Cinema brasileiro no mercado argentino: um bom negócio (e um bom modelo)

 

Sérvulo Siqueira

 

O mercado argentino é bastante promissor para o cinema brasileiro. Apoiado nesta conclusão, está no Rio – onde deve ficar até quinta-feira concluindo novos contratos – o produtor Martin Rodrigues Mentaste, distribuidor argentino de Dona Flor e seus dois maridos. O filme encontra-se em cartaz há oito semanas em quatro importantes salas de Buenos Aires e quinta-feira entra em outras 10, expandindo-se até os bairros mais distantes da cidade. As quatrocentas mil pessoas que já viram o filme nestas oito semanas estimularam Martin Mentaste a novos contratos e, em janeiro do ano que vem, ele estará lançando O seminarista de Geraldo Santos Pereira, apesar de algumas restrições que o filme está encontrando, conforme explica:

A Igreja na Argentina é muito conservadora e não gostou da história do filme. Mas o enorme sucesso de Dona Flor criou uma grande curiosidade em torno do cinema brasileiro, o que tem aberto muitas portas aos trabalhos da cinematografia mais moderna e ousada que se faz aqui atualmente.

Enquanto no Brasil o cinema nacional luta contra o estrangeiro pelo espaço de nossas salas e pretende aumentar seus dias de exibição obrigatória, na Argentina o nosso cinema tem sua entrada muito mais facilitada exatamente por ser um produto estrangeiro. Martin diz que o cinema argentino está vivendo uma grande crise:

As condições políticas do país, principalmente a Censura, quase extinguiram o nosso cinema. Do ponto de vista cultural, então, praticamente não sobrou quase nada, já que os filmes feitos no momento são comédias de baixo nível, que apenas preenchem o consumo rasteiro. Filmes estrangeiros importantes não podem ser lançados e o mercado está aberto à mais grosseira produção comercial. Neste sentido, torna-se importante o lançamento de produtos sérios do cinema brasileiro, que podem se converter em modelos para o nosso cinema.

Martin Mentaste é produtor há 25 anos. Descendente de uma família de pessoas ligadas ao cinema – seu avô, Angel Mentaste, foi um dos pioneiros do cinema argentino – ele fala com saudades de tempos melhores da cinematografia de seus país.

– Existe a obrigatoriedade de exibição de um filme nacional a cada oito semanas, o que é muito pouco e não cria um incentivo eficaz para um aumento de produção. Da época de ouro do cinema argentino – o governo de Frondizi de 56 a 58 – até os poucos meses de Campora entre 74 e 75, quando houve um revivamiento, nossa produção caiu de 50 filmes para mais ou menos 20, atualmente. O resto é tomado pela exibição de 350 a 400 filmes estrangeiros, a maioria de má qualidade, por causa da Censura. Resolvi então abandonar temporariamente a produção e trabalhar com distribuição. Quando as condições melhorarem – e isto já está começando a acontecer – voltarei a produzir filmes.

Martin começou a desenvolver a idéia de distribuir filmes brasileiros a partir de uma "semana do filme brasileiro" em Buenos Aires, o ano passado. Foram exibidos Vai trabalhar, vagabundo, Xica da Silva, Lição de amor, Dona Flor e Guerra conjugal, entre outros. Em julho de 77, ele veio ao Brasil e acertou com o produtor Luís Carlos Barreto o lançamento de Dona Flor na Argentina.

Houve dificuldades para o lançamento do filme?

Não; foi fácil porque o mercado era totalmente virgem para o filme brasileiro. Houve um caso lamentável com a exibição de Bacalhau, na trilha do Tubarão e o fracasso foi completo. Mas isto não chegou a prejudicar a expectativa. E apesar da proximidade dos dois países, não se conhecia nada do cinema daqui desde a fase do Cinema Novo, na década de 60. Nessa época, foram exibidos O pagador de promessas e Macunaíma, que eu me lembre.

