Eduardo Coutinho, roteirista:

“Para mim é mais fácil destruir do que construir”

 

   Entrevista a Sérvulo Siqueira

 

Sérvulo Siqueira – Você começou escrevendo roteiro ou já era basicamente um jornalista, como é hoje?

Eduardo Coutinho – O que eu queria em cinema era dirigir, nunca pensei em fazer roteiro especificamente, mas eu já tinha também a formação de jornalista.

SAS – Como foi que surgiu a sua ligação com o Leon Hirszman para fazer A Falecida?

EC – Eu já tinha trabalhado com o Leon no CPC, em Cinco Vezes Favela. Nós já tínhamos uma amizade desde 1961. Na verdade, o projeto da Falecida nasceu de um projeto em que o Nelson Rodrigues chamou o Glauber para dirigir. Era o Senhora dos Afogados. E o Glauber, como sempre, nunca fez filme que não fosse escrito por ele mesmo. Afinal, ele decidiu entregar o projeto, indicando o Leon. Daí o Leon passou para este projeto e, logo no começo, conversou comigo. Eu sugeri que, em vez do Senhora dos Afogados, ele fizesse A Falecida. O Leon propôs isso ao Nelson, que topou a idéia. O que o Nelson queria era que se filmasse qualquer obra dele. Eu então fiquei integrado ao projeto – economicamente não valeu a pena, porque eu acabei recebendo um dinheiro miserável – o roteiro para os produtores era um dado desprezível, bastava a peça. Mas de todos os filmes que eu escrevi é o que me dá mais prazer até hoje. Inclusive, no nível da linguagem mesmo, eu creio que ajudei o Leon a sair do "eisensteinianismo" de Pedreira de São Diogo, a sair das coisas do seu primeiro filme e passar para o plano longo, a trabalhar com a duração. E ele fez isso admiravelmente, eu acho que o filme é bom. O roteiro tinha inclusive a indicação de todos os planos – essa coisa de PA, PC, PP, etc. – o que é um absurdo, porque naquela época a CAIC, que era a financiadora, exigia isso. Então, eu – sem cenário, sem os atores escolhidos – ia botando o que aparecia na minha cabeça, quase aleatoriamente. Felizmente, o Leon não respeitou na da disso, graças a Deus. Tinha uma cena com a cartomante que tinha – ela só – vários planos. O Leon acabou encontrando um lugar minúsculo, em que havia numa peça só o quarto, a cozinha, sala, e filmou tudo em somente um ou dois planos. Essa ruptura com o estilo do Pedreira de São Diogo estava tão dentro do Leon, que ele parece que levou aquilo ao máximo. Era um filme em que a montagem não era o mais importante, ao contrário do primeiro filme dele. O principal realmente era um ator no espaço.

SAS – Como é que você encara a ligação do Cinema Novo com o Nelson Rodrigues, que é um autor basicamente moralista e de posições políticas conservadoras? As posições não pareciam muito antagônicas?

EC – Isso tudo é porque houve o golpe de 64, antes. Não havia uma inimizade, o que havia era uma distância. Antes de 64, a esquerda não filmaria Nelson Rodrigues, tá? O que era de certa forma um preconceito. E havia também um preconceito por parte do Nelson.

SAS - Mas filmou. Boca de Ouro, por exemplo, foi feito antes de 64.

EC – Mas isso não contradiz o que eu falei, porque o Nelson era da geração anterior – e já tinha feito o seu serviço militar, aliás em condições difíceis. Daí ele tinha uma certa autonomia de vôo. A esquerda, principalmente aquela jovem que estava fazendo o Cinema Novo – a ligada ao CPC – jamais iria fazer um filme desses. A não ligada ao CPC também não iria fazer. Então, após 64, houve uma aproximação tanto da esquerda, que entendeu que o buraco era mais em baixo, quanto do Nelson, que sentia que a vitalidade cultural e a consagração vinham da esquerda.

Houve então uma perda de preconceito. Muitos achavam que iam tomar o poder e houve o golpe. Então se achava que essa realidade incluía o Nelson Rodrigues. Eu continuo achando o Nelson Rodrigues um intelectual reacionário e um grande autor. O que não é tão contraditório: contraditório seria se ele fosse conservador. Afinal, o reacionário também odeia a vida presente. Logo depois da Falecida, eu fiz um primeiro tratamento – com papel assinado e tudo – do Engraçadinha depois dos 30 – que eu achava que podia dar um filme engraçado. E afinal não fiz o filme – cheguei até a processar o Nelson mas ficou tudo por isso mesmo – porque ele acabou dando o filme para o Herbert Richers fazer. Mas na época eu faria com muito prazer.

SAS– E aí surge a experiência do Garota de Ipanema.

