Repulsa ao Sexo: Da facilidade de ser Roman Polanski

  

Do polonês A faca na água até os ingleses Repulsa ao sexo e Armadilha do destino mesmo sem se conhecer A dança dos vampiros e O bebê de Rosemary, ainda não exibidos em São Paulo, é fácil perceber a trajetória de Polanski. Nascido em Paris, formado em cinema na Escola Experimental de Lods, dirigida por Andrzej Wajda, autor de dois inteligentes curtas antes de passar ao longa metragem, Polanski surgiu depois de O bebê de Rosemary, realizado nos EUA, amparado das águas de uma eficiente campanha publicitária desfrutando de uma popularidade que o apontava como “um novo Hitchcok [sic]”.

Repulsa ao sexo, o seu segundo filme, é o terceiro a ser exibido em São Paulo depois de A faca na água e Armadilha do destino. A faca na água, há pouco reprisado no festival do cinema polonês no cine Bretagne, trata da aventura trágico-sentimental de um casal de classe média desencadeada pela aparição de um jovem estudante durante um fim de semana. Armadilha do destino explora os incidentes tragicômicos deflagrados quando dois ladrões feridos procuram refugio num castelo medieval habitado por um homem de meia idade e sua jovem e linda mulher. Em ambos os filmes a câmera de Polanski se exercita inteligente e sofisticadamente sobre assuntos extremamente banais, onde se percebia uma qualidade evidente: o gosto pelas sutilezas de encenação e um certo preciosismo estético.

Repulsa ao sexo revela um elemento até então inédito em sua obra: a preocupação com a escolha de um grande assunto. A análise do processo neurótico-homicida de uma manicure. A escolha da manicure como profissão de Carol(Catherine Deneuve) não é casual. Ela pretende mostrar que as características  da sua psicose encontram suas mais fundas origens no instituto feminino de beleza onde a personagem trabalha. O instituto de beleza é, para quem se decida a analisá-lo, um mundo extremamente denso e fechado aos homens. Não é apenas um lugar onde as mulheres tratam de seu corpo, mas onde desfrutam de uma intimidade jamais perturbada pela presença masculina. É onde participam intensamente de sua vivência em assuntos que vão desde o ultimo vestido que fulana usou até as mais intimas confidencias sobre maridos, namorados e amantes. Nestes institutos respira-se um clima rigorosamente feminino e fútil, às vezes perturbado pela presença de homens, em geral homossexuais que ali trabalham.

O apartamento onde mora com a irmã é para Carol a extensão do universo fechado do instituto de beleza, mas a presença cada vez mais frequente do amante casado da irmã rouba-lhe a intimidade desejada e destrói a sonhada harmonia estática das coisas. A mise-en-scène de Polanski é fragmentária. Ela parte do instituto, mostra a relação entre Carol, a irmã e o amante e chega ao terceiro elemento do enigma; o jovem que paquera Carol e que,  ao se intrometer no universo mental da manicure, deflagra nela o fato que precipitará toda sua compulsão: o conhecimento inegável da existência do homem e portanto de sua necessidade (conhecimento-necessidade). A viagem da irmã com o amante desencadeia todo o processo psicótico de Carol; os telefonemas insistentes de Colin, a conversa com a amiga abandonada pelo namorado, o refugio da manicure em sua casa, a visão da destruição física do apartamento, os homicídios, os delírios terminam por levar a personagem à morte. Para Polanski o processo de desmantelamento do mundo material do apartamento marca e pontua a progressiva destruição do universo mental e psicológico da manicure levando-a até a morte debaixo da cama, ultimo refugio de Carol e seu ódio ao mundo depois que se consuma a destruição de seu quarto.

A mise-en-scène de Polanski caminha de fora para dentro, do claro mundo exterior para o escuro mundo interior, num processo que vai do instituto de beleza onde tudo é branco para o apartamento onde se esconde Carol para de lá não mais sair, iluminado num estilo propositalmente expressionista pela fotografia de Gerald Taylor (BSC). A encenação de Polanski é linear. Na ânsia de transmitir a compulsão neurótica da personagem, ela decompõe todos os elementos da estória em uma estrutura fragmentaria e acaba caindo no esquemático e superficial: acentua a destruição do mundo interior mental da manicure pela destruição do mundo exterior material do apartamento, representa a repulsa física da personagem ao sexo por mãos que penetram por entre as paredes, homens que surgem através de portas e janelas etc.

Se uma certa critica insiste no fato de Polanski como “um novo Hitchcock” é preciso que se diga que de Hitch o cineasta polaco-anglo-americano herdou somente os seus elementos superficiais: um certo gosto decadente pelos preciosismo e maneirismos de encenação e o lado irônico do diretor de Os pássaros. Veja-se para isso como a analise de Polanski tem os seus elementos estruturais calcados em filmes de Hitchcock, principalmente Vertigo e Marnie. Repetir este cineasta tanto tempo depois é no mínimo redundância. Para não chamar de pastiche.

Ficar no embevecimento passivo deste cineasta é uma atitude típica para múmias de cinemateca, não para um cineasta que precisa saber que se Hitchcock é um dos maiores mestres do cinema a evolução da linguagem cinematográfica passa pela sua obra, vai até o neo-realismo, chega a Antonioni e Resnais e é impulsionada hoje principalmente por Godard e Kubrick. Polanski ao que parece desconhece tudo isso. Ele se contenta simplesmente em ser um subproduto de Hitchcock.

 

Sérvulo Peres Siqueira

 

Publicado no jornal Diário de S. Paulo em 13 de maio de 1969