A regra do jogo
Realizado em 1939 - no limiar da Segunda Guerra Mundial - La règle du jeu difere muito dos filmes patrióticos de exaltação militar da época. Embora não se possa dizer que Renoir estivesse assumindo um vaticínio premonitório, seu discurso disseca uma crise social que iria explodir na ocupação alemã da França durante a guerra. O triunfo da Frente Popular trouxe, a principio, uma atmosfera de euforia sucedida por um desencanto, e é certamente sobre o plano desta desilusão que o filme se insere com seu humor cínico e moralista. Ao estabelecer sua perspectiva num microcosmo social - um imenso castelo situado no campo, onde o Barão Robert de La Chesnaye e sua mulher Christine recebem um grupo de convidados para uma estação de caça - Jean Renoir pretendeu fazer analogias com os diversos segmentos sociais que compunham a sociedade francesa da época. Sem fragmentar a narrativa, criando um espaço dramático no qual a montagem se torna quase indelével, Renoir vai esmiuçando as identidades e diferenças de comportamento entre patrões e empregados, a cozinha e a sala de jantar. Girando de um espaço para o outro, a câmera vai pouco a pouco elucidando o sistema que os liga - uma regra do jogo baseada no respeito às convenções sociais e ao sistema de aparências de uma sociedade fechada. Assim, o Barão não pune o caçador clandestino Marceau - interpretado por Carette - mas o transforma em seu empregado doméstico, tornando-o agradecido por sua larga generosidade. Da mesma forma, também, o mesmo Barão não pune o guarda Schumacher - muito bem representado por Gaston Modot - quando este atabalhoadamente mata o aviador André Jurieu (Roland Toutain), pretendente de sua esposa. A regra, à qual o próprio aviador havia se referido no filme, consiste em fazer parecer o que, na realidade, é outra coisa. A sua transgressão implica numa condenação - que pode ser a morte - e não é outro o destino do herói aviador quando este decide romper o rígido sistema de convenções e fugir com a mulher do Barão. A este código, Renoir aplica uma visão irônica e muitas vezes amarga. Não será talvez por acaso que - colocando-se no filme, na pele do ligeiramente bufônico Octave - Renoir estivesse provavelmente estabelecendo a possibilidade de consciência numa atmosfera permeada pelo grotesco. A saída de Octave, sua ida para Paris antes do ato final que encerra a tragicomédia - quando o Barão de La Chesnaye dá o fato por consumado, restabelecendo o jogo das convenções - prefigura uma perspectiva crítica. Perspectiva que constitui o núcleo do filme - com sua aproximação às comédias de Beaumarchais e seu tom de sátira ligeira, mordaz, aguçada. À época de seu lançamento, o filme se constituiu num escândalo. A platéia enfurecida tentou queimar bobinas da obra utilizando como archotes exemplares do jornal fascista L'Action Française. Desaparecidos os seus negativos durante a guerra, a obra foi reconstituída graças ao trabalho persistente de Jean Gaborit e Jacques Durand. Esta "ressurreição", por meio da qual se tornou possível recompor uma cópia integral da obra, foi dedicada por Jean Renoir ao critico e teórico francês André Bazin. Pode-se dizer que, graças a este trabalho, La règle du jeu pôde influenciar importantes obras posteriores, como o excelente Sorrisos de uma noite de verão de Ingmar Bergman. Entre os atores poderíamos citar, além dos mencionados acima, Paulette Dubost como Lisette, a dama de companhia de Christine (Nora Gregor), uma expressão da alma do povo francês. Mila Parély como Geneviève de Marás, a amante desprezada, estabelece um equivalente, em sua louca histeria, à classe e fineza de Christine, "uma coisa rara hoje em dia", segundo um dos personagens. E Jean Renoir, como Octave, compõe um excelente tipo-personagem, levemente chaplinesco em seu humor amargo e desajeitado.
Sérvulo Siqueira
Publicada no jornal O Globo em 22 de junho de 1977 |