DOCUMENTÁRIO

 

   Vozes do Grande Rio: uma cidade cresce assustadoramente

 

Sérvulo Siqueira

 

Um filme – que já tem 13 horas rodadas – pretende se constituir em um documento atual para sociólogos, urbanistas, psicólogos e criminalistas sobre o crescimento desordenado de uma grande cidade. Vozes do Grande Rio foi idealizado e dirigido por Leon Cassidy  como parte de um conjunto de filmes com o título de Brasileiros som direto e compreende o levantamento dos  bairros de  Jacarezinbo e Copacabana e do município de Belfort Roxo. Filmado com recursos advindos de uma co-produção entre a Lente Filmes, Penta Filmes e Fantasma Filmes, o documentário  abrange os problemas de poluição, construção civil, menor abandonado, violência e criminalidade, transporte e migração na região do Rio de Janeiro. O trabalho não pretende, no entanto, apresentar soluções: sua perspectiva, segundo o diretor, "é registrar o movimento e o processo de uma cidade que está inchando, através da linguagem de um programa de rádio dirigido às classes populares". Para tanto se socorreu também de vários depoimentos, entre cientistas e autoridades, como o Bispo de Nova Iguaçu, o Juiz de Menores de Caxias, o sociólogo Severino Cabral e o urbanista João Ricardo Serran.

 

– Passamos a apresentar neste momento Vozes do Grande Rio - a cidade no limiar do ano 2000. Um filme science no fiction. Uma pitoresca excursão pelo Grande Rio num dos confortáveis e possantes veículos da "Brazil Safari & Tour". Um documento sobre o Rio de Janeiro com suas belezas, miasmas e quizumbas.

Ao som de uma música funk no estilo da programação das emissoras populares o locutor dá início à apresentação do filme. "Pode haver um grande número de analfabetos hoje no Rio", diz Leon, “no entanto, todo mundo nesta cidade está informado do que se passa, através dos meios audiovisuais." Conduzindo o filme, de Belfort Roxo até Copacabana, Vozes do Grande Rio começa no Cristo Redentor com uma entrevista com turistas alemães e japoneses que vêem a cidade do alto, para depois descer à Baixada fluminense e ao bairro do Jacarezinho, que é apresentado com música louvando as suas belezas. Numa das sacadas de um conjunto habitacional do bairro, um grupo de músicos canta sambas falando do lugar. Leon Cassidy conta que, nas 5 horas filmadas no bairro, foram registrados os seus problemas e as reivindicações de seus moradores, assim como suas formas de associação.

– O que precisa ser feito todo mundo sabe, o problema é a maneira de fazer. Não adianta programar as coisas de cima para baixo, as pessoas que vivem o problema é que devem se organizar em todos os sentidos. E as autoridades precisam contribuir para a realização dos objetivos destas associações – acrescenta o diretor.

O Jacarezinho é um bairro de 75 mil a 80 mil habitantes. Entre suas associações contam-se a Comissão de Luz e a Associação de Moradores. Neste momento, realiza-se a eleição para o conselho fiscal da Comissão de Luz. Após essa entrevista com o presidente da Comissão Eleitoral, um candidato protesta contra o que considera “uma corrupção. Um cabo eleitoral da chapa amarela está carregando panfletos e isto contraria as normas eleitorais". O protesto é registrado, seguido de algumas declarações de voto à boca da urna embora, como frise um eleitor, o voto seja secreto.

Jacarezinho compreende três regiões distintas: o bairro situado numa região plana; a subida do morro a parte  com as casas mais bem construídas; e a região do Azul lugar fechado e abandonado onde prolifera a marginalidade. A região do Beira-Rio à margem do rio Jacaré é a mais pobre do lugar. Lá, o filme vai se deter para analisar um dos problemas que assolam os moradores e que têm ressonâncias para toda a região do Grande Rio: a migração para as grandes cidades e o problema habitacional. Há pouco tempo, também, uma catástrofe se abateu sobre uma parte dos seus habitantes: um escapamento de querosene da fábrica CISPER provocou um incêndio que desalojou 37 famílias. O filme documenta as reclamações de alguns dos atingidos, que afirmam que "não houve praticamente indenização, a fábrica deu dois a cinco mil cruzeiros a titulo de ajuda de custo para cada família, o que não dá nem para fincar os vergalhões de sustentação da estrutura da casa".

