POSITIF 67 : Entrevista de Glauber Rocha
Tradução de Sérvulo Siqueira
Entrevista a Michel Ciment
– Barravento não é conhecido na
França, mas sabemos por aqueles que o viram que é um filme sobre os
pescadores na Bahia no qual você já relacionava um certo misticismo, a
dança, a música e o mar.
– Barravento,
1962, não é um filme meu, eu o fiz quase por acaso. Ele foi iniciado por
um outro diretor, Luís Paulino dos Santos; depois de um acidente de
filmagem, eu tive que continuá-la: filmei bem depressa com um orçamento
de 3.000 dólares e 6.000 metros de película. Em seguida, quando vi o
material, não gostei e o deixei de lado. Oito meses mais tarde, Nelson
Pereira dos Santos viu os copiões e achou interessante.
Então recomeçamos a construir o filme.
– Você
havia feito
antes alguns
curtas-metragens ?
– Sim, na época em que fazia critica cotidiana, e cineclubismo. Fazia
também teatro, mas só encenava poemas.
Eu tinha uma concepção vanguardista e fiz os curtas-metragens
nesse espírito: foram o Pátio
(1960) e Cruz na Praça (1961)
filme que eu não terminei, pois quando vi o material montado, compreendi
que essas ideias não funcionavam mais, que a minha concepção estética
tinha sido transtornada.
– Mencionaram um outro
curta-metragem seu.
– Não é meu, é um
curta-metragem que
produzi, chama-se Rampa,
e que foi dirigido por Paulino dos Santos, autor inicial de
Barravento. No entanto, entre
Deus e o Diabo e Terra em
Transe, fiz dois documentários,
um em
cores sobre
o Amazonas (em
dezembro de 1965) e outro com som direto sobre as eleições políticas no
Maranhão, que é também uma região do Amazonas (em fevereiro de 66). O
filme sobre o Amazonas é meu primeiro ensaio em cores. Cheguei no
Amazonas com uma idéia preconcebida e descobri que não existia a
Amazônia lendária e mágica, a Amazônia dos crocodilos, dos tigres, dos
índios etc... O outro filme é uma reportagem sobre as eleições de um
governador do Maranhão, José Sarney, e muito importante para mim porque
foi filmado com som direto e foi uma experiência vivida para
Terra em Transe, pois eu
participei das etapas de uma campanha eleitoral, podemos ver trechos
desse material em Terra em Transe:
um carro preto que entra no meio da multidão no momento da eleição de
Vieira, um comício de jovens...
– O que você entende por encenação
de poemas?
– Eu havia organizado um grupo de teatro com amigos brasileiros, um
poeta, Fernando da Rocha Peres e um cenarista, Calazans Neto, e também
Paulo Gil Soares que há
muito tempo faz comigo jornalismo, teatro, cinema (foi assistente de
Deus e o Diabo e
Terra em Transe). No começo, nós queríamos encenar tragédias gregas,
mas achamos difícil e também pouco adequado às circunstâncias. Então
encenamos poemas. Era época em que o Brasil vivia uma loucura poética.
Fizemos espetáculos dialogando e dramatizando poemas.
Mas as representações foram suspensas pela censura.
– Quando foi isso?
– Foi em 57, antes da filmagem de
Pátio, mas era no mesmo espírito desse filme, quer dizer, um
espírito de vanguarda, muito anticlerical e a interdição nos apanhou por
motivos religiosos e morais, não políticos.
– E Pátio aproxima-se
disso?
– Sim e Cruz também. Depois de
conhecer Nelson Pereira dos Santos, encarei a possibilidade de fazer um
filme no Brasil. Entre Pátio e
Cruz, fui estagiário de Nelson
no Rio. Vim da Bahia para o Rio quando ele filmava
Rio Zona Norte. Durante a montagem de
Barravento ele me influenciou e me formou tecnicamente. Se alguém
teve influência na minha vida cinematográfica e intelectual, este foi
Nelson. Mesmo se não tenho afinidade de estilo com ele, teve um papel
decisivo na minha vida. Aliás, Nelson teve importância em todo o
movimento do Cinema Novo, certamente, mas é preciso dizer também que
essa importância não deve ser vista como uma ação direta de Nelson.
Trata-se mais de uma influência subterrânea; ele é a consciência do
nosso grupo. Foi ele quem fez o primeiro filme independente do ponto de
vista da produção, Rio 40 Graus
(1955), e aí encontramos as primeiras posições políticas frente à
situação colonial do Brasil. Ele tornou-se um líder, uma espécie de
inspirador e, ainda hoje, mediador entre os contrários.
Sempre que surge uma crise no meio do Cinema Novo ele exerce
papel humano e muito eficaz.
– Depois da experiência de
Barravento, sobre que bases você
começou Deus e o Diabo?
– Eu filmei Barravento num
estado de crise, abandonava as ideias da adolescência. . .
Diferentes dos intelectuais franceses, nós temos uma formação
cultural muito confusa: lê-se primeiro os dadaístas, depois a tragédia
grega. Conhecemos o romance
americano de Faulkner e em seguida descobrimos Rimbaud e Mallarmé. As
universidades não funcionam mesmo, os livros chegam numa grande
desordem. A formação de um jovem brasileiro é incoerente, se ele não
tiver a chance de vir à Europa estudar.
