Um terremoto clandestino

O filme brasileiro de Orson Welles visto através de um cine-jornal

 

 Sérvulo Siqueira

 

Incêndio, quebra de máquinas e tragédia durante as filmagens; vários porres e grandes festas; móveis quebrados e jogados pela janela de um apartamento da Avenida Atlântica; rolos e rolos de filme rodados do Ceará ao Rio de Janeiro foram alguns dos acontecimentos que marcaram a estrepitosa passagem de Orson Welles pelo Brasil durante quase seis meses do ano de 1942. Seu fruto primordial – entretanto – o documentário pan-americanista It’s all true permanecia ignorado até hoje e só agora é parcialmente revelado através de um longa metragem que está sendo realizado por Rogério Sganzerla. Utilizando material de arquivo de cine-jornais de atualidades, além de algumas seqüências filmadas, o filme de Sganzerla pretende empenhar OW na completa reconstituição do trabalho e motivá-lo para que ele cumpra afinal sua promessa – feita, na partida, a Lourival Fontes – de que “voltarei um dia”. 

No início de 1942, já com os EUA em guerra, o Brasil sofre pressões para romper com o Eixo. Vargas mostra-se hesitante e a partir de fevereiro – data da chegada de Orson Welles ao Brasil – começa a ação de submarinos contra navios brasileiros. Entre fevereiro e agosto mais de quinze navios foram afundados em nossa costa causando, além dos danos materiais, cerca de mil mortos. Tais ataques fizeram com que a 21 de agosto de 1942 – logo depois da partida de Welles – o Brasil enviasse oficialmente sua declaração de guerra ao Eixo. O pan-americanismo – nome sob o qual a administração progressista de Roosevelt estendia o seu braço da “política da boa vizinhança” aos latino-americanos – buscava a criação de um bloco unido – o bloco do hemisfério ocidental – para fazer frente à infiltração nazi-fascista no continente.

Esse era também o objetivo de Orson Welles ao aportar aqui, sob o auspício de Nelson Rockfeller, Coordenador de Assuntos Interamericanos e da Radio Keith Orpheum – RKO – para rodar It´s all true na condição de embaixador da política da “boa vontade”.

O filme do filme

 

Noticia o jornal A Noite de 4 de fevereiro de 1942: “Hollywood – O conhecido produtor cinematográfico Orson Welles que está fazendo duas películas de uma só vez, numa das quais intervém como ator e noutra como diretor, prepara-se para embarcar com destino ao Rio de Janeiro onde produzirá uma terceira película, valendo-se de motivos reais. Entrevistado, declarou que o Brasil é um ótimo lugar para a realização de seus propósitos e que sua viagem não tem outros objetivos secundários”:

  Meu plano definido é fazer um filme poliglota para todo povo de toda a América – acessível ao nível geral e em todos os lugares – compreensível ao olho e não necessariamente ao ouvido. Parte será mudo, parte em cor, mas pretendemos fazê-lo projetável integralmente em toda a América. Não será preciso saber ler para entender, o que significa reviver o cinema mudo. Destina-se preliminarmente ao entretenimento e não à propaganda ou à educação – espero entretanto que sirva para promover um melhor entendimento entre o Brasil e os EUA.

Um chapelão de cowboy, um bigode ruivo quase imperceptível, uma gargalhada gostosa e um bocado de desprezo pela dietética – acreditando talvez, ainda que discretamente, no prazer da obesidade – eis alguns traços essenciais de Orson Welles, o garotão de 26 anos com mentalidade de 40 que desembarcou no dia 8 de fevereiro de 1942 sob os aplausos de um público relativamente numeroso em meio ao qual era possível descobrir as garotas que foram freneticamente ovacionar Tyrone Power e outros mocinhos. No aeroporto, artistas, cinegrafistas e – representando o Departamento de Imprensa e Propaganda – Assis Figueiredo, auxiliar de Lourival Fontes. Nesse sentido, a vinda de OW tem, sem dúvida, uma grande significação pois resulta de um trabalho de cooperação do DIP com o Comitê de Coordenação das Relações Culturais Interamericanas de Washington, dirigido por Nelson Rockfeller (que esteve por trás do contrato de Citizen Kane, em 1939), e que conseguiu entrosar a RKO e a Mercury Production, empresa de Welles.