Na subida do morro que leva até a favela, onde se encontra a Associação de Moradores, pode-se ver casas mais bem construídas, como uma de fachada verde com azulejos. Seus moradores são uma família de operários qualificados. O pai que erigiu com seu próprio esforço a residência é marceneiro em uma oficina há 30 anos, recebendo pouco mais de Cr$2 mil. O filho casado, que mora no andar térreo, trabalha num escritório de contabilidade, e a filha, solteira, é operária qualificada na General Eletric que fica no outro lado do morro local onde trabalham as pessoas de padrão mais alto de Jacarezinho. Todos gostam do lugar, de onde não pretendem se transferir de maneira alguma.

Entrevistados sobre a marginalidade no bairro, os moradores são unânimes em afirmar. "Já foi maior, mas ultimamente está bem reduzida e é restrita à região do Azul, um lugar escuro e fechado que favorece os assaltos". No entanto, em uma reunião do GED Grupo de Estudos e Debates de Jacarezinho jovens do bairro lamentam a má fama que pesa sobre o local. "Muitas vezes eu vou procurar um emprego, preencho todas as condições, sou aprovado e quando digo que moro em Jacarezinho eles tratam de desconversar e dizem para passar depois etc.”, conta um participante do grupo. Da mesma forma, Cristina, professora primária e universitária, relata seus problemas com colegas para evitar que  saibam onde mora. Apesar disto, o Grupo de Debates continua a se reunir; "na semana passada nós estudamos o filme O Pagador de Promessas diz uma das participantes. "O que nós pretendemos com esta associação é mostrar que o bairro não é só constituído de marginais, queremos melhores condições para o lugar onde moramos e para isto é preciso melhorar também o nível cultural de todos", esta é a proposição dos jovens do grupo de debates que lembram: "Não. Não somos o único grupo do Jacarezinho, há outros muito atuantes".

A busca de um melhor nível cultural não impede, por certo, que muitos habitantes freqüentem o terreiro do Cabloco Ventania onde uma seqüência do filme registra uma sessão dedicada à chapa vencedora das eleições no bairro e a aparição de Maria Padilha e sua revelação de que vem para "curar as doenças da mente". A chegada de Pai Vacuru um negro velho que viveu num quilombo no século passado traz também um fenômeno inusitado: uma materialização, que o filme não registrou foi apenas fotografada e sobre a qual o diretor Leon Cassidy lança algumas dúvidas. "O que importa registrar", diz Leon "é que favelas como a do Jacarezinho não são agrupamentos estáticos, mas dinâmicos, que se transformam". Segundo o diretor, "o que mais se ouve, quando se chega com uma câmera de filmar, é a pergunta sobre se vão ser despejados, e o medo de ser desalojado impede que os moradores se proponham a lutar por melhoramentos".

Copacabana: da Av. Atlântica ao Pavãozinho

O repórter conduz a narrativa de Copacabana. Navegando em um iate pela Baía de Guanabara ele diz: "Daqui é muito difícil ver o Cristo Redentor".

O bairro, no filme, é visto através de três faixas: os moradores da Avenida Atlântica, os habitantes de um famoso edifício da Rua Barata Ribeiro e os favelados do morro do Pavãozinho. Nas areias de sua famosa praia, o filme entrevista banhistas, pescadores, trabalhadores do entreposto de pesca do Posto 6 e praticantes do teste de Cooper. O propósito do documentário neste bairro e captar as suas transformações urbanas e o reflexo produzido na estrutura social, econômica e cultural dos moradores. Entre as entrevistas da praia, as opiniões nem sempre coincidem. Um velho pescador que trabalha no lugar desde a década de 30 lamenta: "Isto aqui era muito melhor, não havia tantos prédios". Um praticante do Cooper fala da água poluída e aponta as tubulações de esgoto que despejam seus detritos na praia. "Há seis anos fizeram o interceptor oceânico e no entanto continuamos a nadar em meio a estas porcarias que, deveriam estar sendo lançadas bem longe daqui" é o seu desabafo. Outro antigo habitante do lugar diz que "antes não havia ladrões como hoje, agora os edifícios tiram a ventilação e prejudicam a saúde".

Em outra seqüência, uma câmara desvenda o interior de um luxuoso apartamento do edifício Chopin, ao lado 'do Copacabana Palace. As paredes de uma sala da residência exibem uma fotografia do seu proprietário com Pelé e quadros de pintores famosos. Uma família de moradores do mesmo prédio declara: "Copacabana acabou, vamos mudar para São Conrado".