Nessa época, eu era surrealista, futurista, dadaísta e marxista
ao mesmo tempo. No Brasil,
por exemplo, todas as teorias de Eisenstein chegaram em tradução
espanhola e depois portuguesa
e, como os cineclubes
e as cinematecas são bem organizados,
a obra de Eisenstein
era muito conhecida lá. Nós éramos eisensteinianos e não admitíamos que
se pudesse fazer um filme a não ser com montagem curta, primeiros
planos, etc... Rio 40 Graus foi influenciado pelo neorrealismo. Gostamos muito do
filme de Nelson porque era de fato o primeiro filme brasileiro, mas
fazíamos ressalvas porque não era um filme eisensteiniano. No começo do
Cinema Novo, lembro-me muito bem que minha amizade por Hirzmann se devia
ao fato de que ele gostava de Eisenstein. Ele era engenheiro, tinha as
teorias de Eisenstein na ponta da língua, ele fazia experiências.
Seu primeiro filme,
Pedreira de São Diogo,
um curta-metragem, era a
aplicação das ideias de Eisenstein. E lembro-me que, quando Sarraceni
juntou-se ao grupo, como ele gostava do cinema italiano, Rosselini,
Visconti, Fellini, nós dizíamos: – Esse aí não entende Eisenstein.
Pátio é um filme feito de
metamorfoses, de símbolos, de montagem dialética.
Barravento foi feito num outro espírito, mais direto, mais
verdadeiro, cheguei a registrar a música negra ao vivo. É um filme mais
perto da realidade porque já tínhamos visto nessa época
Roma, Cidade Aberta e
Paisá e a descoberta de
Rosselini através desses dois filmes era uma espécie de
antieisensteinismo. Em Barravento,
sente-se então essa influência, mas existem resíduos eisensteinianos, e
primeiros planos no estilo de Que
Viva México!
– Quando começou
Deus e o Diabo,
você tinha a experiência de um filme atrás de você...
– É a primeira vez que me fazem essa pergunta e é a primeira vez que eu
falo de Barravento assim.
Em Deus e o Diabo desenvolvem-se algumas coisas que estão em
Barravento. Não se pode negar
que a sombra de Eisenstein está presente nesse filme, sobretudo na
primeira parte. Eu gosto muito de Eisenstein, mas eu vivo numa realidade
que não é uma epopeia no estilo Nevski, nem um drama histórico estilo
Ivan.
– Mas o oposição de estilos
corresponde à escolha do beato e dos cangaceiros.
– Na parte consagrada ao cangaço eu podia descambar para um estilo
western, como é o caso do
Cangaceiro, o célebre filme, e eu acho que atingi uma maneira
pessoal, que não saberia definir. Eu me sentia melhor ao filmar a
segunda parte, mais livre para fazer um plano, um
travelling, para cortar na
montagem, para dirigir os atores. A primeira parte, a do beato, que foi
filmada antes, me foi penosa.
– Você disse que Deus e o
Diabo estava no estilo da
literatura de cordel em que sentido?
– Como os poemas da Idade Média ou os westerns, há uma grande tradição
de versos populares e de canções que vêm de herança portuguesa e
espanhola, é a dos cantadores, que agora tornou-se no Nordeste
especialidade dos cegos, que inventam histórias. Por serem cegos, eles
têm uma imaginação maior e inventam lendas. Todo o episódio de Corisco
em Deus e o Diabo foi tirado de 4 ou 5 romances populares, e a
sequência da morte de Corisco segue a decoupagem de uma canção. Quando
conversei com alguns cegos e também com o homem que matou Corisco, eles
me contaram mais ou menos a mesma história, mas cada um misturando à
verdade detalhes inventados. O major Rufino que vemos em
Memórias do Cangaço e que me inspirou o personagem de Antônio das
Mortes, contou-me três vezes de maneira diferente como ele matou
Corisco. E no filme de Paulo Gil, ele conta de uma quarta maneira. O que
se sabe ao certo é que ele feriu no pé a mulher de Corisco e eu mostro
isso no meu filme. A expressão portuguesa é muito popular no Nordeste,
os cegos, nos teatros populares, nos circos, nas feiras dizem: eu vou
lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação, ou então: é
imaginação verdadeira. A idéia do filme veio espontaneamente, com uma
certa evidência. Toda minha formação foi feita nesse clima. Não houve
nada de intelectual na minha posição.
– O filme apareceu para você como
uma visão?
– Sim, foi exatamente isso.
– Em
Vidas Secas
e no seu filme há o mesmo contexto geográfico e a história de um casal
de camponeses, mas você não escolheu o caminho realista.
– Eu não tenho a intenção de dizer se eu faço um cinema de poesia ou um
cinema de prosa, porque são categorias que convêm à literatura, não ao
cinema. Nelson partiu de um romance realista de Graciliano Ramos, um
romance que é documento. Eu parti de um texto poético. A origem de
Deus e o Diabo é uma linguagem
metafórica, a literatura de cordel. Eu gostava mais desse gênero, gosto
também de Vidas Secas que não
tem muita afinidade comigo. Nelson tem gosto pela objetividade e a
eficácia e por isso escolheu Graciliano e lhe foi fiel. Ele foi
criticado por não haver inventado o seu tema, mas ele disse que escolheu
Graciliano porque gostava e o difícil era justamente ser-lhe fiel.