Depois de dizer “prazer em conhecê-los” em bom português a todos os jornalistas, OW começou a falar:

  Vim ao Brasil para aprender. Para sentir sua realidade. Estudar seu povo e tentar uma interpretação tanto quanto possível exata desse país. Não estou violando um segredo ao dizer que ainda há pessoas nos EUA que acreditam que no Brasil se fala espanhol... Esse exemplo pode ser citado como prova do desconhecimento em que vivem nossos países, cabendo ao cinema realizar agora algo no sentido de fazer as nações do continente mais bem conhecidas uma das outras para que melhor se entendam. Reconheço que Hollywood tem cometido muitos erros, representando na tela os países americanos de maneira equívoca ou com intuitos de ridículo. Não foi tentado ainda um esforço sério e honesto de interpretação. É o que vamos fazer agora. E para isso trouxemos ao Brasil uma das maiores equipes técnicas que até hoje saíram de Hollywood, com um vasto material de dificílimo transporte em uma época anormal como a que atravessamos...

Como teve a idéia de vir ao Brasil?

Sempre desejei vir ao Brasil. Esse desejo é congênito. Eu, aliás, me considero carioca. Meus pais viveram nesta cidade. E não só residiram no Rio como minha mãe viajou daqui para os EUA em adiantado estado de gravidez. Por questão de semanas, apenas, deixei de nascer no Rio. Sabendo disso, o pensamento de ver a cidade em que tivera início minha existência sempre me cutucou. Fui lendo coisas sobre o Rio, sobre o Brasil e meu entusiasmo foi crescendo. Um dia, Phil Reisman, vice–presidente da RKO – que já esteve no Brasil várias vezes – falou-me que havia sido sondado sobre a possibilidade de fazer um filme no Brasil. Disse-lhe que era uma coisa que gostaria de fazer. Juntamos a nossa vontade e aqui estamos ambos. O filme que vou fazer será trilíngüe. Terá vários episódios, cada um deles falado na língua do país em que a ação se desenrola. No Brasil, o diálogo será em português e muito sintético.

Mas o senhor mesmo falará português?

Eu sim.

Mas o seu português já dá para isso?

Não, mas dará em algumas semanas.

Orson diz que pretende ficar aqui seis meses, está estudando ativamente o português e, ao ser recebido por Vargas, trocou algumas palavras em nossa língua com o Chefe da Nação.

Declara-se aos 30 jornalistas reunidos no salão do Copacabana Palace – entre eles três mulheres – “tremendously impressed” com o carnaval, sobre o qual pretende realizar algo interessante para todos os povos da América – sem intenções de propaganda de classe. “Depois de visitar o Brasil, percorrerei outros países latino-americanos aproveitando o que se possa filmar e, como precisarei de atores e atrizes, pretendo usar elementos de cada lugar; procurarei dar ao povo norte-americano uma idéia tão verdadeira quanto possível dos povos que a nós se unirem e que pretendo visitar” – e o gigante sorridente continuou a falar e a ser fotografado entre gargalhadas de satisfação.

Entre comemorações do 27° aniversário – no qual recebe o tradicional bolo de aniversário e o título de “O amigo do Rio” – OW historia o samba em escolas de samba e no subúrbio de Quintino; reconstitui o baile do Municipal no estúdio da Cinédia; despacha várias equipes para captar a verdade e a mentira do carnaval; faz conferências, grava programa de rádio e ainda toca pandeiro – que aprendeu com Caboré, da Rádio Nacional – assiste “Limite” de Mário Peixoto; entra em contato com os intelectuais. Chama Grande Otelo para projetar o canto individual no coletivo (montagem paralela de um compositor desembocando na multidão); reflete sobre a origem mítica-mística do samba (o tema da desilusão cultural através do lamento negro: “Vão acabar com a Praça Onze...”) e sua relação com a umbanda e o vodu – provavelmente indefeso contra a magia política que o animava a filmar tudo sem pensar nas conseqüências.