O mesmo não pensam outros habitantes. Do morro do Pavãozinho a um edifício de 507 apartamentos na Rua Barata Ribeiro, há quase unanimidade em considerar que Copacabana ainda continua sendo como diz um costureiro morador do prédio "a princesinha do mar". Não reclamam do custo dos aluguéis; uma enfermeira viúva que vive com a filha, ganha Cr$8 mil e gasta Cr$ 4 mil e 300 cruzeiros para morar, acha que "o prédio é ótimo", embora conte que ficou há pouco tempo "uma hora presa no elevador". Em sua opinião, "com o novo síndico melhorou a moral do edifício e piorou a limpeza".

Outros, como um catarinense habitante do prédio, criticam "a má administração, a falta de água e os defeitos constantes do elevador". Já para um baterista que afirma "viver exclusivamente de música, o que não era possível no Rio Grande do Sul", de onde veio, só existe mesmo a opção de morar no bairro: embora ganhe CR$6 mil cruzeiros em média e pague Cr$3 mil de aluguel, é em Copacabana que se concentram as boates onde trabalha, diz.

Do alto do morro, onde se encontra a favela do Pavãozinho, as opiniões são outras. Ângela, uma costureira que no momento está sem trabalho, diz: "Gosto de Copacabana, aqui é bom de se morar e além do mais tem vista para o mar". Mesmo subindo todos os dias uma ladeira, ela não reclama e diz que apesar de tudo é bom morar perto da praia.

No seu propósito de estabelecer um quadro social rigoroso das regiões abrangidas na cidade, o filme levantou os depoimentos do urbanista João Ricardo Serran, que fala sobre os problemas resultantes da especulação imobiliária, do sociólogo Gilberto Velho, autor de A utopia urbana, uma pesquisa sobre o universo social dos habitantes do edifício da rua Barata Ribeiro, e da socióloga Velúzia Carvalho sobre a modificação no caráter da migração a partir da década de 50. Todos estes aspectos são pertinentes ao bairro e com estes depoimentos "o filme pretende oferecer às autoridades uma visão geral dos seus problemas a fim de possibilitar o melhor equacionamento das soluções", afirma Leon Cassidy.

Criminalidade, maior problema da Baixada

Em uma pequena estrada de terra batida, a câmera enquadra o repórter da Baixada:

– Estamos na divisa do município de Duque de Caxias com Belfort Roxo. Este é o lugar escolhido pelo Esquadrão da Morte para a desova de suas vítimas. Pedimos aos membros deste esquadrão que, na hora de colocar as suas vitimas, façam uma escolha: ou coloquem em Duque de Caxias ou em Belfort Roxo porque procedendo como estão – colocando-as no limite das duas regiões – serão procurados pela policia dos dois lugares.

Com esta introdução, o filme começa a tocar num dos mais graves problemas da Baixada Fluminense: a criminalidade. Problema que chega a alarmar o advogado criminalista Virgílio Donici, que afirma que "o Rio é hoje a cidade com maior índice de criminalidade do mundo, nem Nova York o supera". "Em 1950, o Rio de Janeiro, com uma população de dois milhões e meio de habitantes tinha um índice de 124 homicídios dolosos; em 1976, com cinco milhões de habitantes, o Rio passou a ter um mil 995 homicídios dolosos e mais 800 não catalogados", afirma. "Com mais outro tanto da Baixada, totalizamos dois mil e quinhentos crimes, nem Nova York com sua população de 12 milhões de pessoas e mil e 709 homicídios chega a atingir o Rio".

Na penitenciária de Bangu, o documentário entrevista seis criminosos que estão cumprindo pena. Uma ex-atriz de fotonovelas, líder de um grupo que assaltava lojas e bancos diz que: "quando você assalta, passa a ter poder sobre as pessoas". Uma outra presidiária conta como começou:

– Meu amigo foi morto pela quadrilha a que pertencia e eu resolvi substituí-lo. Como alguns não aceitaram minha decisão, eu comecei a matar. Moradores de Belfort Roxo, cujo depoimento o filme registra, falam dos problemas  causados pelos assaltos. A sugestão, no entanto, vem do repórter que sugere "o desmembramento do município de Belfort Roxo, com isso o lugar terá autonomia e melhores condições para enfrentar os seus problemas".

Um dos mais sombrios, por certo, é o da marginalidade social. Numa das seqüências mais dramáticas do filme, documenta-se o cemitério de indigentes de Marapicu. Neste momento, um carro funerário chega com dez corpos de crianças recém-nascidas mortas. São pequenas caixas, cujo custo é pago pela prefeitura, que tem convênio com a casa funerária.

 

Publicada no jornal O Globo em 1978