Crueldade mortal

 

Morro Agudo, Janeiro de 1970. Um velho é amarrado a um poste e linchado por um grupo de pessoas. Antônio Lopes da Silva, 64 anos, um nordestino que vivia solitário neste bairro-dormitório de operários, entre os desejos da beata Josefina e à espera do último trem do Norte que trouxesse a mulher e os filhos, vagueia desesperado em busca de um relacionamento com o meio ambiente e termina por se defrontar com a frustração e a violência dos seus próximos. Perdidos neste inferno tropical e sob um sol inclemente, os agressores se revelam tão malditos quanto sua vítima.

A morte de um velho num poste em Nova Iguaçu seria apenas mais uma manchete de jornal, mas a violência do ato, o caráter e as circunstâncias de crime coletivo impunham uma reconstituição dos acontecimentos e a retomada dos métodos de análise do comportamento do indivíduo numa sociedade de massa. A deflagração da violência coletiva – uma vez que no direito penal toda apuração de responsabilidades se faz no nível do indivíduo – sempre expõe as contradições do sistema que a gerou.

A reconstituição e a análise das circunstâncias deste linchamento foram realizadas pelo cineasta Luiz Paulino dos Santos com a consciência de que o cinema como veículo de massa é o meio adequado para retratar o comportamento das multidões. Consciência que certamente estimulou King Vidor – um dos inventores da linguagem do cinema – com A turba, em 1928, e Arthur Penn - renovando e politizando o cinema americano – com Caçada humana, de 1964.

No cinema brasileiro de hoje, mergulhado em reconstituições históricas, algumas de nosso passado longínquo, Crueldade Mortal representa o retorno à contemporaneidade. O Rio de Janeiro de hoje é uma das cidades mais violentas do mundo, seu índice de criminalidade é superior ao de Nova York, por ex. Sem assumir a fria enumeração de cifras ou números ou a aridez a que muitas vezes tendem os discursos sociológicos, Luís Paulino buscou a emoção por meio do desvario de seus personagens, esforçando-se por extrair as razões de seu inconsciente no ambiente a que estão confinados.

Expondo dialeticamente futebol e religião, violência e passividade, as culturas do samba e do choro, Morro Agudo transforma-se na síntese mágica (e trágica) de uma legião de desesperançados. Neste sentido, a narrativa recusa uma posição distante diante do seu objeto, assume seu lado naturalista, exibindo muitas vezes a faceta mais grotesca da realidade. Calcanhar de Aquiles do filme, segundo certas críticas – sua falta de verossimilhança, reforçada por um desempenho pouco convincente de alguns atores – este é, na verdade, o seu avatar. Os personagens comportam-se de maneira muitas vezes paradoxal e ilógica como é a realidade, e é felicidade da câmera poder registrar seus tiques e achaques, um maneirismo no qual nos podemos identificar como num espelho.

Diante da histeria e da alienação da beata Josefina, que se refugia numa seita religiosa, acreditando que este. mundo é apenas uma transição para o reino dos céus, o velho Antônio busca e incorpora o demônio da religiosidade africana, com seu lado mundano e libertário. O vigor dessa incorporação não pode entretanto ser tolerado, o que mostra o acúmulo de frustrações e recalques que desencadeia. Tranca Rua (Maurício do Valle), Jurema (Marieta Severo), Josefina (Ilva Niño), Mário (Emanuel Cavalcanti), "Seu" Gustavo (Jaime Barcelos), seus inquisidores e carrascos necessitam de um sangue com o qual possam exorcizar a própria miséria. Apenas Arlete (Marlene França), única personagem que é capaz de pensar, ainda que de forma ilusória e cômica, a possibilidade de uma saída para além daquele universo, consegue reagir diante da chacina de Antônio (Jofre Soares) em uma representação de muito vigor. Mesmo ela, no entanto, não escapa da alternativa da solução individual, que aponta quase sempre para a criminalidade.

Hemingway escreveu uma vez – o que hoje podemos considerar como verdadeira profecia para si mesmo – que "é melhor atirar contra a cabeça de um touro do que contra a própria cabeça". Mario oscila entre matar Tranca Rua ou a esposa infiel e, na falta de coragem para se livrar daquele inferno, termina por dar o tiro de misericórdia no velho amarrado ao poste.

 

Sérvulo Siqueira

 

Crítica publicada no jornal O Globo em 11 de janeiro de 1978