A América antes da Descoberta

 

Ensinam os nossos cronistas e historiadores que - em seu caminho rumo ao território brasileiro – os primeiros navegantes se defrontaram com uma maciça Serra do Mar e a presença de índios pertencentes a diferentes agrupamentos étnicos. Constituindo-se no mais orgânico e estruturado grupo tribal entre os nativos, os Tupi já estavam então espalhados de norte a sul da costa atlântica. Em seu processo de conquista e exploração da terra, os primitivos colonos e cronistas descreveram suas experiências e contatos com os Tupi, cujos hábitos se encontravam firmemente estabelecidos em um passado de aproximadamente 500 anos.

De acordo com diversos historiadores. o mundo das sociedades tribais do estoque lingüístico Tupi tinha muitas semelhanças com os universos Azteca e Inca encontrados pelos espanhóis em outras partes do continente americano.

Embora fosse falada pela maioria das tribos da costa brasileira, a língua Tupi não possuía nenhuma forma de escrita organizada. Em razão disso, os informes de seu ethos cultural baseado numa forte e profunda relação com a terra somente nos chegaram através da ótica nem sempre imparcial e freqüentemente deformada dos colonizadores e de inúmeras manifestações não escritas, como pinturas rupestres, urnas funerárias, etc.

Lendas e mitos marcam os episódios que antecedem e se sucedem à descoberta da América, desde fantásticos épicos sobre a presença de navegadores vikings em tempos remotos até suspeitas sobre a verdadeira identidade de Cristóvão Colombo, sem mencionar a recorrência permanente de estórias sobre o continente desaparecido de Atlântida, que integram o inconsciente coletivo da humanidade.

Hipóteses nem sempre concludentes e até mesmo conflitantes - como as que cercam as teorias relativas às primeiras migrações para o novo continente - alimentam a aura de mistério que envolve o nosso passado pré-colonial. Teriam os primeiros habitantes aqui chegado através de uma passagem pelo Estreito de Bhering, originários da Ásia? Foi mesmo viável uma árdua travessia ao longo do Pacífico, desde a Polinésia,como tentou recentemente provar o cientista e navegador Thor Heyerdahl em sua expedição Kon-Tiki ? Ou então, o que seria mais difícil de precisar, quando começou esta migração e em que momento ela deixou de existir?

Também o gosto pelo maravilhoso e o fantástico, que ocupou espaço considerável na literatura de viagem dos descobrimentos marítimos e suas referências a um Paraíso Perdido nas terras a serem descobertas, reforçou ainda mais esta atmosfera de mistério e interrogação.

Entretanto, nem todo conhecimento é turvo nas águas do Novo Mundo. Desde o Iluminismo e mesmo ao revés das vicissitudes e toda a sorte de adversidades, notáveis cientistas percorreram a nossa paisagem de alto a baixo, cartógrafos e geólogos esquadrinharam os mais relevantes acidentes geográficos do território e apontaram as características básicas dos estratos de seu solo e de sua formação; botânicos e zoólogos deram nome e classificaram a flora e a fauna brasileiras; etnólogos e antropólogos mergulharam nos conhecimentos mais ancestrais de nossos índios; arqueólogos delimitaram sítios onde a presença humana já pode ser vislumbrada em até 70.000 anos.

De toda esta atividade teórica e empírica e de sua contínua renovação no curso de gerações, foi possível extrair um amplo sistema epistemológico sobre nosso espaço físico e humano e os elementos que nele tem interagido.Elementos tais como as formas de organização social das tribos indígenas, suas técnicas agrícolas e os instrumentos de trabalho, a função das relações de parentesco nas sociedades tribais, sua arte e seu valor cultural, a demografia indígena e a distribuição espacial das tribos,e a importância dos mitos como fonte de conhecimento histórico, convergindo por fim para um completo mapeamento lingüístico dos grupos étnicos.

É certo que a revelação de uma imensa riqueza biológica e de quase inesgotáveis recursos minerais tem despertado no correr dos tempos a atenção dos especialistas e a cobiça de navegadores e corsários a serviço da expansão colonial européia, além do espírito de conquista de aventureiros em busca da Fonte da Eterna Juventude e da terra mágica de El Dorado, tardios ectoplasmas do Renascimento. Mais especificamente, no nosso caso, aqui também aportaram degredados pelas autoridades portuguesas, colonos em busca de terras no além-mar e de minas de ouro, e jesuítas brandindo a cruz e os Evangelhos no rastro de silvícolas gentios para a catequese.

Uma conversão que, como informam muitos observadores, nem sempre foi possível apenas por meio  da pura persuasão dos espíritos, sendo muitas vezes consumada a ferro e fogo.

Vista sob o outro ângulo, o do dominado, encontramos a tenaz e quase invisível cultura do índio brasileiro e sua lenta e contínua influência sobre o conquistador Europeu, à medida em que, inversamente, ele é progressivamente aniquilado.

Em meio a tudo isso, desfilam os sonhos e pesadelos dos conquistados, seus heróis mortos e ressuscitados, os sacrifícios fecundos e as esperanças sempre renovadas, insuflados pela promessa de uma Terra Sem Males, que ainda paira no inconsciente do indígena brasileiro.

 

Sérvulo Siqueira