O Diabo na rua, no meio do redemoinho...

 

O ponto de partida do cinema de Carlos Alberto Prates Correia é ao mesmo tempo simples e bastante racional: ao longo de 5 longas-metragens e um filme curto, o diretor coloca seus personagens numa espécie de camisa-de-força, um universo fechado caracterizado por várias formas de coerção moral, psicológica, social, econômica, geográfica e mítica. Esmagados pela opressão, eles tentarão escapar a essa situação. Somente alguns serão bem-sucedidos, ainda assim à custa de sua própria identidade, negando-se a si mesmos. Na maioria das vezes, o caminho para essa superação será exercido através de uma intensa exacerbação do instinto sexual, que se constitui paradoxalmente na sua força e fraqueza.

Ambientado no bairro da Lagoinha, periferia do centro de Belo Horizonte, O Milagre de Lourdes (1965), seu primeiro filme – um curta-metragem de 11 minutos – é um drama psicológico rodado num cenário de cinema neo-realista. Perseguido como falsário e escroque, um suposto padre se refugia num bordel, onde é forçado a fazer amor com uma prostituta para escapar à caçada.

O personagem Felisberto – interpretado por Jorge Coutinho – de Crioulo Doido (1970), seu segundo filme, é um alfaiate negro que deseja romper seu opressivo universo de discriminação racial e exclusão econômica e social. Casa-se então com Sebastiana, uma branca (Selma Caronezzi) – que também almeja escapar à falência a que foi relegada pelos pais – vende a alfaiataria e torna-se fazendeiro. Com o dinheiro da venda dos bois, vira agiota, emprestando a juros altos para escapar à inflação.

Seduzido pela idéia de que o fim do mundo está próximo, passa a ouvir vozes anunciando que o apocalipse ocorrerá num primeiro de janeiro. No dia marcado, senta-se no alto de um morro e aguarda o desfecho. O despertador toca e, em seguida, cai uma chuva. O tempo melhora e Felisberto conclui que Deus mudou de idéia. Ao invés de entristecer, por ter perdido tudo, ele se alegra. Transforma-se então num louco de rua, percorrendo a cidade seguido pela criançada.

Filmado em Sabará, que Antônio Callado chamou de "a cidade assassinada", Crioulo Doido é a história de um personagem metódico, minucioso e cauteloso cuja loucura se torna a única saída possível para uma extrema racionalidade.

Seu terceiro filme, Perdida (1975), ganhador de muitos prêmios e marco no cinema brasileiro contemporâneo, conta a trajetória de Estela (Maria Sílvia), que trabalha como doméstica numa casa de família onde é freqüentemente humilhada pela patroa e assediada pelo marido e o filho. Depois de muitos constrangimentos resolve abandonar o trabalho e cair na estrada.

No caminho, encontra Júlio César (Álvaro Freire), um caminhoneiro matreiro. Na ânsia de escapar à triste rotina dos serviços domésticos, Estela aceita sua proteção e se torna uma rapariga da "zona", com o nome de Janete. Enquanto espera a volta do protetor, conhece Zeca de Oliva (Helber Rangel), um poeta arrebatado, que lhe propõe a fuga para a roça.

Zeca acaba sendo morto por um amante de Janete, interpretado pelo próprio diretor, sob o pseudônimo de Charles Stone. Assustada e sem esperanças, Janete volta a ser Estela e arranja um emprego no setor de empacotamento de um frigorífico. Recusa o convite de Júlio César para voltar à vida de rapariga e viaja para Belo Horizonte. A última imagem do filme repete a primeira, evidenciando uma mesma e recorrente situação da qual a personagem não consegue se evadir.

Uma das primeiras seqüências de Cabaret Mineiro (1979) coloca em cena dois personagens centrais desse cultuado filme de Carlos Alberto Prates Correia. Nela o personagem principal, que ostenta o emblemático nome de Paixão, seduz e é seduzido por sua companheira numa viagem de trem. Incapaz de se contrapor à avassaladora concorrência norte-americana nos negócios, sem cacife para bancar seu próprio jogo no carteado e incorrigível amante dos prazeres do corpo, Paixão passa então a exercitar o único recurso com que efetivamente conta – o dos sentidos – e "cai na gandaia". Sua opção descontrolada determina a perda do sonho de plena integração ambicionado pelo personagem e a continuidade de um universo concentracionário permanentemente delirante.