EC – O Garota de Ipanema foi a experiência mais infeliz da minha vida em roteiro e em cinema em geral. O filme era um argumento original, o Leon não sabia como fazer o que queria, e não soube até o final. Eu – que não queria fazer o filme – muito menos. O filme tinha que ter uma história, e esse é que era o drama. O Glauber chegou a fazer um primeiro tratamento em uma noite, eu tenho até hoje esse documento. Era um esboço de argumento, curto, umas 30 páginas mas tinha um filme inteiro dentro. Tinha umas cenas na praia, umas coisas loucas e incríveis, que eram a visão dele de uma garota de Ipanema. O Leon chegou a pedir para ele. Pouca gente sabe que numa das cenas que foram filmadas o texto básico é o do Glauber. Porque era uma loucura, ninguém sabia o que iria fazer. A grande preocupação do Leon naquela época era achar a chave da dramaturgia, a dramaturgia do contato popular, etc. A gente não sabia nada disso do ponto de vista teórico nem prático. E por que ele não encontrou? Não encontrou porque afinal de contas o problema não era nem esse, ou seja, os problemas graves que ele possa ter com a dramaturgia. O problema principal  era que nem eu nem o Leon tínhamos nada a ver com o filme. Então, é o que eu sempre digo: que o filme devia se chamar “A Garota Esquizofrênica”. É um filme esquizofrênico, na minha opinião.

SAS – Depois desta experiência, que não pode ser chamada de a mais feliz, como é que você digeriu isto tudo?

EC – Eu não digeri nada. A Falecida eu queria fazer, e depois fiz a Garota de Ipanema, que eu não queria fazer. Depois da Garota de Ipanema, eu só vim a fazer roteiro quando abandonei o cinema como meio de vida e fui trabalhar em jornal. Aí vieram Os Condenados, Lição de Amor e, por fim, Dona Flor. O fato de eu fazer esses roteiros não mudava nada, salvo se eu resolvesse que ia ser roteirista. Mas o meu desafio era outro, que na minha opinião eu só resolvi quando decidi fazer esse filme que eu estou terminando agora.

SAS – Como é que foi que surgiu o trabalho para escrever Dona Flor?

EC – O Bruno foi à minha casa e me chamou. Eu não o conhecia pessoalmente, só de vista. Eu estava trabalhando no jornal e ele me chamou. Eu lhe expliquei que estava trabalhando e que não conhecia nada da Bahia de Jorge Amado. Ele me explicou que não queria fazer um filme regionalista, queria fazer um filme universalista e insistiu para que eu o fizesse. Então eu pedi um preço que na época era razoável, eram 15 mil cruzeiros, e ele topou. Aí ficou a discussão de quem chamar, ou de não chamar ninguém. Fui eu quem pediu para chamar um outro roteirista. Eu acho ótimo trabalhar com mais alguém, detesto trabalhar sozinho; ainda mais num filme industrial. Nós chamamos o Leopoldo Serran, que já tinha trabalhado com ele antes. O Leopoldo aceitou e a gente passou a se reunir na casa dele, com a intervenção do Bruno apenas para discutir problemas e soluções. Depois de feita a estruturação geral e a discussão de cena por cena, a gente dividiu o trabalho e cada um escreveu uma parte.

Foi um trabalho sem tortura e isto é que foi agradável. Foi um negócio que era para ser um trabalho comercial, mas na verdade parece que ficou engraçado. Nós queríamos fazer um filme que agradasse ao público e deu certo. Embora eu mesmo quando vi o filme não sei se achei bom. Eu vi a primeira vez eu achei meio chatão, sabe? Quando vi de novo, com o público, eu achei melhor. Mas não sei julgá-lo.

SAS – O que é que você acha que passa no filme? É a fábula, a história?

EC – Tem algumas coisinhas de baiano que são boas, mas o fundamental mesmo é o negócio da mulher com dois caras, não é? É a história ideal neste sentido: o triângulo, cada um satisfazendo uma parte da mulher, sendo que uma delas é um fantasma. E aí está toda a comicidade e a projeção do público! Esta é a grande descoberta do livro, que o filme traz de qualquer maneira. A razão principal de ele ter feito sucesso é essa. Há pequenos detalhes de exotismo, uma estrutura dramática competente, um elenco muito bom, além da direção e da produção. E a Sonia Braga.

SAS – E como foi o nível de participação do Jorge Amado?

EC – Eu não lembro muito bem, lembro que numa hora ele falou que tinha um palavrão e queria mudar. Ele foi muito afável. Eu me lembro que a cena mais complicada que havia, na minha opinião, era o lance que no livro já era discutível, em que se resolve o problema do Vadinho. É uma espécie de mágica, uma promessa que ele faz e ele vai sumindo. E isso é uma tragédia. Daí uma espécie de convocação dos orixás – um negócio inteiramente mágico no livro – em que o Vadinho volta. E a gente não sabia como resolver isso. Nós então botamos a cena que se passa em um terreiro de candomblé e a força da ficção é tão extraordinária que,apesar de eu achar que isto não resolvia dramaturgicamente a questão, mas parece que quando um filme corre bem isto passa, o público acredita em tudo. Era o problema da passagem do livro para o roteiro, já que no livro apareciam até os orixás voando. A cena era necessária, porque resolvia a volta do Vadinho.

