Fotografia de Cinema no Brasil Hoje
Sérvulo Siqueira
Quando Orson Welles aterrissou por aqui, nas asas da política panamericanista de Franklin Roosevelt, extasiou-se com a cor e a luz dos trópicos e se perguntou porque é que uma realidade tão abundante não se transformava de simples consumidora de imagens alienígenas em forte produtora cinematográfica. O circuito colonial de eterno importador de produtos industrializados e exportador de matérias-primas poderia ser claramente invertido num país cuja paisagem natural e cultural era audiovisual por excelência. Welles não estava levando em conta outras razões – as de ordem econômica e industrial por certo – e 20 anos ainda se passariam até que uma geração – estimulada por movimentos internos e externos em busca de uma cultura independente – retomou as discussões de um cinema esteticamente novo. O aperfeiçoamento de novas técnicas na indústria cinematográfica e as propostas de uma linguagem que liberasse o cinema da camisa de força da produção comercial de estúdio foram o ponto de partida. As novas câmeras Arriflex em 35 e 16 mm, o desenvolvimento dos equipamentos de registro de som – os gravadores Nagra e Uher – forneceram a infra-estrutura para um novo estilo, já prenunciado no pioneirismo poético dos neo-realistas. No Brasil, Alex Viany, Roberto Santos e Nelson Pereira dos Santos, já punham em prática um cinema que prescindia cada vez mais dos artifícios de estúdio, inspirados num realismo crítico e no arrojo e criatividade de Humberto Mauro e seus operadores. A luta por um cinema independente levou à busca de uma nova linguagem e, ao mesmo tempo em que roteiristas e diretores, os fotógrafos brasileiros – empunhando geralmente velhas Cameflex ou quase desconhecidas Arri – começaram a filosofar sobre a nossa realidade, refratada através de um visor. Relata Glauber Rocha em Revolução do Cinema Novo: "O normal era luz natural ou artificial? Cinema em estúdio ou em ambientes reais. Câmera na mão ou no tripé. Filtro ou lente crua. Maquilagem ou pele bruta. Questões éticas, estéticas e técnicas. Os laboratórios resistiram às invenções de Barreto mas terminaram compreendendo a novidade. Com Kodak, Ferrania, Fuji, Dupont arrastados em deficientes Arry Flex, a luz tropical imprimia." Um dos primeiros a romper com o esquema câmeras pesadas-equipamento de luz igualmente pesado, tipo câmera Mitchell-lâmpada a fresnel com armação de ferro, foi Hélio Silva, cujo olho enquadrou e iluminou os filmes de Nelson Pereira dos Santos, que ofereceriam no preto e branco uma nova face da nova realidade. Mais tarde, outros iluminadores iriam dar aos filmes do Cinema Novo o clima adequado a um movimento independente, desvinculado dos imediatos interesses da indústria. Pouca luz, equipamento leve com câmera na mão, quase nenhum carrinho e sem grua, os fotógrafos brasileiros foram imprimindo a nossa luz contrastada, sem filtros e sem retoque. O colorido veio – como era inevitável – e o Plus-X, o Double-X, o Dupont, o Ferrania, o Fuji, foram pouco a pouco sumindo do mercado, num estreitamento que terminou por levar ao monopólio da Kodak. Mas, apesar da expansão da incipiente indústria cinematográfica brasileira, a nossa infra-estrutura continuava deficiente. Com o imperativo de ampliar as conquistas de mercado, a luta pelo nosso espaço cultural contra o capital monopolista estrangeiro e os desafios estéticos impostos por um cinema de maior qualidade técnica surgiu a necessidade de câmeras mais bem equipadas, novos e mais flexíveis parques de luz, acessórios em bom estado – como trilhos, dolleys, gruas, etc. No entanto, a modernização desse equipamento se fez sempre de forma desigual e à mercê de iniciativas isoladas de produtores, que sentiam na pele a urgência de um melhor aparato técnico. Para que o cinema brasileiro continuasse a sua trajetória, era preciso que ainda continuasse a dispor dos recursos à mão, a prata da casa que pouco se modificara. É certo que a rápida sofisticação dos filmes publicitários havia modernizado o equipamento das produtoras especializadas e desse processo o cinema brasileiro de qualidade – tanto o longa como o curta-metragem – haveria de colher alguns dividendos. Que nem sempre poderiam ser pagos, já que o aluguel desses novos equipamentos inflacionava brutalmente o custo das produções e os tornava freqüentemente inviáveis. Por outro lado, as firmas especializadas em locação desejavam ressarcir-se dos investimentos feitos e cobravam preços altíssimos de aluguel. Imprensado entre a crescente necessidade de qualidade técnica competitiva no mercado e os altos custos