Na verdade, o mercado argentino parece ser realmente muito bom. Nestas oito semanas de exibição em quatro casas, Dona Flor arrecadou, segundo Mentaste, 800 mil dólares, dos quais a metade é a parte do exibidor. Animado com o sucesso, Mentaste parte agora para o lançamento de um lote de mais seis filmes, dos quais pelo menos cinco serão exibidos o ano que vem. Vai começar por O seminarista e já tem acertados contratos para a distribuição de A estrela sobe, Tati, a garota, O crime de Zé Bigorna, Amor bandido e Lição de amor". À exceção do filme de Geraldo Santos Pereira – cujo contrato foi feito com a Embrafilme – todos os outros foram concluídos com o produtor Luís Carlos Barreto.

O que você pensa da proposta de um Mercado Comum Latino-Americano de Cinema ?

Acho que é uma destas idéias ótimas que acabam ficando apenas no papel. Considero muito difícil sua viabilização porque na América do Sul só há possibilidade de intercâmbio entre o Brasil e a Argentina; o Peru, o Chile, a Colômbia, a Venezuela e demais países não têm nível técnico e de qualidade comparável ao argentino e muito menos, ao brasileiro. E fora daqui só existem o cinema mexicano – que tem uma estrutura de produção muito semelhante à brasileira – e o cubano, que certamente traria problemas de ordem política, os países precisariam ter relações diplomáticas e comerciais com o regime de Fidel Castro e, além disso, a Censura provavelmente não deixaria passar. Agora, para o cinema brasileiro, a exibição de suas produções em Buenos Aires é indiscutivelmente a abertura de um caminho em direção a outros mercados latino-americanos.

Você disse que as estruturas de produção no México e no Brasil são muito parecidas. Como é a situação argentina ? Existe no seu país um órgão semelhante à Embrafilme, que financia as produções ou o capital é inteiramente privado?

Eu considero que os modelos da Pelmex e da Embrafilme são muito próximos porque ambas estão apoiadas num controle do mercado, na quase centralização da produção e do financiamento para produção e são frutos de uma intervenção de um Estado autoritário forte. Existe na Argentina – à maneira do Brasil – o Instituto Nacional de Cinematografia, que presta uma ajuda financeira em termos de financiamento para produções. Ocorre, no entanto, que sua ação é muito débil, ele não é forte e o próprio governo não tem interesse em lhe dar muita força, política ou econômica. Em geral, o produtor apresenta ao Instituto uma proposta de realização de um filme e o organismo concede o dinheiro. Mas acontece que, no momento, as condições são as piores possíveis, não há liberdade e o Instituto não tem interesse em estimular produções de bom nível cultural, a Censura é muito rígida e o nível dos filmes torna-se muito baixo. Quando eles concedem dinheiro, geralmente é na base de 200 mil dólares, o custo médio de uma produção normal na Argentina. Mesmo com o preço de dois dólares o ingresso para um cinema no país – que eu considero alto – ainda é bastante difícil recuperar este dinheiro. Penso que o cinema deveria ser massificado, os ingressos barateados, a produção reduzida em seu custo para permitir o aumento de filmes e proporcionar maiores oportunidades aos cineastas novos. Acho que deveríamos adotar o modelo do cinema brasileiro para construir uma indústria cinematográfica independente.

Assim como o mercado argentino é bom para o cinema brasileiro, o mercado brasileiro seria também bom para o cinema argentino?

– No momento, as melhores perspectivas são para o cinema brasileiro, que está mais bem estruturado e em grande ascensão econômica e de prestígio. Mas estamos tentanto nos organizar para uma pequena investida. Dia 21 de novembro começa em São Paulo uma Semana do Cinema Argentino, que vai apresentar alguns filmes interessantes. Dois deles, pelo menos, são produções independentes com uma posição mais crítica: Contragolpe de Alejandro Doria e La parte del león de Adolfo Aristarain. Contragolpe conta a história da Máfia de Rosário, sua conexão com Al Capone e as lutas entre mafiosos pelo poder na criminalidade. La parte del león trata da intimidade de alguns seres humanos num processo policial. É a história de um miserável que descobre por acaso o produto de um grande roubo enquanto os autores do assalto vão sendo eliminados violentamente.

Publicada no jornal O Globo em 21 de novembro de 1978