DI E O DOCUMENTÁRIO

 

DI

Direção Glauber Rocha

Fotografia Mário Carneiro

Montagem Ricardo Miranda

35 mm, cor 1977

O documentário de Glauber Rocha sobre Di Cavalcanti põe, de antemão, uma questão ética que - discutida nos tribunais - deve ser comentada. Uma questão que, pela própria natureza do documentário, um filme sobre a vida e a morte e sobre a morte da memória em nossa cultura, deixa portanto de ser apenas um dado extemporâneo à obra e assume o lugar de um dos seus nexos fundamentais. Porque é basicamente por meio do ritual sacralizador do velório, que nega o espírito da obra do morto, que Glauber pretende liberar dialeticamente a imagem do pintor e poeta. É claro que esta atitude dificilmente seria aceita por aqueles que defendem uma imagem estratificada da cultura, que admitem a obra mas não o seu autor ou, como no caso da filha do artista, querem retirar ao público o direito de conviver com a imagem de um Di vivo e caloroso – mesmo depois de morto - que o filme preserva e exalta. A atitude de Elizabete Di Cavalcanti representa a posição de quem, entristecido com o desaparecimento do ente querido, recusa aos outros o contato com este ente no que ele tem de mais vivo e que é a encarnação da alma do povo, que Di sempre buscou. Nesse sentido, a interdição da exibição do documentário caracteriza, do ponto de vista jurídico, a vitória do obscurantismo que nega o livre espírito com que a obra e a figura de Di Cavalcanti devem ser sempre vistas.

No entanto, este é apenas um dos pontos que podem e devem ser discutidos a propósito do filme. Um aspecto imediatamente salta dentre outros e que é na verdade um dado praticamente incorporado à personalidade dionisíaca de seu autor: o caráter extremamente inquietante de seu discurso. Rigorosamente, pode-se dizer que esta característica deve ser considerada em primeiro lugar como uma decorrência da importância que as declarações, entrevistas, artigos e filmes de Glauber Rocha ocupam no nosso relativamente bem comportado panorama cultural. Esta importância político-cultural, digamos, significa de antemão uma abertura de outras possibilidades para a pluralidade de abordagens que o documentário possibilita. No momento da exibição de Di Glauber, realizada em sessões no Museu de Arte Moderna e na TV Educativa, no segundo semestre de 1977, a linguagem do documentário no Brasil estava mergulhada numa profunda estagnação. Considerado como uma das modalidades do discurso cinematográfico, um processo por meio do qual o cinema se aproxima de forma mais direta da realidade, este é certamente o mais antigo gênero que remonta ao velho cinematógrafo. Dada a riqueza da nossa realidade social e cultural e, paradoxalmente, a escassez dos recursos cinematográficos de produção do cinema nacional, sobretudo comparativamente com o padrão do cinema americano, por exemplo, este gênero foi um dos que melhor se adaptou ao nosso ambiente. Assim como se diz que "tudo dá samba", se poderia também dizer, não fosse a sua realização bem mais difícil, que toda a nossa realidade seria significativamente importante se pudesse ser cinematograficamente documentada. Por se tratar de uma sociedade em constante processo de mudança social, regida por culturas que durante séculos se alimentaram e se forjaram das nossas combinações étnicas; por nossa condição tropical onde viceja uma natureza abundante e que estimula a cobiça dos países poderosos, a paisagem brasileira se oferece ainda quase virgem aos olhos e ouvidos da câmera e do gravador de cinema.

Neste contexto em que a abundância coexiste com a escassez, onde a memória se perde pela falta de condições em preservá-la, o nosso documentário é profundamente marcado — e provavelmente com razão para isso — por um extremo "verismo". Um verismo que, na verdade, está próximo do naturalismo descritivo e para o qual importa mais o assunto escolhido do que o tratamento a lhe ser dado. Nessa ânsia em captar o real, o som direto impõe cada vez mais a sua presença; a maior verossimilhança de abordagem de uma realidade fica na dependência do registro do elemento fonético daqueles que dela participam. Nos documentários que utilizam este esquema de maneira mais tradicional, a estrutura de linguagem obedece, em geral, à seguinte ordem: começa-se com um determinado participante falando para a câmera com o som em sincronismo labial; depois de algum tempo, corta-se para um assunto referente ao depoimento do entrevistado enquanto sua voz continua em off, funcionando como ilustração das imagens. A estrutura permanece a mesma ao longo de todo o filme, aparecendo vez por outra um comentário musical que reforça, junto com as imagens, o sentido daquilo que a fala expressa. O melhor exemplo desta tendência pode ser considerado o filme Ó Xente, Pois Não, documentário de Joaquim de Assis sobre a comunidade de lavradores em Salgadinho, Pernambuco, que obteve o 1° prêmio do Festival Nacional de Curta-Metragem do Jornal do Brasil e a Margarida de Prata da CNBB, em 1973. Nos festivais posteriores de curta-metragem do Brasil, outros filmes premiados confirmaram a prevalência desta tendência do documentário, embora se possa dizer que nenhum deles tenha atingido o brilhantismo da alquimia entre som e imagem de Ó Xente.

