O culto vudu no Brasil: a visão de um documentário
Entrevista do Professor Nunes Pereira a Sérvulo
Siqueira
Não se trata de macumba, mas de
vudu mesmo:este culto
existe no Brasil, apesar de, quando se fala nele, as pessoas pensarem só
no Haiti. Embota tenha em comum com a macumba a origem africana, o
vudu é um culto com características próprias. Seu panteão encontra-se
em Lagos, na Nigéria e no Daomé. Os adeptos, ao contrário dos
praticantes da macumba, estão diminuindo no Brasil. Nunes Pereira, um de
seus estudiosos, atribui o fato à falta de continuidade na formação de
sacerdotisas do culto (nochês).
"A Casa das Minas – Introdução" é
parte do que se pretende um amplo documentário cinematográfico sobre o
culto vudu. A oportunidade do filme, segundo Carlos Silva –
juntamente com José Sette e Rolando Santos seu diretor e
produtor – surge do fato de que o vudu "está se perdendo
ao revés das palavras dos cultos e isto começa a desaparecer e a ser tão
corrompido que não mais pode ser sequer conservado". Diz o professor
Nunes Pereira, autor da obra em que se inspirou o filme: "O
documentário já não consegue mais preservar a integralidade da tradição
africana, de acordo com minha conceituação vai servir para estudiosos
como eu".
Com duração de 30 minutos, o documentário começa no
gabinete de trabalho de Nunes Pereira – prateleiras que abrigavam
uma biblioteca há pouco vendida ao governo do Pará –, com o
professor recordando traços de sua meninice em São Luís do Maranhão.
Estes traços se localizam na "Casa das Minas" onde Felicidade Nunes
Pereira – sua mãe e uma nocbê – participava como uma das
oficiantes do culto. De suas lembranças vamos para Jacarepaguá, onde o
professor nos introduz num querebetã, que quer dizer
terreiro, em idioma nagô.
Dona Zuleide, praticante do culto, fala de algumas
de suas características. O modo de preparo da comida, que participa de
um ritual onde entram também os huntós, tocadores de atabaque,
únicos homens participantes de uma cerimônia oficiada exclusivamente por
mulheres. O altar se encontra em uma construção ao lado do querebetã.
Sua disposição, segundo Nunes Pereira, "já não tem mais nenhuma
ligação com o altar especificamente africano, representa uma
adulteração. O altar legítimo da tradição africana – dentro de
suas concepções religiosas, politicas e sociais – é sempre uma
árvore, um baobá. Entre nós é a cajazeira. É sempre uma árvore e
representa como que uma catedral na natureza, um santuário. Dai o fato
de dona Zuleide nos falar multo de sua ligação com a natureza".
Do altar registrado pelo filme – uma
disposição triangular em torno de um quarto – contendo elementos
representando divindades – passamos para um jardim onde se
completará o ritual de um culto vudu. A câmera destaca pedras
estranhas e bonitas que parecem ter sido esculpidas. Nunes Pereira diz
que elas estão ligadas á cosmologia do culto minajêgê:
– São pedras caídas do céu. Pedras de raio ou seixos
rolados do leito dos rios e têm aquela forma porque sofreram erosão
devido à influência do sol ou sob a ação das águas. Não compõem nenhum
significado mas estão ligadas ao culto dos vudus. Viajando no
altiplano andino – na Bolívia e Peru – encontrei à margem
das estradas pedras semelhantes a estas, observa Carlos Silva.
As últimas sequências do documentário registram o
sacrifício de um galo e o momento em que os vudus "baixam" no
querebetã.
–
Este sacrifício - observa o professor – não
somente "representa uma homenagem à divindade como também se constitui
num alimento do vudu e da nochê. São preparados com temperos
especiais que dão força às oficiantes, representando também um elemento
de integração no culto. Entretanto, aquela matança do galo revelada no
filme – que é uma coisa impressionante – não é
vista por todo o mundo, é um fato secreto.
Carlos Silva fala dos seus planos imediatos e
futuros.
– Já filmamos na Casa das Minas do Maranhão, na Rua
São Pantaleão, em São Luís. A primeira parte é o que está representado
no livro: a velha cajazeira. o ambiente onde se formou a meninice do
professor Nunes Pereira. Por outro lado, documentamos a festa de São
Sebastião de Acóssi e uma visita da Casa das Minas – dos
participantes do culto vudu – ao terreiro Nagô, para
caracterizar isto que o professor chama de esgalhamento, a ramificação
de vários cultos dentro do tronco cultural nagô. Há neste segmento um
aspecto de volta ao passado, usa-se por isso um negativo que dá um tom
ligeiramente sépia.
