Projeção de cinema no Brasil: Anos 80

Imagem indefinida, som distorcido

Qualquer espectador brasileiro pode se deparar com constantes defeitos de projeção que os nossos cinemas apresentam: filmes escuros, oscilação constante na imagem, roncos contínuos do som, alteração de foco durante a projeção, filme fora de quadro, aparecimento de fantasmas na tela, manchas e riscos durante a passagem de rolo, além de toda sorte de acontecimentos inesperados, que podem decorrer tanto da falta de condições do operador como da precária manutenção do equipamento utilizado. Visto num contexto mais amplo, o estado de conservação das nossas salas de projeção aparece hoje como uma verdadeira calamidade nacional e contribui para um contínuo afastamento do público, que acaba se refugiando nas poltronas das salas de estar, diante de uma freqüentemente asséptica imagem de televisão.

As razões existem e são muitas, invocadas pelos setores mais interessados e vão das queixas quanto ao baixo preço dos ingressos à crítica à falta de interesse dos donos dos cinemas, passando – como é natural entre os exibidores à uma hipotética responsabilidade do cinema brasileiro, cuja baixa qualidade e sua obrigatoriedade de exibição estariam minando a confiança do público. De qualquer maneira, os maiores prejudicados acabam sendo sempre os fotógrafos e o espectador. Numa cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, contam-se nos dedos da mão as salas de projeção em condições de exibir, com um desempenho pelo menos razoável, a imagem e o som de um filme de longa-metragem.

Onde estaria a solução? Em princípio, é difícil dizer, mas entre as causas do péssimo estado dos nossos cinemas qualquer que seja o nível de discussão que se estabeleça estariam sempre os seguintes motivos:

A atividade econômica de exibidor cinematográfico não se desenvolveu com o mesmo ritmo da atividade de produção de filmes: as salas não acompanharam o aperfeiçoamento tecnológico que o cinema sofreu. Enquanto um filme americano de média ou grande produção, por exemplo, é feito com sofisticadas lentes, gravado em 20 ou mais pistas de som, as nossas salas ainda empregam projetores a carvão, as lentes nem sempre são limpas, a tela jamais é lavada etc... Um forte argumento para esse fato seria aquele ligado à própria crise do cinema, substituído largamente como veículo de massa pela televisão. Remanescentes do tempo em que esse poderoso eletrodoméstico de tela quadrada ainda não havia sido inventado, imensas salas subsistem até hoje como verdadeiros dinossauros ineficientes e obsoletos. Na época do senssurround, do sistema Dolby-Stereo, das lentes anamórficas, esses cinemas ainda permanecem como verdadeiras relíquias pré-históricas equipados com suas raquíticas caixas de som e seus velhíssimos projetores a carvão. Os exibidores ainda não se deram conta de que a evolução eletrônica compactou os aparelhos, criou circuitos integrados e que hoje não há mais lugar para imensas salas. Por outro lado, os projetores a carvão não proporcionam a luminosidade adequada e como o seu custo é muito caro os cinemas costumam exibir os filmes com uma voltagem mais baixa para gastar menos energia.

Por sua vez, os donos das salas de cinema se queixam de que o preço dos ingressos é muito baixo e que isso torna a atividade pouco estimulante, já que a especulação imobiliária tende a ocupar os seus espaços com shopping-centers e edifícios de salas e apartamentos. Isso representa certamente uma verdade mas também é certo que, ao longo dos anos, os exibidores se acostumaram a encarar o seu negócio afinal uma atividade ligada à indústria cultural como uma simples empresa de secos e molhados. Abrir um cinema não significa simplesmente montar um armazém de esquina, instalar um balcão e oferecer mercadorias. Um mínimo bom senso já recomenda que é preciso valorizar o produto que se vende, ainda mais quando esse produto depende de modernos equipamentos, poltronas confortáveis, instalações em bom estado e, principalmente, a melhor apresentação possível, o que, no caso, quer dizer uma projeção cinematográfica conveniente.

Independentemente das soluções que possam ser levantadas, o fato é que a maioria dos quase três mil cinemas brasileiros não observam com frequência as regras elementares de uma boa exibição: os problemas começam logo no início da projeção e podem chegar até a um final prematuro, se porventura o operador – cansado suprimir um rolo inteiro e voltar para casa mais cedo.

Um roteiro das agruras pelas quais pode passar um espectador de filmes implica necessariamente em ao menos um desses acidentes de projeção, que ocorrem com freqüência nos nossos cinemas.

