Sissy Spacek: Uma atriz sem efeitos especiais

 

Entrevista a Sérvulo Siqueira

 

Numa época em que as grandes estrelas do cinema são os técnicos em efeitos especiais – Douglas Trumbull entre elas – e quando há poucos atores que podem ser realmente considerados verdadeiras atrações de bilheteria – Marlon Brando e alguns poucos mais – Sissy Spacek é o que se poderia chamar de uma atriz na medida do seu tempo. De pouca altura, o rosto sardento, sem nenhuma característica especialmente bela, ela tem um tipo absolutamente normal. Mas, como outros atores do seu tempo, tem uma visão clara e coerente da situação do ator e mostra-se sobretudo interessada em trabalhar em filmes que forneçam uma visão dos problemas de sua época. Acidentalmente convertida em atriz – foi morar em Nova York para estudar música – não parece uma pessoa que busque a glória na profissão em trabalhos sem qualidade. Desde quinta-feira no Brasil – aonde veio para ver tudo o que for possível, em busca do sol e querendo conhecer os nossos produtos culturais – ela regressa amanhã para retomar seu trabalho, num filme que abordará da eclosão da Beat Generation até a aurora do movimento dos hippies, na década de 80.

Mary Elisabeth Spacek – o apelido Sissy foi dado por colegas de escola – chegou ao cinema através da música e da profissão de modelo fotográfico.

— Comecei a posar, mas aos poucos fui percebendo que não tinha o físico ideal, sou pequena.

A música representava a aspiração primeira – ela toca violão – e foi para desenvolver sua habilidade que saiu da cidadezinha de Quitman, no Texas, onde nasceu, rumo a Nova York viver com seu primo, o ator Rip Torn, e a mulher, a conhecida atriz Geraldine Page. No momento em que resolveu tornar-se atriz, cursou a escola dramática de Lee Strasberg – pela qual passaram Marlon Brando, Paul Newman, Marilyn Monroe e outros famosos astros – e estreou num pequeno papel em Prime cut, ao lado de Gene Hackman e Lee Marvin. Depois veio Girl of Huntington House, para a televisão, e a produção independente Girl in the morning. A notoriedade começou com Terra de ninguém (Badlands), uma produção independente de Terrence Malick, em que fazia o papel de uma menina do interior que fugia com um gari cuja veleidade era achar-se parecido com James Dean. Mais umas participações em filmes para televisão – dois episódios na série Os Waltons e The migrants, de Tennessee Williams, ao lado de Cloris Leachman – e um especial de Tv, Katherine. E, finalmente ganhou celebridade representando a adolescente Carrie (produto da onda de filmes sobre possessões demoníacas e poderes extra-sensoriais) que, criticada e ridicularizada pelas colegas, repentinamente perde o controle de suas emoções e deixa irromper faculdades extraordinárias: a capacidade de ativar os chamados fenômenos telecinéticos, a possibilidade de pensar uma coisa e ela acontecer.

 O mais recente filme de Sissy Spacek exibido no Brasil foi Três mulheres, de Robert Altman, como Pinky, uma jovem imatura que aos poucos assume a personalidade da colega de apartamento, representada por Shelley Duval. Esta recente constância de personagens estranhos, neuróticos ou excepcionais não viria então do seu tipo físico, pequena, sardenta, um tipo absolutamente normal para os padrões americanos? Sissy responde:

 – É possível que isto tenha acontecido. Mas na verdade, são duas personagens completamente diferentes. Carrie é uma pessoa excepcional, e eu mesma não acredito que todas aquelas coisas que ocorrem com ela possam ser verdadeiras, acho que há um certo exagero. Já Pinky, a personagem de Três mulheres, e muito mais verossímil, é até certo ponto muito comum não só no Texas como em outros lugares em que uma moça vinda do interior assuma, por necessidade de adaptação e sobrevivência, os valores de uma outra com quem convive. Agora, quanto a mim, considero-me muito normal, embora tenha interesse por assuntos como os relativos à Carrie.

Seria possível você estabelecer algumas relações entre alguns diretores com quem tenha trabalhado? Brian de Palma e Robert Altman, por exemplo.