– Iremos depois à Bahia, ao Haiti e à Africa buscar a
fonte deste culto que se propagou no Brasil. E assim, teremos um painel
que servirá de registro seguro para historiadores e etnólogos. Só a
primeira e segunda partes do filme já estão feitas – diz Carlos
Silva.
Moronguetá: uma visão da nossa cultura
– Carlos, como surgiu a idéia do filme?
– Quando foi publicado o livro "Panorama da
alimentação indígena", o Rolando – um dos autores do filme –
chegou em casa com a obra e nós, depois de ler e discutir, chegamos à
conclusão de que ela tinha uma visão da cultura brasileira. Em segundo
lugar, o que nos chamou a atenção foi o fato de que ela trata de
assuntos sobre os quais não há muita coisa publicada. Existem trabalhos
de Silva Mello, Câmara Cascudo e Oswaldo Orico mas de qualquer maneira a
bibliografia não é muito extensa. Quando chegamos na casa do professor
Nunes Pereira fomos conversar sobre o "Moronguetá", ainda não
conhecíamos o livro "A casa das minas". Tomamos contato com, este livro
que é uma publicação pioneira da Sociedade Antropológica Brasileira de
1947, é a primeira edição desta sociedade que foi dirigida por Artur
Ramos. Depois de tomarmos conhecimento com o corpus desta obra,
decidimos filmar. registrar a realidade de uma cultura que está em
contágio cora outras e por isso se corrompe. Como disse um
documentarista africano que esteve no Brasil, o cinema é o veiculo ideal
para registrar a cultura da África, porque a cultura negra é
eminentemente visual. Não tínhamos dinheiro e as possibilidades de obter
um financiamento eram muito remotas. Daí optamos por filmar com um
mínimo de recursos, filmar o professor aqui na biblioteca, situá-lo como
um estudioso também de gabinete e depois fazer uma pesquisa de campo.
Isto se constituiria numa introdução ao assunto. A pesquisa de campo
seria realizada num querebepã, que é um vocábulo minajêgê usado para
designar um terreiro. Por outro lado, havia a dona Zuleide Amorim, que é
ligada à Casa das Minas. Assim, pensamos nós, através da venda de uma
cópia deste filme, poderíamos prosseguir o nosso trabalho.
– Professor Nunes Pereira, o que é "A casa das
minas"?
– A Casa das Minas é um centro de religiosidade
afro-brasileira. Negros e escravos – chamados de "contrabando"
– que conseguiram chegar a Minas Gerais e Bahia e mais tarde ao
Maranhão, fundaram as bases da liturgia dos vudus, cujo panteon mais
representativo se encontra em Lagos, na Nigéria e no Daomé. Eles
trouxeram toda a liturgia do culto para o Brasil – isto já tem
mais de cem anos – e, levado por trabalhadores, seringueiros e
mulheres, ele estendeu-se até a Amazônia. Assim você encontra este culto
também em Porto Velho. Mãe Esperança, uma maranhense octogenária, fundou
um terreiro lá, que continua agora sob a direção de Chica Macaxeira. Ela
é mãe de santo, o que no idioma minajêgê se diz nochê. Este culto
teve uma expressão religiosa muito grande na Amazônia. Os mais
conhecidos eram o de mãe Andresa Maria e o Nagô. Eu me preocupei
mais com o culto vudu da Casa das Minas. Do nagô se pode dizer que era o
tronco da religiosidade dos cultos vudus no Brasil e na Africa. Ele se
esgalhou no culto do minajêgê mas o representativo é a imagem deste
tronco puramente nagô: ioruba, fon e nagô. 0 nagô é
um ramo, uma língua. Minha ligação com a Casa das Minas, vem do fato de
minha mãe ter sido iniciada no culto vudu, ela era uma noviche,
uma sacerdotisa ou, como se diz na umbanda, uma filha de santo.
Na minha obra lá está o nome dela - Felicidade Nunes Pereira – e
isto também consta no filme. O santo de minha mãe, seu vudu, é Poli
Bogi, que juntamente com Zanadone são as figuras mais
representativas do panteon minajêgê. Zanadone, no entanto,
já não baixa mais no terreiro, senão episodicamente, e quando o faz é
uma divindade violenta. Uma vez no Maranhão eu pude presenciar quando
ela baixou em mãe Filomena, que era uma nochê. Sua ação se
estendeu de tal maneira que prostou por terra várias noviches,
dando-lhes feições verdadeiramente horrorosas, como se fosse uma
máscara. Zanadone não baixava naquele terreiro há muitos anos.
Existe um tambor para chamá-lo que tem proporções muito grandes,
é maior de um metro e vem da África. É feito de uma madeira especial.
