Cinema Brasileiro nos Anos 80: Cineastas Debatem a Crise Sérvulo Siqueira Como serão os anos oitenta para o cinema brasileiro? Produtores, diretores e atores responderam a esta pergunta inicial e levantaram inúmeras outras questões: financiamentos, conquista de mercado, cumprimento de legislação, cooperativas, melhores salas de exibição, ampliação do mercado de trabalho, falta de equipamentos, cinema estrangeiro contra cinema brasileiro, Kodak, revelação e conservação de filmes, acesso à televisão, etc..., formando um mosaico de opiniões e propostas onde os objetivos principais e secundários se entrelaçavam no legítimo desejo de fazer cinema. As vozes nem sempre são as do medo; as razões freqüentemente não são as do coração. As imagens são às vezes descoloridas e às vezes nítidas, reprocessando um retrato do Brasil. Não se propõe mais as velhas e falsas dicotomias do mocinho/bandido, mas os sonhos e pesadelos dos trópicos. As vozes vão dos representantes do cinemão às do cinema independente, considerado miúra pelos exibidores mais interessados nos lucros do que na renovação. Os sonhos e os pesadelos refletem uma constante perplexidade pela continuidade do cinema brasileiro, atacado de fora pelas grandes empresas americanas e européias e sabotado de dentro pelos seus supostos aliados exibidores, que compram produtos de segunda linha e os expõem para ocupar um espaço indevido. As imagens vão desde as dos mais típicos e padronizados produtos do cinema comercial – coloridos captados através de filtros deformantes – aos inquietantes planos em câmera na mão às vezes fora de foco, aos planos-seqüência longos e insistentes e às montagens descontínuas dos filmes que acreditam ser o cinema um veículo de modificação de nossa percepção e reflexão. As razões apresentadas são mais divergentes: elas defendem tanto o incentivo às grandes produtoras, para que elas possam se constituir em empresas que exploram de forma sofisticadamente capitalista o cinema, como preconiza o fortalecimento da intervenção estatal – por meio da Embrafilme, sua representante estabelecida. Numa perspectiva diferente, outros argumentos apóiam o estímulo a um tipo de cinema que não reproduza clichês estrangeiros, mas que se vincule às forças mais vivas da nossa cultura e traga idéias novas através de imagens fortes e densas. Agrupados em torno dos temas que mais preocupam as pessoas de cinema no Brasil, os depoimentos – colhidos por André Andries, Ângela José e Regina Vasconcelos – expressam, na diversidade dos seus pontos de vista, alguns caminhos que podem levar à superação da crise, com autonomia econômica e integridade cultural. (SAS) Matéria-prima. O Monopólio da Kodak. A conservação de filmes. "A solução seria um banco de negativos, financiado pela Embrafilme e sob a guarda da Líder. A Embrafilme pode – assim como qualquer produtor – importar o negativo diretamente dos Estados Unidos. Ficaria bem mais barato porque se poderia evitar todo o custo operacional da Kodak brasileira, que é uma intermediária, além de contar com a isenção alfandegária que nós já temos. Esse banco funcionaria da seguinte maneira: no momento em que a Embra importasse uma grande quantidade de negativo, esse filme-virgem seria remetido para o laboratório Líder, onde ficaria sob sua guarda em seus depósitos. Nas co-produções em que participasse, a Embrafilme – ao invés de participar em dinheiro – forneceria o negativo como parte da co-produção." (Jece Valadão, ator, diretor e produtor) "Uma velha idéia que nós estamos sugerindo há muito tempo é que a Embrafilme deveria fazer um banco de negativos. Hoje me parece que há um consenso de que a presença da Embrafilme no mercado de produção contribuiu, em certa medida, para inflacionar os custos. Principalmente os custos de comercialização. Também os custos de produção, mas o problema mais grave que se observa é na parte da comercialização. A publicidade é caríssima e as cópias são absurdamente caras também. Então, qualquer providência que seja tomada no sentido de enfrentar essa situação é positiva. Ou seja, estocar filmes, garantir preço do filme por um certo tempo, importar diretamente, diversificar as fontes, as