Se Segura, Malandro

 Um filme irônico, mordaz, crítico, desordeiro. Como a realidade.

 

Com o acidente sofrido pelo ator e diretor Hugo Carvana, as filmagens de Se segura malandro estarão interrompidas pelo período de aproximadamente 30 dias. Atores, produtores e equipe técnica, que estiveram reunidos semana passada na Zoom Cinematográfica, decidiram que o filme será reiniciado dentro de um mês com os mesmos participantes, quando – segundo os médicos – seu diretor já estará restabelecido. Esta reportagem foi feita antes do acidente com Hugo Carvana, que motivou a paralisação das filmagens.

 

Sérvulo Siqueira

 

"Bom dia, Rio, bom dia, Brasil – no ar  mais uma vez o programa "Se segura malandro", a sua diversão de todos os dias! O programa "Se segura malandro" é feito para todos aqueles que estão com a corda no pescoço – se você foi despedido pelo seu patrão, nos procure: se sua mulher lhe trocou pelo vizinho, não chore; nos procure que nós lhe arranjamos outra. Bom dia, seu Gonçalves, cuidado para não perder a hora! Vamos acordar, minha gente!"

Assim, o animador Paulo Otávio inicia as transmissões do louco programa de rádio que é o eixo central de Se Segura Malandro, última produção da Zoom Cinematográfica e segundo filme de Hugo Carvana, realizado depois de Vai Trabalhar Vagabundo. Com três semanas de filmagem, o filme já foi rodado em vários pontos da cidade: morros, forrós, uma favela na estrada das Canoas e – após ser reiniciado – terá locações na Cinédia, em Jacarepaguá, e num estúdio de rádio que será construído num dos mais altos prédios da Avenida Rio Branco, com vista para toda a paisagem do Rio de Janeiro.

Carvana, mais de 60 filmes como ator e que fará também o personagem de Paulo Otávio, conta:

O filme surgiu da idéia de um sujeito que enlouquece num sinal de trânsito, O trânsito fica congestionado, é desviado, aparece uma porção de gente, médico, polícia, etc, e a história se desenrolaria neste sinal de trânsito. Seria a história deste personagem e de outros que estavam ao redor daquele acontecimento. Eu guardei esta idéia, porque hoje no Brasil seria impraticável parar um mês um sinal de trânsito para poder ficar filmando. Quando eu decidi fazer outro filme – já tinha feito televisão e viajado com o meu primeiro filme pela Europa – procurei o Armando Costa, o Paulo Pontes – que depois se afastou porque estava muito ocupado – e veio o Leopoldo Serran e contei esta idéia. Depois de conversarmos, descobrimos que em vez de um sinal de trânsito poderia ser um elevador, o que manteria a mesma idéia e era mais fácil de fazer. Este foi o óvulo do filme, que ia se chamar "Cineac-Trianon" porque tem uma estrutura parecida com a do antigo cinema que hoje não existe mais: vários filmes numa mesma sessão. O espetáculo começa quando você chega. Mas o Cineac-Trianon é uma coisa muito saudosista e poderia haver uma tendência em absorver o filme como sendo uma idéia nostálgica. Voltamos, então, à idéia inicial de Se segura malandro, que é um filme sobre a dificuldade do cotidiano, a barra pesada que é a vida, os sofrimentos que envolvem você segurar a barra hoje em dia, etc.

O episódio do elevador, que ocupará mais de um terço do filme, começa quando Alcebyades – que neste dia será homenageado por ter completado 30 anos como funcionário da firma H. J. e irmãos – entra no hall do edifício onde funciona a empresa e é cumprimentado efusivamente pelo cabineiro que carrega uma faca é uma laranja na mão. Enquanto o cabineiro faia, Alcebyades fica com os olhos vidrados na faca. Alcebyades será interpretado por Nildo Parente; o cabineiro por Lutero Luís e D. Clotildes será representada por Henriqueta Brieba.

Cabineiro – "Trinta anos, hein, seu Alcebyades... Pessoal aí pensa que é moleza, mas não é moleza não... Trinta anos... só eu e o senhor aqui dentro deste elevador já temos uns quinze anos... quinze anos de sobe, desce, primeiro, lotado... pessoal pensa que é moleza, mas não é moleza não..."