– Os discursos de Sebastião e
Corisco são inteiramente seus?
– Sim, mas
é uma
sintaxe popular. Nós
temos três tipos de tradição literária uma tradição europeia, que vem a
ser Stendhal, Flaubert etc... Graciliano é uma pessoa que escreveu em
português como os realistas franceses. Depois temos uma tradição barroca
que veio dos espanhóis como Cervantes e Quevedo e dos portugueses; e
enfim a literatura popular que nasceu do povo. Uma pessoa nascida em São
Paulo e que fez uma universidade tem formação cultural mais
anglo-francesa; existem pessoas no Brasil que nunca leram
D. Quixote e conhecem muito
bem Joyce. Mas essas tradições todas constituem o Brasil. O Nordeste,
assim como São Paulo, que é um outro tipo de Brasil, americanizado.
– Os personagens femininos em
Deus e o Diabo
têm um papel mais importante do que geralmente
se pensa.
– Essa observação me foi feita muitas vezes e nunca cheguei a um
comentário realmente
objetivo a respeito.
Em Barravento,
Deus e o Diabo, e também
Terra em Transe, as mulheres
têm consciência do que se passa, consciência da «história».
Em Barravento, um personagem feminino dá a sua própria vida como
exemplo, se sacrifica pelo povo, leva um homem a assumir uma posição
política e morre. Eu tenho muita dificuldade em trabalhar com os
personagens femininos. Escrevi diversos roteiros que não foram filmados,
nos quais eu tinha dificuldades em criar personagens femininos, que são
comigo sempre muito conscientes e têm influência moral ou política.
– Mas não Sílvia em
Terra em Transe?
– Não, Sílvia certamente não, mas ela está em segundo plano, é uma
espécie de musa, uma expressão
da adolescência, que se torna imagem fugitiva. Sílvia aliás não
diz uma palavra em Terra em Transe,
porque não consegui colocar uma só palavra em sua boca. Foram cortadas
porque tudo o que ela dizia ficava ridículo. Sara talvez diga as coisas
um pouco como homem. Talvez exista aqui um fenômeno de compensação
porque não encontro frequentemente na realidade brasileira mulheres tão
conscientes.
– Como você encontrou e escolheu
seus atores? Dizem que há problemas quanto a isso na América Latina.
Buñuel por exemplo teve dificuldades no México.
– No Brasil é diferente. Há uma grande atividade teatral. Encena-se
Brecht. Muitos atores estiveram nos EUA e trabalharam no Actor's Studio.
Othon Bastos (Corisco em Deus e o Diabo) é ator brasileiro que melhor
representa Brecht no teatro. Acho que ele deu uma certa dimensão ao seu
personagem e quando eu discutia com ele, me revelava muitas coisas. Ele
é culto e tem uma voz excepcional.
Foi ele quem fez em Deus e
o Diabo, a dublagem de Sebastião que é interpretado por um amador,
um membro da aristocracia negra da Bahia que também trabalha em
Barravento. Maurício do Vale,
que é Antônio das Mortes, é ator de televisão. Ele havia feito o Zorro.
Eu o escolhi porque ele era familiar ao público e Antônio das Mortes é
um herói popular. Geraldo Del Rey, que faz Manuel, é ator muito
conhecido no Brasil, um cartaz. Othon Bastos, Del Rey e Sônia dos
Humildes (Dada) são atores do grupo teatral da Bahia, onde estudaram
numa escola muito boa. Em Terra em
Transe, são grandes atores de teatro, mas eu os escolhi em função do
assunto. José Lewgoy, que faz o Vieira, é o ator de cinema mais popular
do Brasil: ele faz sempre o chefe dos bandidos nos filmes de
gangsters, e aparece também
nas comédias. É espontâneo e inteligente. Paulo Autran é ator de teatro
quase oficial, representa tragédias gregas, interpreta então um papel
teatral, o personagem de um mistificador. Jardel Filho, que é o herói do
filme, é também ator conhecido no Brasil. Já fez mais de quarenta
filmes, trabalhou na Espanha e na Argentina.
– Quando você encenou no teatro,
já utilizava a música?
– Não, só palavras e iluminação.
– Como você teve a idéia de dar importância
tão grande ao comentário musical? À canção que exprime mesmo a mensagem
final de Deus e o Diabo?
– Inicialmente é preciso dizer que a música tem papel importante não só
no meu filme, mas nos outros filmes brasileiros também.
Aliás nós somos um povo talvez subdesenvolvido do ponto de vista
cultural, mas bastante desenvolvido em relação à música. Por exemplo,
Rui Guerra é diretor, mas também músico, e bom músico; e todo mundo lá
toca um instrumento; eu não, mas já fiz algumas canções. Somos todos
músicos. Hirszman acaba de fazer um filme musical, a música tinha em seu
filme tal força que
se perguntou: por que não fazer um filme musical, e fez a Garota
de Ipanema; os personagens são compositores e cantores.