Queria reconstituir o último carnaval da Praça Onze – cena idealizada por Herivelto Martins – e foi criada seqüência de final de carnaval com todos os seus detalhes: nascimento e romper da aurora, quarta-feira de cinzas na frente do Teatro Municipal, cansaço – centenas de figurantes dormem – varredores limpam a Avenida. Aí entra Grande Otelo chorando, meio bêbado frente ao lampião com a tabuleta da Praça Onze caída; Otelo chorava de verdade porque o ambiente do estúdio estava muito preparado, Orson Welles chorou também.

A verdade em quatro partes

 

O filme estava dividido em quatro partes , uma das quais desenrolada no Brasil e as demais no México, Cuba e Peru. A brasileira tem como principal motivo a heróica travessia dos jangadeiros de Fortaleza ao Rio. Jacaré e seus companheiros são os heróis da película, filmados em technicolor. A Bahia será incluída na parte que se relaciona com a passagem da jangada S. Pedro por este porto. OW queria filmar um candomblé na Bahia, pois no Rio de Janeiro os macumbeiros não quiseram se deixar fotografar. E, secretamente, também desejava tocar num assunto proibido – um tabu em pleno Estado Novo: a relação do samba com a umbanda.

Jangadeiros focalizaria os seguintes pontos: história dos jangadeiros no Brasil; luta dos jangadeiros pela independência; serviços por eles prestados por ocasião da guerra do Paraguai; lutas em que tomaram parte em prol da libertação dos escravos; fatos heróicos da vida dos jangadeiros; o jangadeiro como símbolo da liberdade; palavras de Rui Barbosa sobre os jangadeiros e, afinal, a jangada S. Pedro, sua história e as reivindicações de seus tripulantes. Impressionado com o feito épico dos pescadores cearenses que navegaram 1500 milhas sem disporem de qualquer recurso científico, OW vai à terra “dos mares bravios” filmar uma corrida de jangada: “um dos mais belos espetáculos que já presenciou” e que o deixa tão comovido que ele cai da jangada. Ao ser tirado da água diz que “foi emoção demais”.

Jacaré, seu personagem, é o símbolo de uma classe – preciosa reserva de forças defensivas da soberania nacional – que luta por melhores condições salariais. Com este objetivo foi recebido por Vargas. Bússola para ele é um instrumento digno de dó – “dá pena” pois para um jangadeiro se orientar “basta-lhe o sol, as estrelas e o vento”.

Terminado o episódio Samba, Welles inicia Jangadeiros, encaixando-os numa viagem de jangada via Recife e Salvador para o carnaval carioca. E então subitamente sobreveio a tragédia, quando na Barra da Tijuca, próximo ao Joá, “filmou a morte ao trabalho” – que é aliás a definição do cinema para Jean Cocteau.

“Foi como ele se estrepou” – observa Grande Otelo “as coisas iam aparecendo e ele se deslumbrando e filmando”. E Sebastião Prata conta, assim, o infausto acontecimento que retardou ou suspendeu a evolução do cinema sonoro e a liberação da câmera e do microfone iniciados com Cidadão Kane e Soberba, da qual It’s all true seria a continuação lógica:

Ele empolgou-se com a epopéia dos jangadeiros e daí em diante aconteceram coisas do arco da velha. Retirados abruptamente da mansa e perigosa vida do mar, Jacaré e seus companheiros entraram para a agitação do cinema. E andaram de norte a sul de avião, dormindo hoje aqui, amanhã num outro grande hotel, cercados de americanos e ouvindo uma língua diferente. Daí até o episódio da Barra da Tijuca todo o Brasil na época acompanhou com interesse o filme do “seu Orso”...

