Doramundo: Sopro Renovador

 

Do romance de Geraldo Ferraz, João Batista de Andrade extraiu esta obra que, juntamente com O Jogo da Vida, insufla um sopro renovador no cinema paulista, depois da opaca efervescência das pornochanchadas. A história passa-se em 1939, na época do Estado Novo, num clima de medo e incertezas — capturado através da atmosfera cinzenta de brumas de Paranapiacaba, representação de Cordilheira, uma cidadezinha montanhosa servida por uma estrada de ferro inglesa. Síntese de suas frustrações e anseios, aflora o amor de Raimundo, um ferroviário da estrada, a Teodora, mãe de um adolescente e mulher de Pereira, maquinista acomodado e sem perspectivas.

À medida que misteriosos assassinatos de trabalhadores solteiros desencadeiam uma aterrorizante investigação policial, aparecem as contradições do lugarejo: um mundo concentracionário monótono e fechado sobre si mesmo, de onde ninguém sai ou chega, e sobre o qual paira, onipresente, a estrada de ferro inglesa e sua eminência parda, o Dr. Flores. Sob as asas da companhia, debaixo de uma disciplina férrea e paternalista, vivem seus habitantes: do submisso chefe de estação à costureira, cujos sonhos se perderam na juventude sem casamento e de quem só restou a loucura.

Na reconstituição deste clima, João Batista de Andrade estabeleceu uma narrativa que privilegia mais o lado ético do que o caráter estético do argumento. Utilizando uma expressão francesa, J.B. de Andrade não faz uma mise-en-scène - uma encenação - mas opera uma mise-en-valeur  - a valorização - do romance de Geraldo Ferraz. Em outros termos, preocupado com os elementos expressivos da trama, o diretor descuidou-se dos recursos de expressão que tornariam mais contundente a sua significação nos dias de hoje. Pode-se dizer, então, que o drama de Cordilheira e seu universo opressivo, o amor de Teodora e Raimundo como possibilidade de escape a esta situação demonstram-se tema e assunto mais amplos do que sua representação cinematográfica.

Este acontecimento não é uma novidade no cinema, nacional ou estrangeiro. Bons argumentos nem sempre fazem um grande filme, enquanto costuma-se ver ótimas idéias desperdiçadas por um tratamento ou montagem deficientes. Entre um e outro caso está Doramundo, que falha, no entanto, na escolha e direção de alguns atores e na adaptação; ao sobrecarregar o filme de incidentes dramáticos que não conseguem ser explicados no tempo de sua projeção. O resultado é que o trabalho de João Batista de Andrade tende ao rascunho de um quadro, cujos traços teriam que ser melhor definidos e aprofundados.

Recompondo a ambientação da história - a partir de um trabalho de pesquisa previamente elaborado- o filme não oferece entretanto a sua conseqüente continuidade dramática e se perde muitas vezes, como um policial tradicional, na investigação da autoria dos assassinatos, num esforço para seguir o fio da meada que termina por não levar a parte alguma. Ânsia de abarcar de um só olhar todo o cenário do drama e que termina por conduzir a retratos psicológicos mal definidos dos personagens que o compõem. Desejo, talvez, como dizia Jean-Luc Godard, de "colocar tudo num filme", compreensível em quem, depois de muitos anos de carreira, realiza o seu terceiro longa-metragem.

Esforço que restitui a dignidade do mais bem intencionado cinema feito em São Paulo, após anos soterrado pela avalancha das pornochanchadas da Boca do Lixo, produtos de terceira linha destinados a preencher o mercado. E no qual se sobressaem – além da seriedade da sua proposta que não chega a se consumar – a excelente e simples cenografia de Laonte Klawa, as performances de Irene Ravache, Antônio Fagundes e Fernando Peixoto em pequena aparição, sem esquecer a brilhante ponta de David José, também co-autor do roteiro.

 Sérvulo Siqueira

  

 Publicada na revista Filme Cultura 33, 1979.