 – São duas personalidades bastante diferentes. Brian de Palma é um intelectual vindo das elites, com formação universitária e uma profunda visão teórica das coisas. Seu estilo de direção é então muito elaborado, porque na verdade sua criação já vem desde o roteiro. Isso fornece ao ator a oportunidade de trabalhar intensa e intelectualmente o personagem, desenvolvê-lo, interiorizá-lo, até dar a ele uma forma mais madura. Bob Altman, ao contrário, é uma pessoa que improvisa muito, não tem um roteiro definido, a encenação vai surgindo segundo as relações afetivas que se criam durante a filmagem. Bob é uma pessoa, digamos, mais sensível e intuitiva, um diretor muito experiente que sabe conduzir habilmente o ator, de tal maneira que ele percebe que está sendo sutilmente induzido. A maneira de Altman dirigir não busca somente captar, com sua encenação, a representação das coisas que estão acontecendo, ele vai mais fundo: procura registrar as emoções mesmas do ator, a improvisação e sua capacidade de ir além do roteiro. Se se colocasse cinco diretores para dirigir uma cena aqui neste instante, acredito que Bob o faria de forma totalmente diferente dos outros.

E foi justamente sob a égide de Robert Altman, como produtor, que Sissy acabou de realizar seu último trabalho, no papel de uma moça que vem do interior para Los Angeles e precisa trabalhar como empregada doméstica, em Welcome to L. A. Assim ela vê seu trabalho e a proposta do filme:

 – O filme é sobre a busca da felicidade na cidade grande — pessoas que chegam a uma metrópole querendo ganhar dinheiro, umas, ficar famosas, outras, querendo simplesmente realizar seus sonhos profissionais, e que amam e odeiam como todo mundo. São muitos personagens, eu faço uma empregada doméstica na casa de Sally Kellerman. Há, inclusive, a Lauren Hutton, que faz uma modelo, Keith Carradine, um músico, e outros.

 A atriz fala também das novas perspectivas de trabalho, dos próximos filmes. Sissy nunca trabalhou em teatro, e fez alguns filmes de televisão, mas agora pretende somente fazer filmes independentes para as salas comerciais. Sua próxima atuação será em Heartbeats, de John Byron, o diretor de Inserts, uma interessantíssima idéia que conta a história de um diretor de cinema dos anos 20, que, por falta de oportunidades para realizar trabalhos de vanguarda, torna-se, para sobreviver, um diretor de filmes pornográficos. Produzido com baixo orçamento – o que agrada a Sissy – Inserts não obteve a consagração das platéias, mas conseguiu a aprovação da crítica. Também ambientado no passado, Heartbeats (Batidas de coração) vai recontar os tempos da Beat Generation através das relações entre Neal Cassidy, sua mulher e Jack Kerouac:

– Como se sabe, eles viveram juntos e tiveram uma relação de ménage à trois. O filme é fruto da transposição e adaptação do livro da mulher de Cassidy que conta este envolvimento. Por meio dele, pretende mostrar a época da Beat  Generation - do fim da década de 50 à explosão dos hippies no final dos anos 60 - quando morre Kerouac. Eu vou fazer o personagem da mulher de Neal Cassidy.

 Os filmes em que Sissy trabalha são em geral extremamente interessantes. E ela confessa que não lhe agradam as superproduções.

 – Vi Guerra nas estrelas e na verdade gostei, conta. É um filme agradável de se ver. Mas logo depois veio Contatos imediatos do terceiro grau, e aí você vê que se haviam gasto seis milhões de dólares em Star wars, o custo de Close encounters é de mais de 20 milhões de dólares, e eu acho que isto passa a ser o mais importante. Eu prefiro filmes de orçamento mais barato, e não tenho preferência por diretores famosos, estou sempre interessada em atuar com novos diretores. Mas a verdade é que nos Estados Unidos é muito difícil fazer filmes baratos, as unions e os sindicatos são muito fortes e criam uma legislação que impede que os filmes que não se enquadram nas suas normas rígidas tenham condição de exibição comercial.

 Isto não impediu, entretanto, que Terrence Malick, depois de ter realizado Terra de ninguém, com um orçamento de 250 mil dólares, um custo extremamente baixo para os padrões americanos, tenha acabado de dirigir Days of heaven, filme no qual Sissy lamenta não ter podido atuar.

 – E uma obra maravilhosa, parece o trabalho de um pintor. Ele filmou todas as seqüências na mesma hora, entre as quatro e as cinco horas da tarde, e obteve um efeito deslumbrante.

  

Entrevista publicada no jornal O Globo em 10 de julho de 1978