Morte e vida Severina
Pode-se considerar como digna de interesse a proposta de Zelito Viana ao adaptar, de João Cabral de Mello Neto, o poema 0 rio e o auto de natal pernambucano Morte e vida severina. Pena que ela talvez tenha chegado atrasada em sua filmografia, depois do equívoco de Minha namorada e da recriação de época excessivamente interiorizada de Os condenados e se mostre defasada no quadro atual do cinema brasileiro – mais preocupado com grandes produções para grandes platéias. A idéia de contar a história dos muitos Severinos do Nordeste através da imagem do rio – por onde tudo flui, e no qual o personagem pensa em se jogar para fugir a uma vida de agruras – documentando-a com o retrato de sua realidade ilustrada na representação do teatro, tem certamente como motivo incorporar diferentes elementos da cultura brasileira moderna. Estas são inspirações para as quais o cinema – como um veículo-síntese – funcionaria como aglutinador. O aspecto documental viria da tradição emanada dos exemplares do cinema brasileiro da década de 60 – de Leon Hirzman a Geraldo Sarno e Wladimir de Carvalho – dentro de uma linguagem de choque e denunciadora. Do outro lado, viria a assimilação desta realidade pelo público sulista, com o sucesso retumbante da encenação realizada pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA) a partir do texto de João Cabral, com músicas de Chico Buarque e um elenco quase todo amador. Um terceiro elemento traria os progressos tecnológicos e também artísticos – a representação dos atores, a melhor qualidade profissional de técnicos e laboratórios de som e imagem – que integrariam a obra dentro de uma proposta mais competitiva de mercado. A proposição continua interessante, mas não se pode dizer que ela tenha se realizado. A qualidade técnica foi evidentemente atingida, embora ela não deva converter-se em apanágio de um discurso ou panacéia para muitas omissões. A recuperação do vigor dos anos ainda mais heróicos de 60, do documentário impresso em preto e branco num estilo que deslumbrava os europeus mas que aqui ficava relegado às exibições em cineclubes e cinematecas, acaba, no entanto, repetindo uma narrativa que se tornou contumaz no nosso cinema: a seqüência começa com a câmera enquadrando o entrevistado falando em som-direto; em seguida corta-se para imagens ilustrativas que passam a funcionar como contraponto ou reforço do áudio em off. Quanto à representação do auto Morte e vida, sua inserção parece esquemática, desdramatizando a narrativa e lembrando um pouco o lugar do coro nas tragédias gregas. Num momento em que o cinema brasileiro busca sua institucionalização – com filmes sem grandes ousadias de linguagem e numa temática predominantemente urbana – Morte e vida Severina representa, de fato, uma janela aberta para uma realidade não muito conhecida do público das grandes cidades – com suas imagens de terras calcinadas e rostos duros e vigorosos. Um retrato que encontra nos trabalhos dos fotógrafos Francisco Balbino Nunes, José Medeiros e Lauro Escorei, os olhos da argúcia, e em José Dumont e Jofre Soares, um ator típico para personagens do Nordeste, os intérpretes à altura.
Sérvulo Siqueira
Crítica publicada no jornal O Globo em 26 de abril de 1978 |