Se no início de uma projeção a luz começa a oscilar à medida em que a tela vai escurecendo, saiba que este é o mais freqüente dos problemas a surgir durante uma exibição: ele acontece nos projetores a carvão. Neles, a luz é fornecida através de aproximação de um bastão a um eletrodo. A passagem da corrente elétrica provoca o desgaste do carvão e a emissão de uma luz forte. Entre o eletrodo e o carvão existe uma mola com a função de manter a distância fixa à medida que o carvão se desgasta. Se a mola emperra, a luz vai baixando até escurecer completamente. Os cinemas estão substituindo o carvão pelas lâmpadas a xenon. Apesar do alto custo de instalação só a lâmpada custa 40 mil cruzeiros a mudança compensa e com isso a luz pode ser mantida em estado constante durante a projeção. Acontece, no entanto, que uma lâmpada funciona a contento por no máximo quatro mil horas e algumas cadeias de cinemas costumam passar as lâmpadas velhas dos cinemas mais luxuosos para os mais simples e, então, a projeção escura deixa de ser um privilégio dos projetores a carvão. Nos planos com imagem fixa é comum ocorrer uma oscilação constante na imagem. Em geral o problema é resolvido ajustando-se a pressão com que o filme passa pela janela do projetor: se a pressão for grande, o filme pode romper; se for pequena, a imagem oscila. Como isso costuma acontecer com apenas um dos projetores, os espectadores não reclamam pois, com a mudança de rolo, a imagem melhora. Agora, se a questão é um ronco contínuo do som, uma simples mudança da lente excitadora do leitor de som ótico pode resolver. Muitas vezes, uma lente mal alinhada pode registrar as perfurações do filme e provocar um desagradável ruído. Por outro lado, o som abafado é decorrente da falta de limpeza da tela. As caixas de som ficam atrás da tela, que é toda perfurada para facilitar a amplificação. Uma tela deve ser limpa ou trocada no máximo a cada dois anos porque o acúmulo de poeira prejudica a emissão.

É sabido que um dos maiores problemas dos cinemas brasileiros é a deficiência do som. Segundo José Luís Sasso, técnico de som do estúdio Álamo, em São Paulo, o maior responsável é o péssimo dimensionamento acústico das salas. Sasso lembra que "não se constróem mais salas especialmente para cinema; geralmente os novos cinemas são construídos em garagens e edifícios, sem a menor preocupação de acústica". "Como o equipamento não é bom e não há uma boa manutenção, temos então um péssimo som nas projeções", conclui o técnico.

Entre todos os problemas, provavelmente o mais irritante é o da costumeira falta de foco na tela. A passagem de uma emenda ou até mesmo o calor modificam a distância entre a película e a objetiva e produzem o desfoque. Pode-se dizer que em muitas salas nunca ocorre um foco perfeito na tela toda. Freqüentemente a objetiva não está bem ajustada ou, pior ainda, a tela foi mal instalada e se encontra desalinhada em relação ao projetor. O técnico Benito Biondi, encarregado da manutenção dos cinco cinemas da CIC (Cinema International Corporation) em São Paulo, considera que esse último problema é muito freqüente nas salas que surgiram da divisão de cinemas maiores.

Outro defeito contumaz nas projeções é quando o filme fica fora de quadro. As causas: uma emenda mal feita, que come a perfuração da película; um filme que não foi bem revisado ou as mudanças de rolo, quando o filme é mal ajustado na janela, a máquina começa a rodar, a fita perde perfurações e sai de quadro. Um defeito mais comum nos cinemas baratos é notar-se fantasmas na tela, especialmente nas áreas claras e nas legendas. A causa é geralmente um vidro colocado defeituosamente na parede em frente à objetiva ou simplesmente a ausência pura e simples do vidro; há apenas o buraco. Por último embora obviamente não o menor deles temos os constantes problemas na troca de rolo, que geralmente é feita a cada 20 minutos. Segundo os operadores, este é o momento mais delicado de uma projeção e quanto pior a projeção e a cópia, mais se nota a passagem: o filme entra fora de quadro, desfocado, riscado, sem som ou, às vezes, nem entra.

 É o caos por mais luz que haja na tela.

 

Sérvulo Siqueira, com a participação de Ricardo Dias

Publicada  na revista Filme Cultura 38/39, Ago/Nov 1981