marcas e os processos de revelação é muito importante. O aumento do material virgem pesa muito no orçamento. Ele representa cerca de 15% do orçamento e pode chegar a 20%, dependendo da quantidade de negativo que se gastar. Em média, pode-se dizer que um filme de 3 mil metros vai gastar pelo menos 10 mil metros de negativo. Chega-se até 15 mil metros, dependendo do diretor, do tipo de filme, de certas condições de filmagem, etc. Mas, em geral, a proporção é de 3 ou 4 por 1, ou seja, uns 11 mil metros. Em cruzeiros, isso representa de 1 milhão a 1 milhão e meio de cruzeiros (US$17.600 a US$26.400)* em negativo. Num filme que custou 10 milhões de cruzeiros (US$176.250), isso corresponde a cerca de 15%, somente em negativo. Mas os custos aumentam quando se vai fazer cópias, porque cada uma, de um longa-metragem, está custando aproximadamente 100 mil cruzeiros (US$1.760). E o principal componente desse custo é o positivo. Daí porque os custos mais caros do cinema brasileiro são os da comercialização, que compreendem as cópias e a publicidade. Isso se reflete evidentemente na produção, uma vez que o filme não é feito para ficar parado, ele precisa ser comercializado. Existem várias formas de se evitar esse custo: em primeiro lugar, seria preciso diversificar as fontes de matérias-primas. Nós temos vivido em termos de uma exclusividade de fornecimento de material da Kodak. É preciso diversificar, usar negativo Fuji, usar negativo Agfa, usar positivo Orwo, positivo Fuji, etc, etc. Isso, de certo modo, já está sendo feito e até os laboratórios estão tratando de diversificar suas fontes de matéria-prima." (Miguel Borges, diretor, produtor, ex-presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica, ex-presidente do Conselho Nacional de Cinema) "Para se ter uma idéia do aumento que o preço dos negativos provocou na produção, eu diria o seguinte: no ano passado, o custo médio de um filme estava em torno de 7-8 milhões (US$123.370-US$141.000), hoje, está em torno de 15 milhões (US$264.370). Isto é o custo médio, a tendência é ser muito mais do que isto porque fala-se, por exemplo, em filmes de 30-40 milhões (US$528.730-US$704.970). Acho que tudo começou a favorecer o aumento do custo da produção e o material virgem deu o salto que falta, foi uma espécie de gota d’água. O que estamos precisando é de uma política que rompa o monopólio da Kodak e que permita a livre circulação de material sensível de outros lugares, principalmente de Orwo e Fuji." (João Batista de Andrade, cineasta paulista, diretor de filmes para a televisão) "A revelação no Brasil? É o seguinte: você faz um filme e, no dia em que for mandá-lo para o laboratório, acende uma vela e pede para todos os seus guias astrais que os técnicos funcionem, que tomem conta da máquina – eles que nem sabem como ela funciona direito – e que não durmam na hora em que está passando seu filme. Eu sempre tive muita sorte com os laboratórios, saravá! Em termos de conservação de negativos no Brasil, pode-se dizer que há muito pouca coisa. Parece que a Cinemateca Brasileira agora está com uma aparelhagem muito boa e uma mão de obra qualificada para trabalhar na conservação dos originais. Mas os próprios produtores ainda não se sentem confiantes em colocar lá os seus filmes porque, em geral, o produtor/autor do filme trata o filme como uma criança. Ele quer ficar perto do negativo. Então, muitas obras brasileiras se perderam por negligência de conservação porque estavam nas mãos dos autores, outras se perderam nos laboratórios e outras nem se sabe como se perderam. Mas acho que, no momento, ainda não existe uma atuação efetiva, existe apenas uma preocupação com o problema." (Augusto Sevá, cineasta paulista participante do extinto movimento "cinema de rua", acaba de realizar o longa-metragem O Caminho das Índias) A produção. A Embrafilme (Cinema e Estado). Exibidores na produção. O cinema independente. "Há pouco tempo atrás, o sr. Celso Amorim, diretor-geral da Embrafilme, deu uma entrevista dizendo que houve um corte, para o exercício de 1981, entre 15% e 20% do orçamento da empresa. Isso para nós é desastroso, porque a Embrafilme destina à produção de cinema