As conversas se sucedem no elevador até que de repente, com insuspeitada rapidez felina, Alcebyades toma a faca da mão do cabineiro, puxa para si D. Clotildes, coloca a faca na jugular da velhinha e ordena com voz firme: "Pare este elevador.".

O cabineiro se volta, toma um susto e pára o elevador num tranco. As pessoas olham todas para Alcebyades com os olhos arregalados. D. Clotildes está tomada pelo horror. O cabineiro fica de boca aberta e da boca pende um pedaço de laranja já chupada. Silêncio total.

Laonte Klawa, cenógrafo do filme, acha que a cenografia é usualmente entendida como   uma espécie de décor. Um conceito antigo de fundo de decoração.

– Para mim, trabalhar em cenografia é trabalhar com a linguagem do filme. Procuro um significado funcional que retire qualquer conceito decorativo da obra. O trabalho de cenografia não é feito para tornar as coisas mais bonitinhas. No Se segura malandro estou fazendo o planejamento visual do filme. Isto inclui figurinos, cenografia das locações e até a escolha dos figurantes, tipos e segundos personagens Faço um desenho do filme. Como ele tem diversas histórias, cada escolha não é aleatória, é extraída da realidade. Na história do elevador as cores são todas neutras porque o elevador representa uma espécie de túmulo. Um museu onde a vida parou lá dentro. Então estas cores refletem a poeira do tempo que ficou lá embaixo.

Hugo Carvana conta que depois de discutir com os co-roteiristas Armando Costa e Leopoldo Serran chegou-se à conclusão que o filme deveria ter uma característica jornalística, no sentido de contar um acontecimento da cidade.

– Para não nos limitarmos a um só acontecimento, resolvemos introduzir outros elementos, narrar outras histórias, E em vez de optar por um jornal, resolvemos que seria um programa de rádio e que estes acontecimentos seriam passados para outras pessoas. Escolhemos o rádio porque é um objeto que o homem tem colado ao ouvido, é muito mais companheiro que a televisão. A televisão é um objeto de outro planeta, adormece. Já o rádio fica falando no seu ouvido, mantém a fala dentro da comunicação, o que eu acho fundamental.

A repórter-volante do filme, que será vivida por Denise Bandeira, fala diretamente do Campo de São Cristóvão:

– Dramas da Megalópole, histórias humanas recolhidas de algum ouvinte, entre os milhares que nos telefonam diariamente, narrando suas desventuras na cidade grande. Esta semana, o nosso programa, depois de muitos esforços, conseguiu reaproximar dois jovens que não se viam há muito tempo. Dois jovens que, imbuídos do mesmo sonho, abandonaram suas casas, suas famílias, em busca da Megalópole, para tentar uma melhor sorte... mas deixemos que Laurinha e Romão contem sua própria história.

Louise Cardoso, atriz que no filme vive Laurinha, fala sobre sua personagem:

– É uma cearense que vem num pau-de-arara para tentar uma sorte melhor na capital. Na viagem ela conhece Romão e se apaixona por ele.

Depois eles se perdem no Campo de São Cristóvão e passam seis meses se procurando um ao outro. Até que por meio do programa do locutor e da repórter-volante eles se reencontram. Esta é a sua primeira aparição no filme, a o dar uma entrevista no rádio. Ela fica excitadíssima porque este é um pouco o sonho dela. Depois mente para o namorado dizendo que trabalha com as freiras mas na verdade ela tem os empregos mais alucinados. Num deles, toma conta de um velho surdo, mudo e paralítico que não faz outra coisa a não ser olhar para as pernas dela. Ela vai excitando o velho até que ele tem um ataque e morre fulminado. Apavorada, ela sai em busca de socorro. Nesse instante, passa um grupo de crianças que foge com o velho e ele passa o filme inteiro, morto mas com um olhar vivo, sendo carregado pelas mais diferentes pessoas. No final, ela e o Romão – que é representado pelo Paschoal Villaboim – terminam juntos e integrados ao sistema, roubando e devolvendo cachorros.

Segundo Carvana, os personagens e as histórias foram surgindo com o sentido de representar muito bem a nossa realidade.

