Espoir
de Malraux: Palavra e imagem, realidade e representação no teatro de operações1 Poucas vezes na história do cinema, as condições
para a realização de um filme se tornaram tão dramáticas quanto as
imagens mostradas na tela. Encarregado de produzir uma arma de propaganda
para o governo republicano da Espanha – que não contava com o amparo dos
governos da França e da Inglaterra e estava sendo obrigado a se
defrontar com a rebelião fascista de Franco, apoiada militarmente por
Mussolini e Hitler − André Malraux concebeu um plano engenhoso. Sua estratégia consistia em filmar as ações dos combatentes republicanos nos próprios locais onde havia se desenrolado a ação, o que contribuiu em larga medida para assegurar a sua autenticidade. Seu projeto foi tão convincente que os espectadores iniciais do filme eram persuadidos de que o que viam na tela havia acontecido realmente e tinha sido filmado de forma clandestina por um operador camuflado na cena.
Malraux e Max Aub em Montserrat. Participante da guerra civil espanhola de 1936-1939, Malraux desembarcou na capital espanhola já conflagrada, em 20 de julho de 1936, dois dias após o início da rebelião falangista, a bordo do último avião regular da linha de passageiros Paris-Madri.
O que viu se tornou uma fonte de inspiração para a criação de seu
romance épico
L’Espoir
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um relato cronológico sobre a luta dos combatentes republicanos, que
começa em 18 de agosto de 1936 e conclui em junho de 1937. Confrontado
por obstáculos econômicos e técnicos, como a carência de material virgem
para a filmagem e até mesmo a falta de produtos de maquiagem dos atores
e sabonete, Malraux limitou a ação do filme – rodado de julho de 1938 a
janeiro de 1939 − a apenas 48 horas do ano de 1938. O compromisso
assumido com seus produtores e o governo legítimo do país exigia mostrar
a Espanha republicana após dois anos de guerra civil. Malraux, que comandou durante algum tempo a
esquadrilha España durante a guerra civil, afirma que quando decidiu fazer um
filme sobre o conflito na Espanha, não considerou que
L’Espoir – ou um episódio da obra – deveria lhe fornecer um cenário.
Como observador e ao mesmo tempo protagonista do conflito, sua obra lhe
permitiu exprimir suas ideias acerca do mundo ao mesmo tempo em que
colocava em risco a sua própria vida para seguir suas convicções. Madri se encontrava então sob forte ataque das
tropas falangistas de Francisco Franco, que lançavam bombas incendiárias
sobre hospitais, residências, bares e prédios públicos da cidade,
especialmente aqueles situados em áreas pobres, produzindo 150 mil áreas
abandonadas e um milhão de desabrigados. Nenhum dos locais atingidos
poderia ser considerado um objetivo militar.
O fotógrafo Louis Page, Malraux, Reiguera e um ator filmando nos estúdios de Montjuich, em Barcelona.
O voluntário Attingnies (Julio Peña), filho de um
membro de outro governo fascista e o comandante Peña (José Sempere). Em meio à enorme dificuldade para a
concretização das filmagens e a obtenção de aviões e tanques para as
cenas de combate, as tomadas do campo de aviação, por exemplo, foram
realizadas entre dois bombardeios. Romancista notável e também autor de um
fascinante Esboço de uma
psicologia do cinema, Malraux acredita que a função da 7ª Arte não é
representar a natureza, como uma máquina destinada a reproduzir a vida,
mas a criação de uma linguagem particular. Inicialmente identificado com
o teatro filmado, o cinema necessitou primeiramente romper o espaço
físico a que estava confinado e criar a sua própria realidade, o que
veio a acontecer com a integração da imagem e do som. Neste sentido, seu
objetivo consiste em ir além do romance, já que – como a imagem tem um
grande poder de persuasão – o diálogo possui a capacidade de criar todo
um universo imaginário. Resta ainda ao cinema um grande desafio: a
reprodução do “diálogo interior”, uma das características mais avançadas
do romance moderno. Para o romancista e cineasta, o primeiro plano
não possibilita o conhecimento do rosto: ele o transforma. Do mesmo
modo, a câmera não assume o lugar de uma testemunha invisível e
privilegiada: a montagem introduz uma continuidade ou sugere
correspondências que não existiam no espaço da cena. Convencido de que os filmes não registram
eventos produzidos, Malraux procura romper a tênue linha divisória entre
o documentário e a ficção e evita apresentar seus personagens como
heróis ou super-homens. Embora tome claramente um partido, a causa
republicana, o filme não se preocupa em retratar o adversário de forma
maniqueísta e ao longo de todo o trabalho somente se vê a silhueta de um
único fascista. Envolvido na criação de um universo altamente
dramático, com o fim de sensibilizar as plateias de todo o mundo para os
acontecimentos da guerra civil espanhola, Malraux buscou dotar as
imagens de seu filme de uma atmosfera intensamente realista, que pode
ser observada de maneira especial nas sequências com os aviões.