no Brasil aproximadamente 20% do seu orçamento ou, talvez, um pouco mais do que isso. Então, se houve esse corte, a Embrafilme vai passar a existir apenas para consumir consigo mesma o dinheiro que ela recebe; e a produção de cinema vai ficar sem recursos. Esta nova diretoria da Embrafilme ainda não teve chances de mostrar novos filmes porque, logo depois de sua posse, nós entramos numa crise muito grande e a empresa já tinha compromissos aprovados na gestão anterior. Mas a luta pelo cinema está sendo muito bem conduzida pelo Concine, que tem mantido a mesma disposição de continuar a conquistar o mercado. A única coisa que esperamos é que os novos diretores da empresa, que têm uma compreensão bastante grande dos problemas do cinema brasileiro, possam conseguir as verbas necessárias, para que o nosso cinema continue produzindo e ocupando seu mercado. Isto porque o cinema precisa ter a participação do Estado. Não viver sem ele. Todo cinema do mundo precisa do Estado, assim como o Estado precisa dele. A função do cinema é política, social, cultural e econômica. O cinema brasileiro, assim como o cinema de qualquer país, é uma defesa cultural. Representa uma troca de informações culturais dos setores mais avançados da cultura com o povo. Todo poeta, todo filósofo tem uma missão de esclarecimento, de antecipação das coisas. É ele quem aponta os caminhos para a sociedade, quem propõe modificações, quem rompe, quem diverge, quem briga, e essa é também uma função do cineasta." (Roberto Farias, diretor e produtor, ex-diretor-geral da Embrafilme) "O cinema brasileiro é uma coisa que pré-existe a qualquer empresa estatal. O cinema brasileiro novo, que nasceu na década de 60, descobriu que o cinema é um elemento importante, com uma função cultural preponderante no país e a Embrafilme foi o instrumento que tornou viável uma mudança qualitativa no nosso cinema. O cinema brasileiro, antes desta época, era marginal, sem público e feito por pessoas sem qualquer conhecimento teórico. A Embrafilme foi um instrumento que tornou possível isso, ajudou a criar um processo industrial a partir dessa idéia. No entanto, o processo político da empresa está hoje em discussão. A própria classe cinematográfica esteve muito dividida na discussão do projeto que a Embrafilme deveria tocar. Temos agora uma unidade onde existem interesses diferentes. Já não são mais aqueles da década de 60. Existe, agora, uma indústria cinematográfica. Existe o interesse do mercado de trabalho e cabe ao Sindicato dos Artistas e Técnicos lutar por isso. Existem interesses dos pequenos produtores, dos curtametragistas, do mercado comercial e compulsório, dos documentaristas, etc. O que acho é que essa política deve ser feita com a participação de todos, porque só assim ela poderá atender a esses grupos de forma diferenciada. Sabemos que essa relação do cinema com o Estado é sempre muito cara, porque nós não ocupamos o Estado nem os melhores representantes do povo brasileiro ocupam o Estado. Mas é uma relação de povo para Estado, de sociedade civil para o Estado, onde tem que haver uma briga permanente. Mas ela tem que existir, queiramos nós ou não. Na hora da prática, nós temos mesmo é de apelar para o Estado. O capital privado não entra na produção porque o cinema brasileiro é dominado pela produção estrangeira. Há uma grande quantidade de filmes estrangeiros no mercado que competem com os nossos em melhores condições e ocupam um espaço que seria nosso. É por isso que não há investimento privado, porque o rendimento é duvidoso. O papel da Embrafilme é exatamente suprir essa deficiência". (João Batista de Andrade) "A maioria das produções que a Embrafilme financiou até hoje se constituíram em investimentos errados. Foram financiamentos muito mais políticos do que industriais. Na minha opinião, a Embrafilme se sairia muito bem se, em vez de produções, ela financiasse firmas. Ela deveria funcionar como um banco, exigindo toda a garantia de retorno de seu capital investido, ao invés de investir em filmes porque a Embrafilme não entende de filmes, quem entende é o produtor, quem entende é o cineasta. Ao invés de financiar produções isoladas, ela deveria