No Cinema Novo há uma tendência de se fazer filmes onde a música
não seja somente um comentário, mas elemento tão importante quanto os
diálogos e a fotografia. Eu estava inspirado por Villa Lobos quando fiz
Deus e o Diabo. Há uma cena no
filme que eu tive idéia de filmar porque eu havia ouvido a música ‒ é
cena dos beijos ‒ entre Corisco e Rosa. Eu tinha medo de filmar essa
cena que era indispensável. Ouvi um disco à noite, a
Bachiana n°9, discuti com o
fotógrafo e os assistentes, e nós tivemos a ideia da
cena, em seguida fiz a montagem a partir da música, em função do
ritmo.
– Othon Bastos, a importância da
música, tudo isso nos leva a Brecht...
– Eu devo dizer que a peça de teatro que mais gosto, entre as que vi no
Brasil, é a Ópera dos Quatro
Vinténs, uma peça que me tocou muito e aliás a todos no Brasil. Eu
fui especialmente a Berlim ver o Berliner Ensemble. É preciso dizer que
Brecht é muito representado no Brasil.
– Qual o Brecht mais importante no
Brasil? Por que no primeiro Brecht, o
emprego da música é bem diferente do segundo Brecht?
– Antes de filmar Deus e o Diabo,
eu só conhecia a Ópera dos Quatro
Vinténs. A primeira peça de Brecht levada no Brasil foi
A Boa Alma de Setchuan, mas eu
não a vi. Eu vi a Ópera dos Quatro
Vinténs no meio da filmagem de
Barravento; um dia eu fui à Bahia para assistir ao espetáculo. E
aquilo realmente me transtornou, foi uma descoberta tardia, mas
importantíssima.
– E a direção dos atores?
– No Deus e o Diabo, foi mais
fácil. Havia um clima extraordinário, uma equipe fantástica. O câmera
Valdemar Lima gostava do filme e era um amigo, e depois havia Walter
Lima Jr. e Paulo Gil que colaboraram comigo. Os atores gostavam do
assunto, e como não tínhamos dinheiro, era uma espécie de aventura
romântica. Havia um estado de espírito comum e um elã puro.
Evidentemente havia problemas técnicos, mas eu me lembro que à noite nós
trabalhávamos muito juntos, nós ensaiávamos com os atores, etc... Em
Terra em Transe, já foi outra
história, com atores profissionais, com contratos pagos, que tinham que
trabalhar no teatro à noite, que filmavam até as quatro horas da tarde e
alguns mesmos se recusavam a falar com os assistentes. Com os atores
principais as relações eram profissionais. Eu sofria porque achava que
poderia conseguir mais no filme, se os atores tivessem compreendido
melhor seu papel. Queriam trabalhar neste filme porque pensavam que se
tratava de filme importante, só isso. Aquele que interpreta Diaz, dizia
que não estava de acordo com o seu papel, por ser um homem de esquerda e
não querer interpretar o homem da direita. Aquele que interpretou Vieira
pretendia ser sofisticado, e por isso não podia interpretar um herói
populista. O personagem principal sentia-se bem e gostava do papel.
– Em Deus e o Diabo,
o personagem de Antônio das Mortes está a serviço da repressão e é, ao
mesmo tempo, um agente da história, uma consciência crítica em relação
aos personagens. Você não recorreu a este tipo de personagem em Terra em
Transe, você abandonou esta construção de personagem-testemunha.
– Antônio das Mortes é, em
Deus e o Diabo, o único personagem que eu realmente elaborei; os
outros são personagens verdadeiros num
contexto histórico
determinado, e podem
ser identificados. Com Antônio eu apresentava a descrição de uma
consciência ambígua, de uma consciência em transe. Antônio que é
personagem primitivo, um camponês, um aventureiro, vamos encontrá-lo
mais desenvolvido em todas as contradições do Paulo Martins de
Terra em Transe. Paulo Martins, como Antônio, é um cara que vai à
direita e à esquerda, que tem má consciência dos problemas políticos e
sociais. Encontramos nele uma revolução recorrendo às contradições, e
disso ele morre. É, aliás, uma parábola sobre a política dos partidos
comunistas na América Latina. Para mim, Paulo Martins representa, no
fundo, um comunista típico da América Latina. Pertence ao Partido sem
pertencer. Tem uma amante que é do Partido. Coloca-se a serviço do
Partido quando este o pressiona, mas gosta também muito da burguesia a
serviço da qual ele está. No fundo ele despreza o povo. Ele acredita na
massa como um fenômeno espontâneo, mas acontece que a massa é complexa.
A Revolução não estoura quando ele o deseja e por isso ele assume
posição quixotesca. No fim da tragédia, ele morre. Antônio é mais
primitivo, recebe dinheiro do poder, deve matar os pobres, o beato e o
cangaceiro, e ele sabe que essas pessoas não são más porque são vítimas
de um certo contexto social do qual não têm consciência. Antônio é um
bárbaro, enquanto Paulo é intelectual. Eu gostaria de retomar no
Terra em Transe alguns elementos da estrutura de
Deus e o Diabo. Encontramos
nas cidades a mesma hierarquia do campo; é uma herança do tempo do
latifúndio, de uma mentalidade da Idade Média com, certamente,
influências da civilização moderna. Em
Terra em Transe, a maior
ambição que eu tinha era denunciar essas estruturas e paralelamente
mostrar uma estrutura dramática em vias de se destruir. É por isso que
Terra em Transe tem relação com
Deus e o Diabo. Trata-se da
destruição de um discurso que já foi iniciado em
Deus e o Diabo.
