Introdução à "nossa" modernidade
"Porque agora vemos através do espelho, de maneira confusa, mas depois veremos face a face; agora conheço em parte, mas depois conhecerei como também sou conhecido". (1° Coríntios 13:12)
Quase 100 anos depois da chegada do cinema ao Brasil, em que estágio se encontra atualmente a nossa atividade cinematográfica? Quase nenhuma produção, atores e técnicos desempregados, um único laboratório semiparalisado. O que restou de uma atividade que gerava mais de 100 filmes longa-metragem no final da década de 70, representando um terço de nosso mercado, um número ainda muito maior de curtas e uma afluência sempre crescente de espectadores? Mais de quinze anos de recessão mergulharam a nossa sociedade – e por extensão a vida cultural do país – num torpor quase catatônico. Enquanto assistimos à perda progressista de nossas mais ricas tradições culturais e à ocupação do nosso espaço por produtos de consumo e novelas importadas, nos perguntamos quem somos e, afinal, para onde estamos indo. Numa sociedade em que estar atualizado é apenas se manter informado do que se passa lá fora, nos conformamos cada vez mais com o papel de colônia e o nosso povo já se habituou à situação de simples figurante no proscênio da política internacional e da nova ordem mundial. No entanto, é preciso saber que – a despeito da nossa condição de eterno país subdesenvolvido – a nossa cultura nem sempre esteve nesse mesmo plano. Fomos capazes de produzir ao longo do século 20, por exemplo, uma literatura de muito bom nível, uma arquitetura reconhecida internacionalmente e um cinema, que apesar das dificuldades em seu mercado interno, obteve a recompensa de premiações em festivais no mundo inteiro. Isto, para não falar na nossa música popular, que é indiscutivelmente um produto da mais alta elaboração harmônica e melódica e cujo ritmo é único no mundo. Com a exceção de alguns segmentos da música popular, o nosso produto cultural tem sido escoado para o mercado externo, enquanto nós ficamos aqui ouvindo músicas numa letra que não compreendemos, assistindo a filmes cujos heróis são apenas um veículo para a comercialização de novos produtos e de padrões de comportamento que limitamos a macaquear grosseiramente. Como observa o cineasta João Batista de Andrade, "o poder de imposição que tem o filme americano sobre nós é tão grande que ele não só esmaga o nosso cinema, mas esmaga também o cinema argentino no Brasil, esmaga o cinema indiano no Brasil, esmaga o cinema japonês no Brasil; ou seja, a gente só vê filme americano. O cinema peruano, o cinema argentino, o cinema cubano e outros cinemas nacionais nos interessam tanto quanto o cinema russo e o cinema jovem independente americano, que também não vêm", lembra João Batista. Nos últimos anos, enquanto os pilares da nossa incipiente indústria cultural iam sendo desmontados, produziu-se uma espécie de falsa cosmopolitização da nossa cultura, como se a barra pesada de Nova York pudesse substituir a de Duque de Caxias ou a guerra de gangs de Los Angeles fosse mais charmosa que a atividade dos esquadrões na Baixada. Será que é isto mesmo o que eles chamam de modernidade?
Sérvulo Siqueira
Publicada no jornal Toque Cidade em agosto de 1992 |