O epílogo do filme - uma adaptação em estilo de parábola de Sorôco, sua mãe e sua filha, de Primeiras estórias - já antecipa uma ligação previsível do diretor, que se concretizará no seu filme subseqüente: o encontro da linguagem cinematográfica de Carlos Alberto Prates Correia e do universo ficcional e mítico de Guimarães Rosa.

Em Noites do Sertão (1983), adaptação de Buriti, novela de Guimarães Rosa publicada em Corpo de Baile, Lala (Cristina Aché), após ser rejeitada pelo marido, hospeda-se na propriedade rural Buriti Bom de seu sogro Iô Iodoro (Carlos Kroeber), onde o fazendeiro vive com as duas filhas. Faz então amizade com Glorinha (Débora Bloch), irmã de seu marido, que com sua florescente sensualidade instiga o orgulho feminino ferido de Lala.

Conhece também a mística Maria Behú (Sura Berditchevsky), irmã de Glorinha, torturada pela repressão e a culpa; o pequeno fazendeiro João Gualberto Gaspar, um personagem invejoso e sorrateiro (representado por Carlos Wilson, também íntimo colaborador do diretor e cenógrafo de muitos de seus filmes) e o Chefe Zequiel (Milton Nascimento), atormentado por entidades e visões da terra. A chegada de Miguel (Tony Ramos), um jovem veterinário que imediatamente é visto como um pretendente para Glorinha, modifica a atmosfera e o imaginário do lugar.

Ultrajada pela rejeição do marido, Lala passa então a cultivar o desejo secreto de sedução do sogro que, como um Drácula e vestindo uma capa cinzenta, vara as noites em busca de compensações sexuais com amantes da região.

Mais do que paisagem, a natureza de Noites do Sertão, imensas veredas e altos buritis com suas intensas pulsações da noite, é um personagem do filme, envolvendo com seu manto diáfano – o canto noturno das aves, o ranger do monjolo - a todos os protagonistas. Dominados pelo medo e a impotência, os personagens de Noites do Sertão não parecem querer verdadeiramente escapar à presença totalizante e avassaladora da terra. Apenas a personagem de Lala busca uma saída àquele universo tão abrangente, conquanto a concretização da sedução do sogro – ainda que consuma a realização plena de sua condição feminina – represente uma violentação de sua pretensa condição de mulher cosmopolita e urbana.

Minas Texas (1989) realiza outra das características do cinema do diretor, o gosto pelas citações e auto-referências cinematográficas, fruto de seu perfeccionismo e do contínuo exercício de refazer antigas seqüências. Com o subtítulo de The old Texas of my dreams – rememoração de uma fala do personagem de Helber Rangel em Cabaret Mineiro – o filme conta em tom de paródia a história de um grand-guignol de funâmbulos, verdadeira coletânea de tipos e arquétipos bizarros, nascidos da mitologia dos gêneros do faroeste, filmes de terror, policiais, melodramas românticos e comédias de costume do cinema americano dos anos 40 e 50, que se agrupa numa fazenda em torno de Januária (Andréa Beltrão), moça sonsa e voluptuosa, seqüestrada no altar por ordem de Roy Pereira (José Dumont).

Enquanto espera a chegada de Roy e se prepara para uma possível vingança do noivo Amorim (Tony Ramos), um pequeno exército Brancaleone composto de dois bandidos renegados, Amantino e Mexicano, o sacristão Athayde (José Dumont, em outro papel), Augustão, misto de Quasímodo com Frankenstein personificado por Saulo Laranjeira, o croupier Tony Abreu (Wilson Grey) e o "intrépido" General Custer (Álvaro Freire), um notório caçador de índios do Oeste americano que fala com sotaque norte-mineiro, dedica-se a tarefas várias como fazer um roçado, garimpar ouro, caçar, cuidar do gado ou simplesmente exercitar sua libido em intercursos lascivos com a fogosa Januária.

