Do Cortiço ao Bom Marido
No bamboleio dos quadris da baiana mestiça e da granfina decadente, na comédia ligeira do Bom Marido ou no drama histórico superficial de O Cortiço segue o cinema comercial brasileiro à procura de um público cada vez mais entupido de novelas e filmes imitativos do superespetáculo estrangeiro. Mas o pasticho não pode ser completo, faltam recursos técnicos, capital, o mercado está ocupado em suas terças partes pelo filme estrangeiro e em decorrência o resultado só poderia refletir este gênero de produtos de segunda ordem que não conseguem esconder a sua condição de castrações da veia criativa brasileira, impedida também a nível institucional. Nos dois casos, aparentemente diferentes de 0 Bom Marido de Antônio Calmon e O Cortiço de Francisco Ramalho Jr., o mesmo erotismo doentio que irrompeu no cinema brasileiro há quase dez anos e que vê a relação sexual como o complemento da fórmula circense de entretenimento (falso) do público. A decantada sexualidade latina é apresentada como a atração do exótico de Rita Baiana (Betty Faria), que se entrega às multinacionais em um filme que expõe imagens eugenicamente positivas do nativo que se oferece prazerosamente ao estrangeiro. Esta ideologia do sexo como poder - que poderia ser discutida em outros níveis - e encontrou sua ressonância na pornochanchada e nas variantes que se seguiram, mostra aqui raízes bem definidas. Da euforia desenvolvimentista do início da década, ela extraiu seu argumento de que a melhor matéria-prima do país é o ser humano, posto a trabalhar para gerar riqueza usufruída pelo nossos dominadores, ou a dar prazer sem obtê-lo. No filme de Antônio Calmon, o "bom marido", Afraninho (Paulo César Peréio) incita a mulher a fazer as vontades do industrial alemão mas frisa que ela "não pode gozar". Moral machista que vende a mulher como produto mas que pretende se reservar direitos sobre ele. Já no filme de Francisco Ramalho, a matéria-prima é o povão mesmo, que trabalha na pedreira do português João Romão (Armando Bógus), alimentando com seu esforço a sede de riqueza do dono do cortiço. Entre batucadas onde transparece a sensualidade glamurizada da mestiça Rita, colore-se e dissolve-se a dura e triste realidade da infecta estalagem onde o povo nem chega a perceber as lutas abolicionistas e republicanas, em uma velha representação elitista da história brasileira que apresenta o povo como um eterno protagonista secundário e tradicional massa de manobra. Por sua vez, João Romão terminará senhor da filha do decadente Miranda – vizinho e também português – fechando o circuito aristocrático de que rico casa mesmo é com rico. Uma visão das senzalas oferecida através do ponto de vista das «casas grandes» e que pretende confirmar a miscigenação como resultado da passividade e autocomplacência do brasileiro. A esta visão uma grande parte do cinema brasileiro – estimulada por financiamentos pouco criteriosos – vem procurando moldar o gosto do público. Procura-se assim, com imagens construídas ao estilo dos filmes de propaganda e reconstituições ligeiramente fiéis de época, alimentar a miragem do «boom cinematográfico» e a convicção de que o similar nacional está no mesmo nível do estrangeiro. Com isso se procura construir a imagem otimista da modernização do nosso cinema, que hoje já se gaba de poder reconstituir cenograficamente a nossa história e construir ambientes requintados. Uma sensação que leva à permissividade e à apelação para a vulgaridade da pornografia, por falta de um discurso mais eficiente ou pela sua absoluta e total ausência. Recorre-se freqüentemente aos clichês da televisão e é então que se vê que para alguns diretores a nossa cultura popular – uma vez que este cinema pretende ser consumido pelas diversas classes sociais – não passa dos estereótipos simplistas das telenovelas. Serve-se também do artifício de se "chanchar" o filme, meio pelo qual torna-se uma situação ainda mais grotesca e apelativa. No Bom Marido, onde a despeito das boas intenções "chanchou-se" bastante, mostra-se uma leve paródia de um noticiário de TV. A inserção, no entanto, permanece ao nível da caricatura e não perde o caráter de ironia complacente que percorre todo o filme.
Sérvulo Siqueira
Matéria publicada no jornal 1900, de 27 de setembro 1978 |