investir mais nas empresas, para que essas empresas, fortalecidas, possibilitassem o aparecimento de outras novas empresas". (Jece Valadão) "O tribunal do capital tem as suas regras: PDS, Embrafilme, novelão, o velho cinema novo, TV Globo, Golbery, paternalismo, Hollywood, gangsterismo, fascismo, mercado, plumas & paetês culturais... Então tudo se justifica; desde toda e quaisquer reverências aos ministros, à burocracia, ao fascismo – sem a mínima visão crítica do estrangulamento provocado pelo alto custo das produções, aliado ao exorbitante preço da película Kodak, ao terrorismo da ideologia do mercado e à satisfação orgiástica das companhias estrangeiras. Juntos, todos tramam contra toda e qualquer postura independente. Para mim, fazer um filme de encomenda realmente não passa de um desafio que pode culminar na conservação da tradição do velho ou na astúcia de novos rituais para o cinema-prazer, o cinema-realidade, o cinema-sonho. O que fiz, não foi filmar torturado, amarrado, explicando o porquê do meu novo-gesto. A inventiva erótica do desejo foi mais forte. Mais uma vez eu me permiti sonhar, voar, delirar sem dar a mínima para o que poderão as pessoas e os críticos pensarem a meu respeito. Compensou a cumplicidade com Brecht-Godard-Pasolini na busca da revolução das linguagens. Convenhamos, uma aliança mais sentimental e revolucionária. Evidentemente que não se poderá esperar de O $anto & a Vedete o mesmo discurso de um A$suntina das Américas. Os momentos são diferentes." (Luiz Rosemberg Filho, diretor e produtor independente, que acaba de realizar – por encomenda do produtor J. Borges – o filme O $anto & a Vedete) "No primeiro semestre do ano passado, deram entrada com pedido de registro no Concine aproximadamente 50 filmes de longa-metragem. Em 1979, foram 109 filmes, mas esse ano representou um pique de produção, é o ano recorde em número de títulos de longa-metragem produzidos. Mas um dado interessante é que a todo pique de produção se segue sempre um ligeiro decréscimo quantitativo que, entretanto, nunca volta ao nível anterior como uma tendência geral. Já chegou a voltar, mas não é essa a tendência geral. A produção vem aumentando mesmo. A julgar por esse dado, não se pode dizer que há uma crise, o que podemos afirmar é que os filmes produzidos no primeiro semestre de 1980 foram filmes articulados e preparados numa época anterior aos prenúncios de uma crise. Eu não sei como o mercado de produção se comportou no segundo semestre. Eu mesmo acabei de fazer um filme chamado Consórcio de Intrigas, acabei de filmar domingo e sei que outros produtores e diretores estão também terminando filmes. Mas não temos ainda um quadro objetivo do segundo semestre. Agora, se não há crise isso é um milagre, porque os custos realmente dispararam." (Miguel Borges) "Esse é o momento em que o governo tem que se definir a respeito da pornochanchada. A pornografia produzida industrialmente cresce na razão direta da pouca participação do Estado no processo de produção cinematográfica. Apesar da Embrafilme existir e realizar produções de alta qualidade, ela sofre no momento de uma escassez de recursos. O governo não está investindo na cultura e no bom cinema como deveria." (Paulo Thiago, diretor e produtor) Cinema e televisão "O cinema brasileiro quer que o sistema de televisão estabeleça uma relação de igual para igual com ele, de uma parte da produção cultural para outra parte da produção cultural. Queremos que a televisão abra espaço para a nossa produção. A TV só vai ganhar com isso, o cinema brasileiro tem um potencial tanto de criação quanto de produção que a televisão não usa. Coloco o seguinte dado: um filme de longa-metragem tem uma vida de 5 anos, que é o tempo de censura. Depois de exibir esse filme – que custou 15 milhões (US$264.270) – durante 5 anos, quantos espectadores você terá atingido? Digamos que você atinja um público de 2 milhões de pessoas. Isso é um sucesso de bilheteria; para o cinema brasileiro está ótimo. Agora quantos milhões de pessoas poderiam ver esse filme se ele fosse veiculado pela televisão? O que significa 2 milhões de pessoas em termos de TV? Nada, isto é, o público que viu