– Procuramos dar ao roteiro uma estrutura de literatura popular cepecista, (do antigo Centro Popular de Cultura) de discussão de temas sociais vistos através de uma dramaturgia popular: comédia, programa de rádio, com a mesma forma de narrar, os mesmos diálogos, o tom coloquial de falar, etc. Como o filme é um mosaico e eu pretendo fazer vários módulos que se encaixam, ele terá o carnaval, terá a alegria, porque o povo não é pessimista. E este é um filme popular. Porque é preciso discutir o sentido da palavra popular: as obras que fazem um imenso sucesso de público, serão elas realmente populares por causa disso? Refletirão verdadeiramente as manifestações, anseios e vontades populares? Discutirão, elas mesmo, problemas concretos de todo um país ou terão apenas elementos de apelo popular importados de outra cultura, através da sofisticação formal e da aparente beleza visual? Quando eu digo que quero fazer uma obra popular é porque eu pretendo colocar o povo como herói e personagem dos meus filmes.

No filme, Candinho – interpretado por Helber Rangel – é obrigado por seu pai, o Comendador Cândido da Silva Filho (Milton Carneiro) a viver com sua mulher Jô (Maria Claudia) numa favela para aprender a realidade da vida, como condição para receber a herança a que tem direito. O pai só acredita neste tipo de escola e despreza o curso de Economia que o filho está fazendo. Na favela onde estão Jô e Candinho, os moradores precisam construir clandestinamente um banheiro, para terem melhores condições de higiene.  

Numa das seqüências finais do filme, Beto (Anselmo Vasconcelos), um dos líderes dos favelados, conversa com Candinho:

Beto – Sinceramente, Candinho, pensei que tu só tinha topado no porre e hoje ia dar para trás. Desculpe.

Candinho – Eu? Claro que não, descobri que só na solidariedade entre os deserdados do mundo há futuro, Nós somos o sangue e a inteligência da nação!

Planos sucessivos mostram moradores' escondidos, disfarçando, acumulando tijolos, encanamentos, cimentos num canto. Outros moradores, mulheres inclusive, trazem comes e bebes, instalam uma mesinha e uma roda de samba se arma. Muito movimento para disfarçar a construção. Colocam um grande varal de roupas no local onde será construído o banheiro. Começa o mutirão. Os encanamentos serão colocados e as paredes de tijolos começam a subir, Candinho e Beto, no meio da cena, trabalham e riem, O samba está comendo solto.

 A fotografia do filme é de Edgar Moura, que fez um curso de cinema na Bélgica e fotografou vários curtas-metragens. Este é o seu segundo longa-metragem; o primeiro foi A Queda, dirigido por Ruy Guerra, também produzido pela Zoom e ainda não lançado comercialmente.

Antes do lançamento do filme - que deverá ser adiado com a interrupção das filmagens - será feita uma campanha em outdoors, cinemas, televisão, jornal, etc. tendo como slogan o título do filme, sobre o qual também está sendo feito um documentário, dirigido por Sérgio Resende. A trilha sonora contará com músicas de João Bosco, Aldir Blanc, Macalé e Chico Buarque. A música de Chico se chama Canceril, uma propaganda irônica de uma marca de cigarros e será tocada no programa de Paulo Otávio. A direção musical do filme é de Jards Macalé.

Nesta imensa barafunda de histórias de gente lutando pela vida, vivendo as situações mais loucas, a visão do filme segundo seu diretor, co-autor do roteiro e ator "é muito mordaz, muito irônica, muito critica, muito desordeira. Como a realidade, mesmo, afirma:

Este é um corte mais fundo em relação ao Vai trabalhar vagabundo, que é um filme mais meu, mais pessoal. A observação que eu fazia da realidade era mais superficial, não no mau sentido da palavra, mas é que eu me detinha na superfície, aprofundava um pouco mas isto era a partir de emoções minhas. Já neste filme agora, somos nós que escrevemos o roteiro olhando esta realidade, com todas as classes sociais, todas elas se encontrando, se entrechocando, e se contradizendo. Se segura malandro é para você, para mim, para todos nós: se segura que a barra está pesada. Na verdade, eu vejo este filme como parte de um tríptico: Vai trabalhar vagabundo, Se segura malandro e o terceiro seria Agora agüenta!

     

Matéria publicada no jornal O Globo de 23 de fevereiro de 1977.