O Inocente de Visconti: O diálogo viscontiano
– O que sobretudo me trouxe ao cinema foi o dever de narrar histórias de homens vivos: homens que vivem outras coisas e não as coisas por si mesmas. 0 cinema que me interessa é um cinema antropomórfico. A frase de Luchino Visconti poderia servir de summa ideológica de sua obra e introdução crítica ao comentário do filme que a encerra. Após inúmeras e exaustivas tentativas ensaiadas para compreender o cinema viscontiano, sob o ângulo das contradições entre a sua situação de homem político socialmente engajado e sua condição de herdeiro de duques, seria necessário buscar uma síntese extraída de seu próprio pensamento. Se deduzíssemos os termos do seu discurso, seria possível aprofundar esta contradição e constatar que o antropomorfismo desejado por Visconti refletiria um padrão de comportamento: a elegância do seu cinema seria a perfeita contrapartida do tom de solene gestualidade que é apresentado como característica do comportamento aristocrático. Este antropomorfismo se estenderia por toda a obra do autor: dos hieráticos personagens de Senso, O Leopardo, Violência e paixão –símbolos da decadência nobre que narrou e descreveu – aos "malditos da terra" da Sicília – em La terra trema – e Milão – em Rocco e seus irmãos – com os quais buscou se identificar. Em 0 inocente de Visconti – título que certamente procura resguardar as alterações produzidas pelo autor no corpo da obra de D'Annunzio – reaparece um outro dos componentes de seu discurso: a incorporação e transfiguração do melodrama, elemento ativo do universo cultural italiano. Esta alquimia produzida pela interação do rebuscamento de sua encenação com o vigor do popular é provavelmente o núcleo das óperas e operetas – que Visconti dirigiu no teatro – e de onde extraiu o seu estilo socialmente compromissado. Do teatro de espetáculo ao cinema antropomórfico, alguns estudiosos observaram, a partir de Morte em Veneza, uma alteração na sua ordem de preocupações: um ensimesmamento do cineasta. Visconti parecia voltar-se sobre si mesmo, mergulhando nas inquietude de sua classe até a amarga autocrítica de Violência e paixão". Desta ordem de preocupações certamente dão conta estas palavras: – Eu gostaria de transmitir meu conhecimento aos jovens. Ajudar pessoas. Todas as minhas tentativas acabaram em desastre. Não somos compreendidos. Eu desejava laços intelectuais e profundos e o que me ofereciam eram relações sentimentais sem sentido. Distante do autor que, com Ossessione em 1942 e La terra trema, em 1948, tinha sido considerado pioneiro do neo-realismo italiano, libertando-o da camisa-de-força dos cinemas dos "telefones brancos" fascista na busca de uma realidade viva e instigante, este discurso expressa uma renúncia concretizada nos seus últimos filmes. 0 cineasta que, em 1948, filmava in loco a vida miserável dos pescadores da Sicília, recrutava atores não-profissionais falando diálogos em dialeto local, encerra sua carreira - de modo algum de forma melancólica - reconstituindo, a partir de um texto de D'Annunzio versado num italiano retórico e decadentista, os aristocráticos salões onde a nobreza e a burguesia pré-fascista exercitaram a sua moral e ideologia. Este enclausuramento não impediu, entretanto, que o cineasta – hemiplégico e necessitando de assistentes para chegar ao visor da câmera – pudesse vislumbrar na ama do inocente Raimundo – sacrificado pela ambígua (a)moralidade dos pais – a alma de um povo – melodramático e turbulento – com o qual ele nunca cessou de dialogar.
Sérvulo Siqueira
Matéria publicada no jornal O Globo em 14 de novembro de 1977 |