o filme não significa nada para a TV. Ou seja, esse filme é virgem para o mercado da televisão. Acontece, então, que esse filme de 15 milhões (US$264.270), passados esses cinco anos, poderia atingir ainda 15 milhões, 30 ou 40 milhões de pessoas, mas acaba jogado num depósito e desaparece. Ele representa um capital que a sociedade brasileira investiu num produto, custou muito e termina sendo jogado fora. Não é utilizado, enquanto a televisão continua exibindo cinema estrangeiro. Eu já fiz algumas propostas a várias televisões para fazermos co-produções. O que propus foi o seguinte: incorporando mecanismos de produção mais baratos, fazendo filmes de ficção, usando equipes de documentário que permitem fazer filmes mais ágeis e que, embora fossem de ficção, a televisão poderia participar com uma parcela de produção, o que não aconteceria se ela estivesse produzindo apenas para seu uso próprio. Por exemplo, no caso de um filme que vai custar 7 milhões (US$123.370), você entra com 50%, 3 milhões e 500 mil cruzeiros (US$61.685). É claro que para a televisão, pagar 3 milhões e 500 mil cruzeiros (US$37.554) para ter um filme de ficção é muito. A idéia seria, então, incorporá-la, ou seja, a TV entraria com a metade da produção num filme que seria exibido no circuito comercial e depois passaria na tela pequena. Agora, eu não acho que essa seria a única saída e o que a televisão precisa começar a fazer é negociar com o cinema brasileiro, comprar os filmes que temos. A Resolução 308 abriu um espaço para o curta-metragem na TV comercial como parte de um espaço que deveria se obrigatoriamente reservado ao Prontel na televisão comercial. No entanto, ela está em vigor e não é cumprida. A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão bombardeou o projeto e o Governo recuou dizendo que não tem verba para fazer os programas, e então o projeto não entra em funcionamento. Existe um bloqueio total na TV, exatamente porque o cinema brasileiro quer negociar sem perder a sua identidade. A sociedade precisa lutar contra esse controle social exercido pela televisão, temos que fazer com que os outros setores culturais ainda prevaleçam, para que tudo não seja canalizado para as mãos de uma única pessoa e que nós sabemos que é o Roberto Marinho." (João Batista de Andrade) "Só na base da lei do mais forte, só mesmo em termos de lei, somente um decreto presidencial poderá obrigar a televisão brasileira a exibir um certo número de filmes determinados em lei ou durante um ano. Caso isso não aconteça, ela não vai exibir mesmo, porque o filme estrangeiro custa muito barato para a TV. Esse filme é geralmente feito nos Estados Unidos pelas cadeias de televisão que existem lá – NBC ou ABC, por exemplo – é pago, dá lucro e é vendido aqui no Brasil como filme de 1 hora, por mais ou menos 100 mil cruzeiros (US$1.743), um preço de banana. Então, como é que você pode concorrer com um produto que custa 100 mil cruzeiros (US$1.743)? Pois é, acontece que a televisão é uma atividade e o cinema é outra, apesar de estarem interligados. Outra possibilidade seria comprar o tempo da televisão – pagando a ela para que não perca dinheiro – e repassando esse tempo para anunciantes através de uma agência de publicidade. Porque o que acontece é que a TV hoje não é nada mais do que o maior cinema do mundo. Mas só passa filmes franceses, americanos e muito raramente, brasileiros. E o pior é que a produção da TV é ainda muito pequena em relação ao tempo que ela usa exibindo filmes." (Jece Valadão) Exibição e comercialização. O surgimento das cooperativas. A intervenção do Estado. "O problema do cinema brasileiro é o problema clássico de uma indústria que não tem o seu próprio mercado, que tem o seu mercado ocupado pela produção estrangeira: nossa indústria só tem 1/3 do mercado nacional, 2/3 deste mercado é ocupado pela produção estrangeira. O Brasil é o quintal, a lata de lixo da produção internacional que é despejada aqui. Nós compramos 3 mil filmes estrangeiros por ano. Quantos filmes nossos eles compram? Nenhum." (Neville Duarte de Almeida, diretor e produtor) "Os filmes são distribuídos por algumas empresas e colocados no mercado, escolhidos