– Você então tentou também
empreender essa destruição do ponto de vista estético?
– Deus e o Diabo é um filme
narrativo, é um discurso... Terra
em Transe já é mais antidramático, é um filme que se destrói, com
uma montagem de repetições. No momento eu gostaria de mudar, pois acho
que há uma saída política que é realmente atual e válida, e que responde
a todas as insuficiências teóricas dos Partidos Comunistas tradicionais
latino-americanos. Personagens como Paulo Martins ou Antônio das Mortes
não me interessam mais. Eu acho, par exemplo, que Che Guevara é o
verdadeiro personagem moderno, toma posição contra ela. É o verdadeiro
herói épico, nem o intelectual como Paulo, nem o primitivo como Antônio.
– Mas, aliás, a significação implícita de
Terra em Transe é que a aliança do
intelectual com a burguesia leva sempre ao fracasso.
– Acho que as respostas às dúvidas de um personagem, como Paulo -
dúvidas que aliás caracterizam toda minha geração e eu mesmo, é a figura
de Guevara. Não estou dizendo isso porque se fala neste momento em sua
morte, pois eu já pensei muito nisso e tudo me leva neste momento a
fazer um filme a respeito de um personagem como ele, burguês que se
desliga de sua cultura e faz a revolução. Ele dá uma resposta por sua
própria existência e agora com sua lenda, ele traz resposta a uma série
de problemas da América Latina.
– Antônio das Mortes está além de
Paulo Martins. Ele é um pouco a racionalidade da história.
– Sendo Antônio das Mortes primitivo e não tendo vivido os compromissos
e a educação burguesa de Paulo, ele pode se tornar mais rapidamente um
personagem, revolucionário; mas também Paulo pode se tomar
revolucionário. Não abandonei o personagem de Antônio, quero voltar a
ele mais tarde. No Brasil, é o personagem do filme que adquiriu mais
popularidade e a ele Deus e o Diabo deve seu semi-sucesso; ele se
comunicou com os espectadores. Quero fazer uma espécie de anti-western,
brigas entre proprietários de terra e camponeses, etc., e quero
ambientar Antônio nesta situação.
– No fim de
Deus e o Diabo é dito que “o mar
será sertão”, e o início de Terra em Transe
é também o mar, o oceano: você pensou nisso?
– Sim, é muito claro; eu nem queria fazer uma referência simbólica –
acho que Terra em Transe é o
desenvolvimento natural de Deus e
o Diabo: as pessoas chegam ao mar. Chega-se pelo mar à cidade e, no
fim, acabamos num deserto onde não há a música da esperança como em
Deus e o Diabo, mas o ruído
das metralhadoras que se sobrepõe à música do filme. Música e
metralhadoras, e em seguida ruídos de guerra, ou seja, um canto de
esperança. Não é uma canção no estilo «realismo socialista», não é o
sentimento da revolução, é algo mais duro e mais grave. Fiquei feliz em
ter colocado isto no filme, porque um mês mais tarde, quando li a
comunicação de Che na
Tricontinental, ele dizia: “Pouco importa o lugar onde encontrarei a
morte”. Que ela seja bem-vinda desde que nosso apelo seja ouvido... e
que no repicar das metralhadoras outros homens se levantem para entoar
cantos fúnebres e lançar novos gritos de guerra e de “vitória”.
– Mas qual é a canção do início de
Terra em Transe?
– A canção de Terra em Transe
é uma canção africana, canta da em língua africana no Brasil, e sua
única finalidade é evocar um certo lugar, certa atmosfera dos mares
tropicais, dos palácios barrocos. Esta canção é cantada em vários
lugares, sobretudo na Bahia; Barravento também começa com uma canção
africana. O mar é um mito para o camponês pobre, e é pelo mar que os
portugueses chegaram no Brasil.
– Você disse que, em Paulo
Martins, há um lado Antônio das Mortes, mas há também um lado Manuel,
porque Paulo vai também de um para outro, como Manuel ia do Deus Negro
ao Diabo Loiro. Pensa-se também em Corisco: o personagem de Corisco é
obcecado pela morte e por uma espécie de sonho metafísico que é muito
curioso num bandido, e Paulo, o poeta, também pensa na morte.
– É verdade, porque ele é um pouco, como poeta, aquilo que Corisco é
como bandido. Ê também um aventureiro que beira o perigo. Aliás, só pela
morte Paulo Martins poderá se salvar; pois, inclusive, se escolher a
revolução, ou seja, se ele se tornar um revolucionário, ele escolhe
também a morte e esta escolha lhe dá possibilidade de vitória. Ele deve
portanto se preparar para a morte. Trata-se de uma decisão para a qual
devem-se romper todas as amarras. Não estou pronto para isso. É uma
contingência trágica que todo homem do Terceiro Mundo deve enfrentar.
