não se acha coberta por uma superfície lisa e polida, mas sim áspera e desigual e que, assim como a face da Terra, está recoberta em toda a parte por ingentes proeminências, profundos espaços ocos e anfractuosidades. Outrossim, não creio que se deva considerar como pouco importante haver posto fim a controvérsias relativas à Galáxia ou à Via Láctea desvendando aos sentidos e não ao intelecto a sua essência. Igualmente magnífico e gratificante será demonstrar ostensivamente que a natureza daquelas estrelas que até o presente os astrônomos chamaram de Nebulosas é muito diferente do que se pensou ser até hoje. Mas o que supera muito tudo o que foi imaginado e que nos levou a chamar primordialmente a atenção de astrônomos e filósofos foi a descoberta de quatro estrelas errantes que ninguém antes de nós conheceu e observou, as quais, à semelhança de Vênus e Mercúrio em torno do Sol, apresentam seus próprios períodos em torno a uma estrela insigne que está catalogada entre as que conhecemos, ora precedendo-a, ora seguindo-a, não se distanciando jamais dela dentro de certos limites. Estas coisas todas foram por mim observadas e descobertas não há muitos dias, por meio de um telescópio de minha invenção, previamente iluminado pela divina graça.
Invenção e características do telescópio
Outras coisas talvez mais importantes serão descobertas com o tempo por mim ou por outros com a ajuda de instrumento similar, cuja forma e desenho, assim como as circunstâncias de sua invenção, recordarei primeiro com brevidade, para dar logo conta da história das observações que realizei. Já faz cerca de dez meses que chegou aos nossos ouvidos a notícia de que certo belga havia fabricado um telescópio por meio do qual os objetos visíveis mais distantes do olho do observador se discerniam claramente como se estivessem próximos. Sobre tal efeito, em verdade admirável, contavam-se algumas experiências às quais alguns davam fé enquanto que outros as negavam. Esta disparidade me foi confirmada poucos dias depois em uma carta de um nobre gaulês, Jacques Badovere, de Paris, o que constituiu o motivo que me induziu a aplicar-me por inteiro à busca das razões, não menos do que à elaboração dos meios pelos quais pudesse alcançar a invenção de um instrumento semelhante, o que consegui pouco depois baseando-me na doutrina das refrações. E, antes de tudo, procurei um tubo de chumbo em cujas extremidades adaptei duas lentes de vidro, ambas planas de um lado, enquanto de outro lado uma era convexa e a outra côncava. Aproximando logo o olho da côncava, vi os objetos muito grandes e próximos, já que apareciam três vezes mais perto e nove vezes maiores do que quando eram contemplados apenas com a visão natural. Mais tarde me fiz outro mais exato, que representava os objetos mais de 60 vezes maiores. Por último, não poupando gastos nem esforços, consegui fabricar um instrumento tão excelente que as coisas vistas com ele parecem quase mil vezes maiores e mais de trinta vezes mais próximas do que se fossem observadas somente com a faculdade natural. Seria ocioso enumerar a quantidade e a importância das vantagens de tal instrumento tanto em relação aos assuntos terrestres quanto aos marítimos. Mas, desestimando as coisas terrenais me entreguei à contemplação das celestes, observando primeiro a Lua tão de perto como se estivesse a uma distância de apenas dois semi-diâmetros terrestres. Depois dela, observei repetidamente as estrelas, tanto fixas como errantes, com incrível deleite de meu ânimo e, vendo tanta abundância delas, comecei a pensar no método de como poderia medir as suas distâncias, encontrando-o por fim, pelo que cumpre informar acerca do mesmo a quantos desejem empreender observações de tal natureza. Para isso é necessário antes de tudo que se procure um telescópio muito preciso que represente os objetos de forma clara, distinta e livres de qualquer véu, aumentando-os em pelo menos quatrocentas vezes, o que os fará aparecer vinte vezes mais próximos. Se o instrumento não oferecer tais características, em vão se pretenderá observar todas aquelas coisas que temos visto no céu e que enumeraremos mais adiante. A fim de se estabelecer com facilidade o aumento do aparelho, deve-se desenhar os contornos de dois círculos ou quadrados de papel, um dos quais será quatrocentas vezes maior do que o outro, o que ocorrerá quando o diâmetro do maior for vinte vezes maior do que o do outro. Em seguida, olha-se de longe e ao mesmo tempo ambas as superfícies armadas na mesma parede, observando-se a menor com um olho aplicado ao telescópio e a maior com o outro olho livre, o que se pode fazer perfeitamente mantendo-se ambos os olhos abertos. Nestas circunstâncias, ambas as figuras parecerão do mesmo tamanho se o aparelho multiplicar os objetos segundo a desejada proporção. Uma vez preparado um instrumento semelhante, deverá ser buscado um modo de medir as distâncias, o que poderá ser obtido por meio do seguinte artifício. Para que se compreenda de forma mais fácil seja, pois, ABCD o tubo, encontrando-se em E o olho do observador. Se o tubo não tivesse lentes, os raios se dirigiriam ao objeto FG seguindo as linhas retas ECF, EDG; mas, ao se colocar as lentes, procederão segundo as linhas refratadas ECH, EDI. Assim, pois, se aproximam, de forma que aqueles que antes se dirigiam livres ao objeto FG agora somente abarcam a parte HI. Ao estabelecermos logo a relação entre a distância EH e a linha HI, encontraremos – por meio da concavidade – a magnitude do ângulo que forma no olho o objeto HI, comprovando que mede somente alguns poucos minutos. Se adaptamos agora à lente CD lâminas perfuradas, umas com orifícios maiores e outras com buracos menores, ao superpor uma à outra de forma adequada formaremos à vontade ângulos diferentes que subtendem mais ou menos minutos, por meio dos quais nos será possível medir comodamente, com um erro de um ou dois minutos, os intervalos das estrelas que distam entre si alguns minutos. Para o momento, basta apenas aguçar ligeiramente o paladar e provar com os lábios estas coisas, pois em outra ocasião faremos pública a teoria completa de tal instrumento. Exponhamos agora as observações por nós realizadas nos últimos meses, convidando a todos os amantes da verdadeira filosofia à contemplação de grandes acontecimentos. (Galileo Galilei)
Fontes: GALILEI, Galileo e KEPLER, Johannes. El Mensaje y El Mensajero Sideral. Madri: Alianza Editorial, 1990. The Sidereal Messenger of Galileo Galilei. London: Rivington, 1888. NORTH, John. Cosmos: an Illustrated History of Astronomy and Cosmology. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2008. |