para ser exibido. Não há obrigação de se exibir este ou aquele filme, é facultado ao distribuidor lançar o filme que quer, esta é uma escolha livre dentro da oferta que existe. Há filmes que ficam nas prateleiras. Filmes que têm diferentes propostas e que são tanto estrangeiros quanto brasileiros. Há muitos filmes estrangeiros bons, de grandes autores estrangeiros e que também estão inéditos no mercado, não têm acesso assim como, no cinema brasileiro, os grandes autores não têm acesso. Há filmes de todos os gêneros, do experimental ao filme de espetáculo, do documentário político ao documentário sociológico, da comédia ao drama, entre os que o exibidor pode livremente escolher para exibir." (Luís Carlos Barreto, fotógrafo e produtor) "Acredito que o cinema é o único produto, onde quem faz está em conflito com quem vende. É lógico que esta não é uma briga gratuita, ela tem motivos para acontecer. Agora, por outro lado, ela também tem motivos incríveis para ser resolvida. Eu não posso produzir um sapato e brigar com o dono da loja porque, assim, ele não vende o meu sapato. O que acontece é que o exibidor tem mais vantagens em trabalhar com o cinema estrangeiro. Eu não acho absolutamente que o exibidor seja mais comerciante do que o produtor. A proposta cultural que um exibidor possa ter é a mesma que um produtor tem hoje. Não acho que o exibidor seja um vilão ou que a designação que lhe damos de comerciante seja a de uma coisa ruim. O produtor também é um comerciante. Na área da exibição acontece uma coisa interessante, que é a seguinte: exibidor não tem subsídio estatal. Por isso, ele sempre fica vinculado à regra do mercado. Isso é uma coisa que a própria Cooperativa de Cinema está enfrentando e tentando resolver. Tendo hoje uma proposta cultural de exibição e não conseguindo realizá-la nos termos em que se propunha, ela está se reestruturando e reformulando essa proposta." (Augusto Sevá) "Está se criando agora um sistema de exibição que possa escoar, numa relação mais democrática e comprometida, o cinema brasileiro – mas não só o cinema brasileiro. Surgiu então a Cooperativa. Porque o problema não é só com o cinema brasileiro: o poder de imposição que tem o filme americano sobre nós é tão grande que ele não só esmaga o nosso cinema, mas esmaga também o cinema peruano no Brasil, esmaga o cinema indiano no Brasil, esmaga o cinema japonês no Brasil; ou seja, a gente só vê filme americano. O cinema peruano, o cinema argentino, o cinema cubano nos interessam tanto quanto o cinema soviético e o cinema jovem independente americano, que também não vêm. Mas só agora, e com muita dificuldade, o cinema cubano começa a ser exibido aqui, graças à ação da Cooperativa. E, com isso, pode-se elevar o nível de renda dos cinemas, melhorar a programação através da diversificação, exibindo filmes que não sejam apenas americanos." (João Batista de Andrade) Cinema estrangeiro contra o cinema brasileiro. A perspectiva de uma crise. Cinema comercial versus cinema independente. " É evidente que o cinema brasileiro precisa de apoios políticos. Para obter esses apoios, ele precisa oferecer ganhos políticos. Se ele for tratado com a dignidade a que se propõe, terminará por reverter esta expectativa. O que nós temos medo é que, por detrás desta campanha, o objetivo visado seja a diminuição de dias de cinema brasileiro. Já está sendo difícil manter o nível de investimento do Governo e o nível de recursos da Embrafilme. Já está sendo difícil manter os cinemas em atividade no Brasil. O que acontece nos outros cinemas do mundo é que o dinheiro aplicado no filme retorna através das vendas no mercado externo, da presença do filme na televisão e da exibição nos cinemas. No Brasil, isso não acontece. O cinema brasileiro vive exclusivamente de 1/3 do seu próprio mercado. Para dar uma idéia de escala: um filme multinacional, que ocupa praticamente o mundo inteiro – considerado o mundo inteiro como o índice 100 e considerando o mercado brasileiro como sendo 3,8 desse mercado – ocorre que 1/3 de 3,8 é praticamente 1,2%. Isto quer dizer que a relação econômica do cinema brasileiro com o cinema mundial é de 1,2 contra 100. No entanto, nós