Pode ser encarada, se quiserem, como posição neo-romântica, mas muito
didática também. O que Guevara valoriza é que a guerrilha não é uma
aventura romântica, mas epopeia didática. Um pouco como os personagens
de western, com uma ressalva: a missão é muito precisa, trata-se de
politizar. Aliás, vejo nisso o início de uma nova cultura, de um novo
comportamento, de um novo estilo de homem e de ação; pormenorizando: a
fala, as vestimentas e o comportamento dos guerrilheiros são algo novo.
– O monólogo de
Terra em Transe
é muito bonito e é
interessante saber que você queria intitular seu filme Maldoror.
– Eu li muito Os Cantos de
Maldoror, infelizmente em português, porque no Brasil não encontrei
a edição francesa. O que me marcou neste livro é a tortura permanente.
Há um realismo do vômito. Foi muito criticada a estrutura do filme, seu
aspecto irrisório. Queria dar mesmo esta aparência de vômito e acho que
Paulo é homem que vomita até os seus poemas e as últimas sequências do
filme são um vômito contínuo. O discurso é evidentemente inferior ao de
Lautréamont, mas há nele a mesma angústia.
– Você escreveu primeiro este
monólogo?
– Sim, depois alguns outros poemas e finalmente o roteiro. Filmei e, na
montagem, inseri o monólogo.
– A morte de Paulo tem aspecto
estético. Em si, ela não tem nenhuma significação, porque não altera
nada.
– Sim, porque ele toma consciência; neste momento preciso, ele morre por
causa de um acidente, mas ele declara que «não se deve». Diz que é
preciso aceitar a violência, enfrentar o destino num corpo a corpo. Em
outro momento do filme, ele dizia a Sara que, quando se tiver
consciência clara e completa de tudo, só a violência permanecerá, ele
diz isto depois do comício político; lembra-a que dentro da massa existe
o homem, e que o homem é difícil de manipular, mais difícil que a massa.
Ele, claro, não pode aceitar a violência, por ser impotente, não tem
organização para isso. No momento de sua morte, ele sabe que a violência
é o caminho da revolução.
– Quase no começo do filme há uma
citação não legendada de Mário Faustino.
– Mário Faustino foi o maior poeta brasileiro de minha geração, morreu
aos 33 anos num acidente de avião. Escreveu um livro que se tornou muito
popular entre a juventude, chamado
O Homem e sua Hora. E no poema “Epitáfio para um Poeta” ele dizia:
Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma
pura...
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta
ternura)
Foi isto que coloquei em meu filme, como homenagem; ele era um pouco
como Paulo Martins.
– Em cena muito realista, você utiliza o que
vem a ser a estrutura de conjunto de
Deus e o Diabo:
um personagem fala em nome do povo. É comum no Brasil esse gênero de
jogo simbólico?
– Para filmar essa cena, coloquei Vieira, o autor, no meio do povo, e
eles pensaram que se tratava realmente de um comício político, que
Vieira era mesmo um candidato. E mesmo nas cenas do interior, quando
Vieira cumprimenta as pessoas da cidade, era como um comício político.
Ele chegou e começou a fazer seu discurso, e nesse momento a polícia
quis interromper a filmagem porque havia agitação, as pessoas queriam
votar naquele homem (era na época das eleições para deputado). Eu
aproveitei, filmamos ao vivo, bem rápido, num domingo à tarde. É a cena
do início da campanha eleitoral de Vieira e tudo o que há nessa cena
nasceu espontaneamente.
– Eldorado é o nome de uma cidade?
– Não, Eldorado é antes o mito latino-americano do ouro. Quando os
espanhóis chegaram na América, falavam de Eldorado. No filme Eldorado é
ao mesmo tempo o nome da Capital e do Estado, enquanto que Alecrim é o
nome de uma cidade, uma província do Estado de Eldorado. Isso poderá
criar algumas dificuldades de compreensão na Europa onde, contrariamente
à América Latina, não existem capitais com o mesmo nome do país.
Alecrim, sendo uma província portuguesa muito conhecida, trouxe também
problemas ao espectador brasileiro.
– Esse tipo de confusão, como essa
de Alecrim, por exemplo, torna-se grave, porque impede a compreensão de
uma coisa importante que é a construção do filme, que ela é clara. Você
não acha que no fim você mostra a situação de uma maneira direta demais,
porque você está tão empenhado, e isso impede a compreensão?
– O plano final é longo (um minuto), e ele perturba mesmo um pouco, mas
eu acho que depois de 40 segundos, as pessoas começam a compreender que
essas metralhadoras têm significado; eu insisti na duração. Quanto ao
desgosto do herói pelo carnaval, talvez seja muito vago, como palavra,
mas a política brasileira é verdadeiramente um carnaval. A civilização
brasileira é decadente. Nós somos realmente podres, estéreis e
preguiçosos, de grande incapacidade artesanal e duma energia irracional
que acaba, então, sempre no vazio. Tentei fazer com que o filme seja a
expressão deste carnaval e de meu nojo violento diante da situação.
– Paradoxalmente, a parte dedicada ao
imaginário é talvez maior em Terra
em Transe que em Deus e o
Diabo.