Correndo paralelo à codificação deste tipo de documentário que procura exercer através do som direto a melhor apreensão do real tomado como objeto, coexistem aqui outras tendências que poderiam ser identificadas, grosso modo, nos filmes de Artur Omar, O Ano de 1978 e o Tesouro da Juventude; e nos trabalhos de Aluysio Raulino, Teremos Infância e O Tigre e a Gazela; que transpõem os limites do registro verista do real e elaboram a matéria-prima documentada, para transformá-la praticamente num discurso ficcional. Neste discurso, o diretor não se limita a montar da forma mais clara e organizada o material colhido em locação mas acrescenta ao tratamento uma interferência permanente que discute, contesta, reforça ou desfaz o documento filmado e gravado, com o objetivo de criar uma atmosfera que não é necessariamente verossímil em relação à realidade primordial. Um procedimento semelhante ao que vem sendo executado em determinada tendência da nova ficção literária brasileira, onde podem ser lembrados os romances A Festa, de Ivan Angelo e Zero, de Ignacio de Loyola, cujo texto resulta da montagem de um discurso documental, armado na linguagem dos noticiários de jornal, e de uma trama particular narrada ficcionalmente, e cujos desdobramentos terminam por imbricar-se entre si.

Estas duas tendências autônomas projetam sobre o documentário brasileiro perspectivas diversas, suas linhas são perfeitamente nítidas e, num certo sentido, unívocas. Em outros termos, cada uma delas estabelece um código próprio e que conduz sempre a um maior ou menor grau de persuasão, de acordo com o discurso assumido. No documentário de caráter verista, cuja qualidade depende da maior ou menor riqueza do material colhido, o que conta é a melhor organização deste material: fitas gravadas e copiões abundantes, que podem ser costurados para corresponderem da maneira mais fiel possível ao objeto registrado. Na segunda tendência do documentário brasileiro, esboçando uma esquematização que não pretende ser concludente e não descarta a possibilidade de outras manifestações, encontramos uma característica de linguagem onde o diretor, sem embargo do registro documental necessário à sua transfiguração deste registro, já determina, freqüentemente a priori, uma interpretação do tema escolhido. Para lembrar alguns casos, Artur Omar - ao narrar o fracasso da rebelião dos alfaiates da Bahia no século XVIII - recompõe este clima através de uma assustadora seqüência em que o fogo devora em crescentes chamas um galpão com roupas penduradas em varais. Por outro lado, Aluysio Raulino, em O Tigre e a Gazela, toma um determinado número de seqüências rodadas em São Paulo, cenas de carnaval, uma outra sequência com uma velha cantando uma música que é um misto de Hino Nacional e uma canção desconhecida e estabelece um contraponto destas imagens com um texto político do pensador e psiquiatra da Martinica, Frantz Fanon. Da justaposição entre o texto e a imagem, que tratam da estrutura física e psicológica do colonizado, A. Raulino chega a uma síntese dialética em que há "o tigre e a gazela" de que fala Lima Barreto num livro de memórias.

Ao contrário do documentário de cunho verista que procura chegar à "verdade" do objeto escolhido, através do apanhado e da montagem de elementos (som e imagem) deste mesmo objeto, Artur Ornar, por exemplo, não descreve ou relata o acontecimento histórico: sua posição consiste em interpretá-lo segundo uma perspectiva em que o que conta não são os dados factuais mas a emoção vivida no interior destes fatos, o que mais importa é transmitir o sentimento que o autor tem do objeto escolhido. Isto, no entanto, não quer dizer que o diretor dispense o necessário levantamento do assunto, uma pesquisa, mas que estabelece o primado da interpretação sobre o fato. Ao naturalismo descritivo do documentário verista, ele opõe um expressionismo narrativo que não despreza os inúmeros recursos de envolvimento emocional de que dispõe o cinema.