Paradoxalmente, algumas destas cenas foram muitas vezes rodadas em
estúdio, o que não lhes retirou em absoluto a verossimilhança e a carga
emocional. Partindo do princípio de que o cinema não
reproduz a realidade mas deve criar o seu próprio universo, o filme não
filmou necessariamente as sequências nos locais onde os fatos ocorreram
mas se preocupou em fornecer um suplemento de realidade necessário para
envolver o espectador e levá-lo a compreender a importância da luta
republicana contra as falanges fascistas de Franco, apoiadas por Hitler
e Mussolini. De outra parte, a transposição do romance
demandou em alguns casos a simplificação das sequências, como no
episódio do canhão, que provavelmente ganhou em densidade com a
filmagem. A comparação entre a narrativa do romance e o roteiro
cinematográfico mostra que o cineasta não se sentiu inclinado a ilustrar
os episódios de seu livro e a apenas buscar equivalentes visuais para as
palavras que escreveu.
O ataque ao canhão. Denis Marion, que também colaborou com Malraux
no roteiro e foi um de seus assistentes, aponta inúmeras diferenças
entre o romance e o tratamento literário, que foi chamado inicialmente
de Sang de Gauche (Sangue de
Esquerda), título da terceira parte da novela. Marion considera que a
ação foi simplificada no roteiro, uma vez que o ataque ao canhão foi
reduzido de três tentativas a apenas uma ação bem-sucedida. De outra
parte, acredita que o roteiro possui uma continuidade muito mais sólida
porque não abandona os personagens – como ocorre no romance – e os
acompanha desde a descoberta do canhão até o seu ataque final à arma. A mudança de locação da larga avenida de
Barcelona à rua estreita de
Tarragona impôs também uma alteração na decupagem. Algumas referências
verbais ao cinema expressas no romance foram eliminadas assim como
vários detalhes visuais, tanto pela impossibilidade de realizá-los
quanto pelo efeito excessivamente retórico que outros trariam. No
entanto, a participação do cachorro no assento de trás do carro foi
mantida a despeito das inúmeras dificuldades para a sua realização. A Espanha dos anos 1930 reunia todas as
condições objetivas para a eclosão de um processo revolucionário. Entre
seus 21 milhões de habitantes, 12 milhões eram analfabetos. Oito milhões
de cidadãos do país viviam na pobreza e dois milhões de camponeses não
possuíam nenhuma terra. Vinte mil pessoas detinham metade de todos os
bens do país e províncias inteiras pertenciam a uma única pessoa. Um
trabalhador ganhava em média 3 pesetas por dia e um pão custava 2
pesetas. Admirador do expressionismo alemão e do cinema soviético, Malraux tinha consciência de que se a nova arte se destinava às massas ela deveria também integrá-las à sua narrativa. Daí a significativa participação de membros da população nas filmagens desempenhando os papeis que exerciam na vida real e as admiráveis imagens, formando a letra Z, da multidão descendo a montanha com os feridos resgatados após a queda do avião.
Uma arte para as massas deve também integrá-las como protagonistas da
história. Como um contraponto a um clero muito conservador composto por 31 mil padres, 60 mil freiras e cinco mil conventos, o diretor cria a imagem de um Cristo ferido sendo retirado da montanha e levado nos braços do povo para confrontá-lo com o Cristo-Rei, pomposo e autoritário, fabricado pelos fascistas de Franco.
O Cristo ferido do povo em contraposição ao pomposo Cristo-Rei dos fascistas. As últimas tomadas foram feitas com as tropas de
Franco já nos arredores de Barcelona. A falta de condições adequadas e a
chegada das forças inimigas impôs então a suspensão das filmagens, com o
equipamento e parte de um avião sendo transferidos para Figueras, mas
novos bombardeios obrigaram a retirada de toda a equipe para o
território francês, na fronteira com a Espanha, onde algumas cenas de
conclusão foram rodadas. No entanto, ainda ficaram faltando 50% das
sequências escritas no roteiro, que não puderam ser encenadas. A montagem final, intitulada por Malraux como
Sierra de Teruel, foi exibida
em avant-première aos membros do governo no exílio que se encontravam em
Paris e o seu lançamento marcado para setembro de 1939.