recebemos permanentemente uma pressão política muito violenta. Me espanta como um fenômeno que não é tão importante, ou seja, o negócio do cinema no Brasil se restringe à ordem de 60 milhões de dólares, receba uma pressão absolutamente desproporcional à importância econômica que possui. Realmente, o cinema é um fator de afirmação política das várias nacionalidade. Então, quando se discute o cinema brasileiro, e o nosso cinema é extremamente consciente, ele se propõe a ser uma espécie de piloto da atividade audiovisual, ele tem um projeto de contribuição ao desenvolvimento do país. É todo esse projeto que está em questão. Há sempre uma resistência a que o Estado participe da atividade econômica. No caso do cinema, há uma questão de escala, só o Estado pode ter uma escala proporcional à das grandes companhias de cinema, ou seja, somente o Estado pode participar da exibição. É evidente que o plano da exibição significaria dobrar o número de cinemas no Brasil, é um plano a longo prazo que requereria tanto espaço político quanto cobertura econômica. E ainda que se dobrasse o número de cinemas, isso seria muito pouco: o país dobra de população, a juventude continua a se interessar por cinema cada vez mais e, no entanto, o número de cinemas diminui. A produção de filmes se torna inviável porque os filmes não têm espaço na televisão e o Governo não investe na exibição e nem pratica programas que levem o cinema às populações mais carentes ou atividades sociais de expansão do veículo. A conjuntura de interesses econômicos com interesses políticos bloqueia, praticamente, esta ação." (Gustavo Dahl, ensaísta e cineasta; ex-Superintendente de Comercialização da Embrafilme) "O cinema americano gera 2 bilhões e 500 mil dólares por ano em divisas para os Estados Unidos. O cinema brasileiro tem demonstrado uma força e uma capacidade de penetração nos Estados Unidos, na África, na América Latina, na Argentina, na Europa, etc. Evidentemente, é muito mais fácil matar um bebê do que um adulto, é mais fácil asfixiar esse cinema brasileiro enquanto ele é bebê, do que deixar que ele cresça primeiro. Para eles, é importante asfixiar a Embrafilme, o Concine e todas as iniciativas que se fazem no Brasil pelo cinema brasileiro, porque isso pode se espalhar e, de repente, conscientizar o Uruguai, o Paraguai, Bolívia, Chile, Equador, Marrocos, Paquistão, Indonésia e aí a receita do cinema multinacional vai começar a diminuir. A origem da campanha contra a Embrafilme é essa: as medidas que temos tomado no nosso cinema durante os últimos anos estão corretas. De 1971 a 1978, o cinema estrangeiro perdeu público: de 174 milhões de espectadores ele passou para 149 milhões. O cinema brasileiro tinha 28 milhões de espectadores de 1971 e subiu para 61 milhões em 1978." (Roberto Farias) "O cinema brasileiro, sendo hoje a mais fiel sucursal dos valores hollywoodiano, reduziu – com apoio do velho-cinema-novo e da Embrafilme – o discurso do imaginário à banalidade das novelas da TV. Ao invés do Príncipe Encantado, temos o pieguismo financeiro de um Gaijin. Ao invés de Love Story, temos a repetição sistemática de velhos códigos (o exotismo tropical, a "organização" financeira da miséria colorida pela Kodak, o cinema "popular"-populista, a cristalização da pseudo-informação) em Bi-Bi Brasil do senhor Diegues – todos objetivando o estilo espetacular da esquematização da informação, fundamentalmente viva nos anos 70/80. Surge então a falta de opção. O que fazer? Representar o Brasil dentro da ideologia burguesa (obviamente burra) do espetáculo? Foi para isso que eu um dia amei Eisenstein, Godard, Welles, Wajda e Pasolini? A comodidade da exposição seria a exposição da comodidade? Como sobreviver numa sociedade sem direitos? Hoje o fascismo está mais diluído na área da comunicação. No meu caso, acredito que manter a postura de A$suntina ou mesmo do Crônica seria assinar um pacto com a morte. Essa alternativa, hoje poderia existir mais vigorosa no curta-metragem, que seria a mais bela saída para as imagens de uma possível revolução da linguagem cinematográfica." (Luiz Rosemberg Filho) * Cotação do dólar em setembro de 1980: US$1 = Cr$56,74 |