de produção decorrentes dessa qualidade, ao cinema brasileiro só restou o artifício do selvagem que trabalha com o que tem à mão, a invenção e a criatividade que reforçam e caracterizam o cinema como uma recriação fantástica da realidade. Foi necessário – sobretudo a partir dos anos 70 – que a nossa miséria tecnológica se adaptasse ao requinte de um cinema de espetáculo e é claro que isso não poderia ser realizado sem um peculiar "jogo de cintura" tupiniquim. Mas a questão não se limitava somente ao equipamento. Uma boa imagem não se cristaliza sem um laboratório em condições adequadas de revelação e copiagem, para dizer o mínimo. No entanto, esse capítulo ainda constitui questão pendente e motivo de contínuas contestações entre produtores, diretores e fotógrafos e os responsáveis pelo processamento dos nossos filmes. Às queixas daqueles ligados à produção de que os laboratórios nem sempre têm cuidado com a revelação e copiagem, ou que freqüentemente perdem ou sujam os negativos, ampliam sem qualidade – além de outras reclamações menores – o outro lado replica que os fotógrafos brasileiros não estão capacitados, em sua maior parte, a trabalhar com eficiência em condições industriais, que não têm uma formação técnica conveniente, etc. A polêmica provavelmente se diluirá com o tempo, na medida em que um melhor intercâmbio se estabeleça e que as partes interessadas passem a considerar que a sua própria sobrevivência depende do aperfeiçoamento da qualidade técnica do nosso cinema. Essa consciência passará necessariamente pela qualidade técnica, sem a qual uma estética realmente nova estaria prejudicada, e só se tornará possível com a participação dos diversos segmentos diretamente interessados, compreendendo, inclusive, os distribuidores e exibidores. Apesar de um certo isolamento dos laboratórios – cuja renda é basicamente decorrente do processamento dos filmes estrangeiros – o setor dos distribuidores e exibidores ainda permanece como um enclave externo que não considera que a sua continuidade está ligada a produtos cinematográficos gerados dentro das nossas condições específicas. Esse isolamento é que leva por certo à total falta de sintonia entre a buscada, ansiada, sonhada qualidade técnica de imagem e som do cinema brasileiro e a resposta, freqüentemente insatisfatória, dada pelas salas de projeção dos aproximadamente três mil cinemas – muitas delas funcionando várias vezes ao dia – que exibem imagens desfocadas, fora de quadro, riscadas etc, contribuindo decisivamente para a falsa e generalizada impressão de que o nosso produto nunca é bom. E não se poderia dizer que as críticas vêm somente do cinema brasileiro, já que os laboratórios se sentem extremamente lesados pelos exibidores, conforme atestam as palavras de Victor Bregman, gerente industrial da Líder Cine Laboratórios: "Alguns cinemas não têm boa projeção, os espelhos estão quebrados; quando não usam xenon os carvões são de má qualidade e, em geral, a própria xenon eles não utilizam em condições corretas. Não sei de nenhum cinema que mande limpar suas telas e que dê às lentes a atenção devida, quando se sabe que elas são responsáveis pela qualidade da projeção. Além disso, costumam colocar óleo lubrificante com aditivos e vaselina líquida nos filmes, o que ataca os corantes e a gelatina, provocando manchas que aparecem na tela." Em meio à falta de equipamento ou à dificuldade de acesso à uma nova tecnologia, aos resultados nem sempre convincentes dos laboratórios, às imagens distorcidas dos nossos cinemas, navega o iluminador do cinema brasileiro, a quem resta como compensação o constante desafio de criatividade e do improviso, imposto pelas condições adversas e insuflado pela variedade de cores e luzes destas paisagens ao sul do Equador. O que se perde em tecnologia, ganha-se numa realidade sempre disposta a se oferecer aos olhos ávidos para contemplá-la e argutos para percebê-la; os novos homens da câmera que ajudam a decifrar esse nosso mundo visível, freqüentemente conturbado e caótico. Os depoimentos que a revista Filme Cultura agora publica - embora a escolha não pretenda ser exaustiva, e entre os quais poderiam estar também os de Edgar Brasil e Manoel Ribeiro – procuraram representar e caracterizar algumas das tendências da moderna fotografia do cinema brasileiro. Estas tendências, as mais diferentes, encontram como ponto convergente a busca constante de novas soluções que melhor representem um universo visual nem sempre fácil de captar, mas ainda muito mais difícil de imprimir e conservar.
Apresentação da revista Filme Cultura 38/39, Ago-Nov 1981 |