Bruxarias, heresias e outros delitos

 

J. R. Amaral Lapa. Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará: História brasileira. Editora Vozes. 278 pp. Cr$120.

 

Como uma grande parte das invenções e descobertas científicas, foi o acaso que possibilitou ao historiador J.R. Amaral Lapa, professor da Unicamp e autor de A Bahia e a carreira da Índia e Economia colonial, a recuperação de um importante documento do nosso passado sobre o qual os especialistas do Brasil e Portugal permaneciam em silêncio. Perdido entre os muitos manuscritos da Torre do Tombo, em Portugal, repositório da memória luso-brasileira e provavelmente devido a um erro de arquivista ou "à sigilosa incumbência dada a um funcionário de confiança", o códice com o título Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará encontrava-se entre os manuscritos avulsos, que geralmente conservam uma miscelânea dos mais variados assuntos.

Ao estudo atento dos motivos, porque este acontecimento permaneceu inédito por 200 anos, dedicou-se o historiador também ao seu principal personagem, o visitador do Santo Ofício, Padre Geraldo José de Abranches, assim como à sociedade do Norte do Brasil Colônia, devassada pela que foi a última e a mais demorada visita que a Inquisição fez ao Brasil. Ao longo de quase 15 anos – a descoberta do manuscrito é de 1963 – Amaral Lapa preparou, em sucessivas viagens a Portugal e a Belém do Pará, uma edição integral do códice, o que se faz agora, à qual se seguirá um estudo sobre a sociedade paraense da época. Através deste documento é possível perceber um lado oculto e quase estranho do nosso passado, numa tarefa que caminha ao lado de outras no sentido de desoficializar a História do Brasil, desbordando os limites de uma historiografia construída à base de fontes emitidas pelo Estado o que, segundo o historiador, "não podia deixar, muitas vezes, de refletir por isso os interesses oficiais, com uma ótica limitada, quando não comprometida com os donos do poder".

Ocorrida no ocaso da Inquisição em Portugal, a visitação ao Estado do Grão-Pará foi estabelecida pelo Marquês de Pombal quatro anos após a expulsão dos jesuítas, e representou a consolidação do grande poder do ministro. Não havendo grandes inimigos a combater e sendo de interesse do autoritário ministro uma política de boas relações com os judeus convertidos, sua justificativa foi encontrada em vista do crescente relaxamento moral da população daquela área, relatado pelo bispo do Pará, frei João de São José Queiroz em suas Memórias. O próprio bispo seria a sua primeira vítima, sendo preso e remetido para Lisboa, provavelmente por influência do capitão-general Manoel Bernardo de Melo e Castro, considerado seu maior inimigo.

Ao longo dos seis anos de funcionamento da Mesa Inquisitorial em Belém, promovendo audiências, sindicâncias e exarando sentenças, sua ação atingiu cerca de 485 pessoas, numa população de cerca de oito mil habitantes. A devassa concluiu pela existência de 12 feiticeiros, nove feiticeiras, seis blasfemos, cinco curandeiros, quatro sodomitas, quatro curandeiras, cinco bígamos – sendo uma mulher –, dois hereges – sendo uma mulher –, e apenas um caso de um senhor denunciado por prática de castigos corporais em seus escravos. Eram passíveis de condenação os cismáticos, os defensores e receptadores de hereges ou os que com eles se comunicassem e lhes levassem armas ou mantimentos, os que comiam carne em dias proibidos, os que desrespeitavam os jejuns, os mágicos, os feiticeiros, os adivinhadores, os astrólogos que prognosticavam o futuro, os que liam livros proibidos, os que haviam morrido antes ou depois de estarem presos nos cárceres do Santo Ofício e outras práticas conhecidas em demais tribunais inquisitórios.

Ao longo das 213 páginas manuscritas do Livro da visitação, desfilam as intimidades mais recônditas destas centenas de pessoas, inclusive altas personalidades da região, embora, como frise o autor, apenas uma tenha sido condenada por maus tratos, denunciada pelo "corajoso escravo Joaquim Antônio, vítima dos atentados bestiais do seu patrão".

 

Sérvulo Siqueira

 

Resenha publicada no jornal O Globo em 7 de janeiro 1979