O tempo passa e Roy Pereira – personagem que é uma emulação de Durango Kid, do Homem Morcego e do Zorro – não volta nunca, até que Januária, já grisalha e desiludida, decide retornar à casa paterna. O último filme de Carlos Alberto Prates Correia, realizado há mais de 12 anos, termina com uma nota melancólica e sem esperança. Aprisionados pela intensidade da camisa-de-força do anestesiante mito dos antigos astros do cinema americano, os personagens não conseguem escapar à própria coerção da representação a que se impuseram e acabam por se tornar simulacros de um "velho Texas dos seus sonhos", que nunca se concretiza.

Seria este o fim do caminho? Na verdade, ainda há muito mais sobre o cinema do diretor. Sua vasta e rica trilha musical é quase como um violino solo na ampla orquestração audiovisual dos filmes, ao comentar, sublinhar, ironizar ou contrapontuar a narrativa, criando ou modificando climas dramáticos. O amplo espectro que alcança – a seresta, a música de marujada, o xote de Luiz Gonzaga e as canções de Noel Rosa, Ary Barroso, Cartola, Roberto Carlos, Luiz Melodia, até os boleros de Adelino Moreira e Agustín Lara, sem esquecer as composições de Benedicto Lacerda, João Pernambuco e Ernesto Lecuona – faz de sua trilha um barômetro do gosto musical médio das décadas de 50, 60 e 70, e reflete um painel do imaginário popular da época.

A escolha dos intérpretes recupera vozes já esquecidas – além de outras sempre lembradas – como o grupo de serestas João Chaves, os cantores Jorge Goulart, Cauby Peixoto, Francisco Carlos, Bob Nelson, Pena Branca e Xavantinho, Emilinha Borba, Ângela Maria, Jamelão, Nelson Gonçalves, João Gilberto, os Novos Baianos e Tânia Alves, além do violão de Dilermando Reis, do Trio los Panchos e da orquestra Românticos de Cuba. Construindo a espinha dorsal desta intrincada arquitetura musical estão as composições – algumas originalmente concebidas para os filmes – de Zezinho da Viola, notável e anônimo compositor do Norte de Minas, as canções de Tavinho Moura e Murilo Antunes e a colaboração preciosa de Antônio Rodrigues, conselheiro, compositor e ator em muitos dos filmes do diretor.

Os cenários de praias de rio, chapadões, terras áridas e rochosas, encostas íngremes e altas cordilheiras representam ao mesmo tempo um universo real e imaginário e seus locais de filmagem tanto podem ter sido Diamantina, Montes Claros, Sabará, Matozinhos, Paraopeba, Contria, São Gonçalo do Rio das Pedras ou Belo Horizonte – na Minas Gerais do diretor – quanto o bairro de Santa Cruz, na região oeste do Rio de Janeiro, um lupanar em Copacabana ou a Vista Chinesa. No cinema de Carlos Alberto Prates Correia a ilusão é um ingrediente preponderante da narrativa.

Dos diálogos de seus filmes, pode-se dizer que é um dos mais peculiares do cinema brasileiro, procurando captar o coloquialismo retórico e pudico do linguajar mineiro, tal como a obra de Nelson Rodrigues busca recriar a atmosfera dos subúrbios cariocas.

O diabo, como se sabe, é muito velho e precisa ser astuto, não pode ser domado facilmente. A enorme variedade de nomes que o povo lhe atribui prova a sua capacidade de disfarce e metamorfose. Por outro lado, não pode ser responsabilizado por todas as iniqüidades, já que os maiores crimes foram cometidos em nome de e por pretensos seguidores de Deus. Em muitos casos, essa é uma linha tênue e contraditória.

O cineasta está à espreita.

Sérvulo Siqueira

Texto de apresentação da retrospectiva do diretor, realizada no Centro Cultural São Paulo entre 12 e 17 de março de 2002.