Numa enseada próxima ao Joá, a jangada – que uma lancha rebocava – foi subitamente apanhada por uma vasta onda e emborcada, enquanto um cação e um tubarão irrompiam em disputa mortal. A equipe de segunda unidade filma rapidamente enquanto jangadeiros deslizam na jangada. Caem no mar. Atirado fora da jangada, Jacaré tenta inutilmente alcançar a praia, é atacado no vórtice e afunda. Um dos companheiros ouve a voz de Jacaré que dava ordens para que nadassem para a praia. Todos acharam mais razoável aproveitar a correnteza, nadar para a jangada. Jacaré, entretanto, sabia o que fazia, o que é uma correnteza e a distância que havia da praia, pois mais vastas águas já atravessara à força de braçadas. Mas talvez não soubesse que energias teria um homem que passara noites e noites no mar tendo como única bússola o seu instinto de navegador e de repente via-se qual gigante em roupa de menino, manobrando sua jangada dentro de uma enseada, servilmente rebocada por uma lancha a motor. Aquele homem para quem a água era o seu elemento natural, morreu afogado na beira da praia tentando reproduzir o seu feito, mas uma reprodução – salienta a imprensa – é sempre uma caricatura. Bom nadador, nas circunstâncias em que pereceu – seu corpo sumiu no oceano – só poderia ter sido devorado por um peixe.

Chocadíssimo, Orson Welles dedica o filme “ à memória de Jacaré, um herói americano”. Mas as filmagens prosseguirão mesmo depois da RKO – a 20 de julho de 1942 - declarar rompido o contrato com a Mercury Productions, companhia da qual Orson Welles era a figura principal.

A notícia de sua demissão lhe chega quando está na Bahia, onde se demorará cerca de uma semana, tempo necessário para concluir sua película. Na chegada da caravana à rampa do Mercado Modelo houve grande alvoroço: era tão grande a multidão de pessoas que queria ver o criador de Kane dirigir o filme que foi preciso chamar um guarda. A câmera B é ajustada e OW com rara calma, cantarolando um samba do qual é apaixonado, gradua a máquina para o início da filmagem.

Diversas cenas também foram filmadas na feira de Água de Meninos, onde as dificuldades com curiosos foram bem maiores. Enquanto o cameraman procurava dissuadir um cidadão intrometido, Orson entretinha-se em apanhar na praia pequenos caranguejos, mariscos que pelo local corriam em busca de suas residências no fundo da areia.

 

Despedido o Cidadão Kane

 

Sua súbita partida para o Rio despertou comentários, mas seu secretário assegurava, no entanto, que o filme não ia parar. Durante – ainda – filmagens dirigidas por Welles, um dos cinegrafistas sofreu um acidente nos rochedos, quebrando uma das máquinas, que ficou em estado lastimável. As chamas invadiram os trabalhos...

A contagem regressiva dos acontecimentos até seu retorno aos EUA é a seguinte:

Rio, 23 – Tendo remetido para Hollywood o material filmado no Brasil, Orson Welles prepara-se para regressar aos EUA.

Rio, 24 – OW fala com Hollywood pelo telefone internacional a propósito do caso surgido entre sua companhia e a RKO. O resultado da palestra que foi longa não se mostrou satisfatório. Welles embarcará na próxima semana para tratar pessoalmente do assunto.

Rio, 29 – O diretor e criador de Cidadão Kane ofereceu ontem no Hotel Glória um coquetel de despedida à sociedade carioca. Nessa ocasião, Orson Welles afirmou, mais uma vez, a magnífica impressão que leva do Brasil, de sua terra e de sua gente e sua decisão de voltar dentro em breve. Antes, porém - em seguida a um telefonema definitivo – Welles não deixou de estraçalhar e projetar janela abaixo o mobiliário do apartamento da Avenida Atlântica.

Opinião de Grande Otelo:

O que fizeram com ele foi desonesto. Veio incumbido de fazer um negócio desde que abrisse a América Latina com a América do Norte. Depois a América do Norte achou que aquilo não servia à América Latina, principalmente para o Brasil, chutou ele para o alto e me chutou também e eu quero saber por que fui chutado. Mormente sabendo que as cenas que eu fiz foram cortadas e jogadas no fundo do mar porque eu, exclusivo da Urca, não assinei contrato. Ficou uma interrogação em mim, no Brasil – sou humano, tenho direito de saber a definição que você deixou aqui.

Em vias de embarcar, Orson Welles diz que o “único artista que eu conheço neste país chama-se Grande Otelo”. E, antes da partida prometendo, porém, um dia voltar – perguntou a Lourival Fontes, diretor do DIP: “mas o que há com este país?”.    

 

Publicado no jornal O Estado de Minas em [1979]