Com a eclosão da guerra, estabeleceu-se que todos os filmes deveriam
receber um certificado da censura pra serem projetados. O governo
francês estimou que se deveria evitar fornecer a Franco mais um pretexto
para manifestar a sua hostilidade e não concedeu o visto a
Sierra de Teruel. Durante a ocupação, os alemães encontraram então
uma oportunidade para se apoderar do negativo e de todas as cópias do
filme, com o objetivo de destruir o material. No entanto, um acidente no
arquivamento da película – cujo contratipo foi colocado nas latas que
deveriam conter os negativos de
Drôle de drame, de Marcel
Carné – impediu que o filme se perdesse: até hoje não se sabe ao certo
se este fato se deve a uma ação deliberada do arquivista ou foi
decorrente de um engano. Com o final da guerra, uma empresa se dispôs a
distribuir a obra mas encontrou muita indiferença e alguma hostilidade
dos exibidores, mais voltados para produtos exclusivamente comerciais.
Para vencer esta relutância, o distribuidor decidiu alterar o título do
filme de Sierra de Teruel
para Espoir, com o propósito
de se beneficiar do prestigio do romance; pedir a Maurice Schumann,
porta-voz da França Combatente,
uma apresentação que relacionasse a luta dos republicanos espanhóis com
a resistência francesa à invasão nazista; encarregar Denis Marion de
refazer os intertítulos para expor de forma mais clara a legitimidade
dos republicanos e dos voluntários estrangeiros em sua resistência ao
fascismo e, finalmente, retirar alguns planos repetidos da sequência
final por considerar que o público não compreenderia a linguagem mais
avançada proposta por Malraux. Lançado em 1945, o filme foi bem acolhido pela
crítica e recebeu o Prêmio Louis-Delluc.
Embora Jean Mitry e Georges Sadoul não tenham
apreciado a obra, importantes críticos e intelectuais como Aragon, André
Bazin, René Jeanne, André Gide, Claude Mauriac, Jacques Siclier e Jean
de Baroncelli, entre outros, salientaram o seu grande valor. Apesar de inacabado,
Espoir ocupa um lugar único
na história do cinema. Em comentário publicado no
Figaro littéraire de 4 de
dezembro de 1948, Claude Mauriac lembra a sua condição de filme mutilado
mas observa que “acontece com frequência , na história da arte, que os
fragmentos de uma obra destruída dão uma tal ideia de beleza que esta é
percebida mesmo apesar da mutilação”.
Para Jean de Baroncelli (Le Monde,
6 de março de 1970), “encontra-se em
Espoir um lirismo, um ritmo
grave e puro que lembram o cinema russo da grande época, ao lado de
sequências tratadas em um estilo realista e direto que anunciam o
Rossellini de Roma, cidade
aberta”.
Analisando a estrutura formal de
Espoir, em crítica que lhe valeu uma amável resposta de Malraux,
André Bazin (Poésie,
agosto-setembro de 1945), depois de considerar que o diretor do filme é
o escritor contemporâneo que melhor falou do cinema, comenta que “o
filme de Malraux permanece muito literário, não pela abundância ou o tom
dos diálogos e nem mesmo pelo roteiro ou a psicologia dos personagens,
mas paradoxalmente no que ele deveria ter de mais cinematográfico: o
emprego de uma elipse4
visual para a qual ele conserva em realidade a estrutura
intelectual da elipse literária”. Denis Marion conta que ao rever o seu filme em
1969, pela primeira vez desde 1939, Malraux não reconheceu a sua
montagem original da sequência de encerramento, pontuada muito de perto
pela música de Darius Milhaud. Assim,
Espoir se junta à linhagem de
outras grandes obras da história do cinema como
Greed, de Erich von Stroheim,
Que viva Mexico! de S.M.
Eisenstein e
It’s all true de Orson
Welles, irreparavelmente frustradas em seu anseio de completude mas sem
serem diminuídas em sua grandeza.
O governo republicano não conseguiu alcançar a vitória: de outra parte,
o almejado apoio dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra tampouco
chegou. Na noite da
assinatura do pacto germano-soviético, em 1939, Malraux diria a Max Aub5,
tradutor do roteiro para o espanhol e um de seus mais preciosos
colaboradores, que a contradição de lutar contra um inimigo e vê-lo
associado a um governo que deveria apoiar os milhares de voluntários que
batalhavam pela causa republicana inviabilizava as possibilidades de
sucesso: ─ La
revolución a este precio, no, reiterou. Em outro comentário, Malraux também afirmou: ─ Este filme deveria se chamar Canto fúnebre pelos mortos da guerra da Espanha.
1 A expressão teatro de operações designa a área física em que se concentram as forças militares. as fortificações e as trincheiras onde se travam as principais batalhas. No contexto de uma guerra, poderão existir várias frentes de combate (os teatros de operações), que impõem características e circunstâncias ambientais próprias, obrigando à adequação dos meios disponíveis. 2 MALRAUX, André. L’Espoir. In: Romans. Paris: Gallimard, 1964. 3 MARION, Denis. Le cinéma selon André Malraux. Paris: Éditions Seghers, 1997.
4
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MALRAUX, André. Sierra de
Teruel. Tradução: Max Aub. México: Ediciones Era, 1968.
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