– Quando filmei Deus e o Diabo,
gostei muito da paisagem e da figura de Corisco também, e inclusive se
assumi uma atitude crítica, sentia-me ligado a estes personagens. Ao
contrário, como eu detestava todas as coisas apresentadas em
Terra em Transe, filmei com
certa repulsão. Lembro-me de que dizia ao montador: estou enojado porque
não acho que haja um único plano bonito neste filme. Todos os planos são
feios, porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre,
de um falso barroco, O roteiro me impedia de chegar à espécie de
fascinação plástica que se encontra em
Deus e o Diabo. Às vezes, pode
ser que eu tenha tentado escapar a este ambiente, mas o perigo consistia
em atribuir valores aos elementos alienados. O filme foi frequentemente
filmado com a câmara na mão, de modo flexível. Sente-se a pele dos
personagens, procurei um tom documentário. Tudo o que pode parecer
imaginário é de fato verdadeiro. Fui, por exemplo, consultar arquivos de
jornais para ver fotografias de políticos. Quando o Presidente
Kubitschek chega a Brasília, por exemplo, os índios lhe levam um cocar
de cacique etc. Quando filmei o comício onde o velho senador começa a
dançar com as pessoas, mandei vir uma verdadeira escola de samba e botei
Vieira no meio. Fizera a mesma coisa com
Deus e o Diabo, porque lá
também os camponeses pensavam que aquele que interpretava Sebastião era
um verdadeiro beato. Não tinha previsto a cena da dança do senador, mas
num determinado momento o ator se empolgou pela música e pelo discurso
político: ele começou a dançar e filmamos o conjunto com a câmara na
mão. Pablo Neruda já falava de «surrealismo concreto» por ser este
aspecto surreal um fato dentro da realidade da América Latina e do
Terceiro Mundo. Encontramos este surrealismo concreto em Asturias, Alejo
Carpentier ou Nicolau Guillén.
– E a canção
A praça é do povo como o céu é do condor?
– É um verso de um poeta romântico brasileiro
do século passado, Castro Alves, falecido aos 23 anos de tuberculose. É
muito popular. Lutou em prol da abolição da escravatura dos negros,
contra a monarquia, e em prol da República. Ele fazia comícios onde
improvisava a sua poesia e escreveu um poema intitulado “O povo no
poder”, ao qual pertence o verso encontrado em
Terra em Transe.
– E quanto a Martín Fierro ?
– Torre-Nilson está realizando um filme que é a epopeia de Martín
Fierro. É um poema épico revolucionário dos gaúchos da Argentina; e como
estava fazendo um filme num espírito latino-americano, achei bom colocar
uma citação de Martín Fierro. Vieira, líder populista, lê esta obra que
é um poema progressista.
– Você tem gosto pelos conflitos, entre a
chama e as explosões de violência em
Deus e o Diabo, entre a imagem e
um comentário que não está diretamente relacionado com ela em Terra
em Transe.
Você valoriza muito a montagem.
– Há poucos dias, um amigo brasileiro me
perguntou quando eu vou resolver contar uma história num filme. Caio
sempre num conflito e tento abrir um discurso crítico sobre a história.
O cinema político é uma discussão sobre estes fatos. E acho que a
montagem está ligada a esta acumulação de vários conflitos, ao mesmo
tempo subjetivos e objetivos. Gosto muito de Faulkner, porque há sempre
nele uma acumulação simultânea e progressiva dos conflitos. Por outro
lado, o meio social, os negros, a gente do Sul, isto poderia ser também
o Nordeste do Brasil, ou algum país da América Latina. Existe aliás um
romance de Faulkner que eu quero filmar, é
The Wild Palms.
– Disseram, em nossa opinião sem razão alguma,
que você é discípulo de Buñuel, quando pelo contrário, formalmente ao
menos, pensamos em Welles, em Terra
em Transe.
– Da mesma maneira pode-se fazer um filme de western ou de cangaço
tomando lições de Hawks ou de Ford mas invertendo o conteúdo e forma:
isto é a antropofagia estética.
– Há no seu filme uma impressão
muito grande de violência, mas você não a mostra. Vê-se o revólver na
boca do camponês e é tudo, ou então o suicídio de Álvaro é sugerido.
– Quando a violência é mostrada de forma descritiva, ela agrada ao
público, porque estimula seus instintos sadomasoquistas; mas o que eu
queria mostrar era a idéia da violência, e às vezes mesmo uma certa
frustração da violência. Devemos refletir sobre a violência e não fazer
um espetáculo com ela.
– Há aliás um detalhe interessante a propósito
de Terra em Transe: todo mundo
apresenta sempre os revólveres ou as armas com os braços estendidos.
– Sim, como a política brasileira, que é uma política onde ninguém atira
nunca; é um comentário irônico da situação.
– Por que há uma barreira
constante de polícia?
– É uma zona governamental, há um golpe de Estado, a presença dos
soldados é então normal. E aliás, o filme sendo em
flashback, vê-se no final que
durante a sua fuga Paulo cruza com diversos caminhões do Exército.
– Um detalhe dá à fuga de Paulo e
sobretudo ao fato que ele está ferido pela polícia um aspecto
imaginário: quando o policial atira nele, sua ação é fragmentada em
vários planos e isso dá a seus movimentos alguma coisa de mecânico e
irreal.
– Em um western ou em um filme
policial pode-se dar o movimento todo, faz-se um filme pelo prazer de
filmar esse gênero de coisa; mas em
Deus e o Diabo, quando Antônio das Mortes é apresentado pela
primeira vez, em ação, isto é, matando, eu fragmentei também essa cena,
pois o interessante não é a ação em si mesma, mas o seu caráter
simbólico.