Mas este santo não "baixa" mais. Ele subiu. Há uma outra divindade que
não foi mencionada no meu livro mas que vai aparecer no novo a
ser lançado: Savanô - uma outra divindade que eu identifiquei
recentemente graças a uma conversa que tive com uma nochê de um
querebepã do Maranhão.
– Professor, seria possível estabelecer uma relação
de sincretismo com os santos católicos?
– Zanadone, por exemplo, eu não sei, mas
Poli Bogi é São Sebastião. Entretanto, no Maranhão este
sincretismo não era tão nítido como na Bahia. Por isto mesmo, mãe
Andresa dizia que "santo negro é santo negro". Isto não queria dizer que
os santos negros não tivessem ótimas relações com os santos católicos.
No rosto, os traços de uma verdadeira princesa negra
– Professor, qual é o santo que dona Zuleide recebe
no filme ?
– E Poli Bogi, o santo da minha mãe. Dona
Zuleide é ligada à Casa das Minas mas não é uma nochê. A última
nochê foi mãe Filomena. Agora, na Casa do Nagô ainda existem
nochês. O que aconteceu é que, com a morte de mãe Andresa Maria, o
culto vudu entrou em decadência. Vieram outras nochês mas não
tiveram a força de irradiação e sobretudo de penetração social que ela
tinha. Um grande sociólogo francês que visitou mãe Andresa Maria
reconheceu nela traços e qualidades de uma verdadeira princesa negra.
Uma mulher nobre, pela maneira como o recebeu. Grandes escritores
passaram pelo Maranhão e foram visitar esta famosa nochê. E havia
– dando uma estrutura verdadeiramente emocionante ao culto
minajêgê – um fundamento moral de alta incorruptibilidade. No
entanto, com a morte de mãe Andresa Maria e, mesmo no tempo em que ela
vivia, não obstante a insistência para que novos grupos de moças fossem
iniciadas, as nochês voltavam as costas a esta solicitação. Por
outro lado, era preciso que as noviches fossem virgens, embora
este não seja um fator fundamental, uma vez que não havia necessidade de
comprovação. E houve também perseguições policiais, porque o culto vudu
era proibido.
– Não havia uma identificação com a magia negra?
– Há magia negra no vudu mas há também uma
identificação com a maçonaria, pelo fato de que ambos têm uma linguagem
secreta. Nesta minha obra que vai editada agora, eu faço largas
referências às interligações da maçonaria com o vudu. Os maçons ajudaram
muito o movimento de libertação dos escravos. Tanto assim que quando
morria um maçon eles batiam tambor na Casa das Minas em homenagem ao
morto. Entretanto, só agora descobri elementos que provam isto. Este é
um estudo que pretendo desenvolver amplamente e já estou no rastro de
vários documentos que provam esta ligação. Eu mesmo já assisti ao
enterro de um maçom e obrigatoriamente o cortejo parava na porta da Casa
das Minas quando o tambor batia em surdina. O aspecto desta ligação rta
mais político e nascia da integração destas duas sociedades secretas.
Carlos Silva observa que "na Casa das Minas do
Maranhão, situada na Rua São Pantaleão, em São Luís, durante a festa que
nós filmamos, você vê um altar sacrário católico". – Num
determinado momento, entram as rezadeiras com uma orquestra de
trombones, banjos e começam a cantar ladainhas. Neste instante, o povo
canta junto. Quando acaba a cantoria, entram as noviches e cantam
uma outra música em língua africana. E aí que você nota a distinção que
elas querem fazer. Este é um costume muito antigo que demonstra o desejo
de camuflar – através da introdução de elementos da liturgia
católica – a sua crença.
– Professor, como é que o sr., um estudioso vê o
filme? Qual é a sua importância?
– A importância do filme está no fato de ele fixar
verdadeiramente aspectos legítimos e firmar também adulterações que
foram feitas no culto. Uma delas é, por exemplo, o fato de dona Zuleide
fazer o sacrifício do galo à vista de todos. O sacrifício de animais;
galinhas, cabras, carneiros, cobras é feito sempre numa certa área do
querebetã por homens, sacrificadores especiais, e não por mulheres.
Mesmo no bogã de mãe Valentina, na Bahia, que eu frequentei –
da linha Minasmari, uma outra extensão do culto – são
somente homens os sacrificadores. O filme confirma a autenticidade de
meus estudos e de adulterações muito sérias na estrutura litúrgica. E a
importância disto para o estudioso é que ajuda a restabelecer a pureza e
a continuidade da tradição.
Matéria publicada no
jornal
O Globo em 25 de agosto de 1977. |