Glauber Rocha, em seu filme sobre Di Cavalcanti, procura acentuar ainda mais esta segunda tendência, ampliando ao infinito as possibilidades de interpretação do assunto escolhido. Como lembrou muito bem o poeta e ensaísta Mario Charme, o que ele faz é "realizar um documento que retrata as possibilidades de se realizar um documentário a respeito do pintor desaparecido". De início, ele já rejeita a noção aristotélica aplicada ao teatro dramático e se insere deliberadamente como autor, ator e manipulador do discurso a ser deflagrado. Desde o começo, o documentário demonstra que é uma homenagem de Glauber a Di e no seu decorrer o seu autor irá estabelecer as várias formas pelas quais Di, segundo Glauber, gostaria de ser visto. Não se trata mais de um verismo naturalista ou de um expressionismo narrativo mas de uma tentativa de utilização das possibilidades contidas nestes dois discursos, visando romper dialeticamente aquilo que ambos têm em comum: a univocidade. Daí a estrutura "aberta" do filme, observada por Chamie, e que nasce, ao contrário das tendências anteriores que procuram uma fisiologia do real ou uma recriação expressiva de seu objeto, da visão do pintor a partir daquilo que ele melhor encarnava: o espírito sensual de seu povo. Glauber não filma, então, o ritual do velório e sepultamento segundo o aparato cristão, necessariamente diverso do "ethos" que estimulou a obra de seu homenageado: seu registro procura a contrapartida deste cristianismo estratificado e que só poderia se encontrar no paganismo dos nossos antepassados, os índios. Este ritual é representado no Quarup, uma festa indígena de celebração da morte como a continuação natural da felicidade de viver e que somente ocorre quando desaparece um grande capitão guerreiro. De acordo com a lenda da criação, que o inspira e lhe dá origem, o Quarup era, primitivamente, ao mesmo tempo o momento em que Mavotsinim reabilitava os mortos e criava os homens. Após sua celebração o morto deixa de ser lembrado e ninguém mais chora sua morte, a invocação de seu nome passa então a provocar alegria e felicidade. E a luta que sucede ao ritual do lamento dos mortos somente confirma o sentido de vida que informa o universo indígena.

A estrutura do documentário de Glauber sobre Di busca na verdade recapturar este espírito. Ela está dividida em duas partes, segundo a ordem ritualística: o velório e o sepultamento. O velório se dá no amplo saguão do Museu de Arte Moderna, um dos templos da nossa cultura e o lugar onde Glauber realiza a evocação da personalidade de Di Cavalcanti e de sua obra, seu passado e importância, tendo como eixo central - geográfica e estruturalmente - o caixão onde repousa o corpo do artista. O sentido desta evocação não tem por objetivo mostrar a importância do morto - o que de resto todos já conhecem — mas deixá-la gravada, imortalizar seus feitos e glórias de grande brasileiro: Este discurso é realizado através de um apanhado de comentários, notícias e poemas que têm o pintor como centro, tanto nas imagens constituídas em geral de reproduções de seus quadros quanto oralmente, através dos poemas de Vinícius de Morais, Carlos Drummond, comentários de críticos de arte e lembranças do próprio Glauber, para concluir na lembrança de outros mortos recentes e ilustres: Juscelino, Jango e Paulo Pontes. Com a saída do cortejo dos salões do MAM se encerra a primeira parte do filme.

O segundo movimento, que se passa no Cemitério de São João Batista, corresponde ao sepultamento de Di. Entre eles há um instante de ironia, quando Glauber acompanha a retirada do caixão e sua colocação no veículo que o levará ao cemitério, pontuando-a com a música de Paulinho da Viola que fala do enterro de um bicheiro e na qual o autor diz que "havia um certo respeito no velório do Heitor". Este momento é, evidentemente, o preâmbulo do "desrespeito" com que o diretor representará sua visão do sepultamento. Aí se estabelecerá a recuperação de seu cadáver, já recoberto pela madeira, e sua ressurreição se processará através de Babaraúna, Ponta de Lança Africano celebrado na música de Jorge Ben, na mítica visão indígena que considera a morte uma passagem para o verdadeiro ser e que Glauber incorpora sincreticamente à mitologia africana. Completa-se assim um ciclo da vida de Di Cavalcanti, que o filme exalta como feliz e gloriosa, sensual e generosa e inicia-se um outro ciclo, no qual a personalidade do guerreiro morto não será esquecida mas sempre enaltecida como exemplo mítico, com a mensagem de sua obra sendo perpetuada para as gerações vindouras.

Di Glauber, tomando como ponto de partida o tema da morte (que etimologicamente quer dizer esquecimento) faz na verdade a defesa da vida e da memória ao projetar na história a visão de Di, não apenas como um pintor de mulatas e de paisagens urbanas poéticas — ótica que dele podem ter marchands e compradores de quadro burgueses — mas fundamentalmente a de um homem que procurou banhar seu espírito na alma mais suave de seu povo e, nem por isso, menos sonhadora e guerreira. É esta alma que sobrevive à morte do pintor, figura de alta estirpe da cultura brasileira por mais de meio século, e sua lembrança explica, por certo, o título do filme, extraído de um poema de Augusto dos Anjos: "Ninguém assistirá o formidável enterro de sua última quimera/ Somente a solidão, esta pantera, será sua inimiga".

 

Sérvulo Siqueira

 

Publicada na revista Filme Cultura 34, Jan/Fev/Mar 1980.