– Paulo falando com Sara diz: “Eu
tenho fome de absoluto”, e ela responde: “A fome, a fome física”. Sara é
personagem que tem uma experiência mais direta e mais realista da
situação política, mas ao mesmo tempo ela fica com Vieira, o
mistificador.
– Ela é lúcida, mas é sempre comunista, sempre
fiel à linha do Partido. Quando Sara vem com seus dois amigos ver Paulo
para conseguir de uma vez sua adesão a Vieira, ele está consciente de
que uma união com Vieira não levará a nada de positivo, mas nesse
momento a sua consciência política sofre interferência existencial: como
ele ama Sara, liga-se a Vieira por causa dela. No fim Paulo é derrotado,
ela o deixa; é um personagem lúcido e político; ela continua a luta; é o
único caráter «coerente» de Terra em Transe.
– O personagem do Negro que marca os comícios
políticos é interessante; é como o cego do
Deus e o Diabo.
– É alguém que vai ser a memória dos acontecimentos, é também uma
referência ao cinema direto.
– Você utilizou Villa Lobos, Bach,
Verdi e também um músico brasileiro, Carlos Gomes, no seu último filme.
– Villa Lobos me influenciou muito, eu já disse. Carlos Gomes é
compositor de ópera brasileira do começo do século; ele inspirou-se
muito em Verdi, e é ainda muito apreciado. Nos programas da Rádio
Federal que se chama a Voz do
Brasil, quando o presidente vai falar, toca-se Carlos Gomes. Eu
utilizei sua música para as sequências com Diaz, quando ele passeia no
seu jardim, e quando há no filme uma intenção de paródia. De Verdi
coloquei Otelo, porque era uma discussão sobre os ciúmes e a amizade e
porque queria sublimar também um lado homossexual e solitário em Diaz.
– No texto em que
Positif
(n° 73) publicou “A Estética da Fome” você dizia que o Cinema Novo tinha
agora necessidade de fazer uma revisão dele mesmo. Em que ponto está
ele, no fim de 1967?
– Depois dos primeiros filmes do Cinema Novo, organizamos uma sociedade
de distribuição no Brasil, que os procura também colocar no mercado
internacional. Nós temos uma certa liberdade econômica, que nos permite
produzir nossos próprios filmes com toda independência. Paralelamente,
eu acho que há um certo desenvolvimento das ideias e também da técnica e
da expressão. O próximo filme de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo,
é bem mais ambicioso que Vidas
Secas; da mesma maneira Carlos Diegues, cujo
Os Herdeiros é mais político e mais ambicioso do que suas obras
anteriores; e também Walter Lima Jr., que filma
Brasil Ano 2000, e Joaquim Pedro com
Macunaíma, o mesmo para Hirszmann com a
Garota de Ipanema, para Gustavo Dahl com o
Bravo Guerreiro, para Paulo Gil Soares,
Proezas de Satanás, para Bressane com
Cara a Cara, e para Paulo César Sarraceni com
Capitu. Muitos filmes estão sendo feitos. O Cinema Novo viverá nos
anos de 68-69 seus momentos decisivos. Se quatro ou cinco filmes forem
do nível de Terra em Transe,
teremos realmente uma revolução no movimento e o Cinema Novo terá saída.
Senão o Cinema Novo passará por uma crise que não será definitiva, que
só acontecerá no caso de uma crise política, com censura total, etc...
Nós chegamos à conclusão de que sem uma certa liberdade econômica não
haverá liberdade artística, nem política, e é por isso que o Cinema Novo
não tem estética definida.
– Parece que o Cinema Novo vai, nesse momento,
do campo para a cidade. Seus três primeiros filmes importantes (Vidas
Secas, Deus e o Diabo e Os Fuzis)
eram sobre o Nordeste, e agora ele aprofunda os problemas da cidade, no
momento em que Guevara mostra que, ao contrário, ê preciso sair da
cidade e começar pelo campo.
– Os teóricos diziam que não se devia fazer filmes sobre o campo, porque
a política se faz na cidade. No Brasil se faz na cidade e no deserto, em
toda parte. No filme de Walter Lima Jr. ela não se faz nem na cidade,
nem no campo, mas no ano 2000, é uma espécie de
science fiction político. Nelson Pereira dos Santos vai filmá-la
entre os índios. É história de antropofagia com um título muito
engraçado em francês: "Comme il était bon mon petit Français». Ele se
utilizou da narração de um jovem soldado francês que, durante as
invasões francesas no Brasil, foi preso pelos índios; ele lhes ensina o
francês e também a técnica de guerra. Ele recebe uma mulher de presente,
depois os índios antropófagos querem comê-lo, porque o respeitam. Nelson
quer fazer um comentário sobre as relações entre colonizadores e
colonizados e sobre intercâmbios culturais. É muito interessante, porque
se a antropofagia não existe mais no Brasil como tal, há um espírito
filosófico que se chama antropofágico.
Entrevista de Glauber Rocha à revista
Positif, publicada no livro
Revolução do Cinema Novo. Rio:
Alhambra/Embrafilme, 1981. |