O fato é que não tenho equipamento teórico, no nível da dramaturgia, nem imaginação para escrever roteiros. Para mim é mais fácil destruir que construir. Eu gostaria que a prática do roteiro incluísse esses dois movimentos – e os alicerces à mostra. Questão de ilusão.

SAS – Como foi o seu trabalho nos outros filmes: Lição de Amor e Os Condenados?

EC – A minha colaboração nestes dois filmes foi muito mais a de um ouvinte crítico, quer aliás é o que eu desconfio que faço melhor.

SAS – Você recusou muitas propostas para trabalhar em roteiro?

EC – Recusei muitas. Mas eu sempre explico ao diretor ou ao produtor que não é que eu odeie, eu posso vir a precisar no futuro, mas que no momento eu estou sobrecarregado de trabalho, como na verdade eu tenho estado nos últimos tempos. De 1979 para cá era o meu filme que interessava. Na verdade, o que acontece é que desde que eu comecei a me envolver na realização de documentários, principalmente deste que eu estou fazendo agora, eu perdi um pouco a confiança na ficção pura. Não que eu não goste de ver, mas simplesmente eu não tenho mais confiança na utilidade disto que eu estou escrevendo.

SAS – Existe um filme que você tenha escrito mas não tenha dirigido, e que você considere que tenha dado uma contribuição mais pessoal e criativa.

EC – Eu nunca fiz uma coisa tão criativa em roteiro que eu possa considerar muito pessoal. Só na Falecida que eu acho que tive uma contribuição mais decisiva no filme. Quando eu vejo a coisa feita   e dá certo, eu sinto uma certa vaidade, mas nunca chegou a ser aquela coisa do cara que vive daquilo, que os roteiristas profissionais devem ter. Mas no meu caso nunca houve um empenho que fosse absoluto, e não ser este exemplo da Falecida.

SAS – Você me havia dito que no caso de Dona Flor vocês dividiram as cenas para efeito de trabalho. Isto não se traduziu numa descontinuidade de estilo?

EC – Pois é, engraçado, eu não sei. Imagino que para o filme funcionar, como aconteceu, isto não pode ter ocorrido, não é? Isto deveria ter acontecido mas por incrível que pareça, parece que não. O interessante no trabalho a dois e o mais difícil de ocorrer, é o sujeito aceitar que o outro critique. Ter o espírito para aceitar que o outro não goste do seu trabalho. Isto é difícil mas é um treinamento bom.

SAS – O fato de ser uma obra de outro, de não ser uma idéia original sua ou do Leopoldo, você acha que contribuiu ou prejudicou?

EC – Não sei, no caso eu acho que facilitou, porque se você fosse começar desde a concepção você iria discutir a política da história, “é machista ou não é?”, etc.

SAS – Existe alguma coisa que você tenha aprendido com tudo isto e que você poderia passar como uma norma geral?

EC – Só mesmo o fato de que se fosse para adaptar – na verdade eu não gostaria de adaptar mais nada – mas se fosse necessário eu gostaria de escolher alguma coisa muito ruim. Um autor best-seller ou algum escritor desconhecido. Mas de livro bom eu só quero distância. Muitas vezes não se tem que inventar nada, esta é que é a verdade. Na Falecida, por exemplo, um dos elementos míticos do filme era o Ademir, que não foi igual ao Pelé mas que na época resumia o mito do grande jogador. Isto tinha no filme, tanto que no começo está escrito... “No tempo em que Ademir era o Pelé.” Então o Ademir, junto com a morte, era uma presença mágica no filme. Daí porque no roteiro nós botamos o Ademir. Mas a cena não entrou na montagem, porque no momento em que mostra um mito você destrói a magia da coisa, mesmo que ali estivesse o Ademir em plena forma: é muito mais forte o Ademir falado do que o Ademir mostrado. Por isso, nas adaptações, essa história de aerar, mostrar a cena sugerida na fala, não passa muitas vezes de bobagem.

SAS – Como foi o seu contato com o Nelson Rodrigues, na Falecida?

EC – Ele falava aquelas coisas dele, cheias de humor e tristes. Uma vez eu me lembro que ele falou que era preciso não ter medo do lugar comum: da tempestade, do amor na cachoeira. Mas não chegou a haver um contato profundo que permitisse conhecer melhor o trabalho dele. Nem dele, nem com o Jorge houve uma aproximação maior. E os outros autores já estavam mortos.