Antonio Calmon fala de O Bom Marido:

"As pornochanchadas são conformistas e meus filmes corrosivos"

Um dos mais prolíficos diretores do cinema brasileiro atualmente, Antonio Calmon tem prontos dois filmes e um em fase de acabamento. De "O bom marido", recentemente concluído, Calmon diz que "é uma metáfora do país diante das multinacionais". Produzido pela Sincrocine, o filme foi rodado em menos de um mês e ao mesmo tempo em que o cineasta dirigia um outro, que ele define como "a historia trágica de um surfista da Zona Norte que se apaixona por uma cocotinha de Ipanema ". Para Calmon tanta atividade é parte de uma estratégia que ele considera "o exercício de um aprendizado onde eu estou procurando inventar um novo tipo de comédia ". No momento em que prepara o lançamento de "O bom marido", previsto para agosto, filme interpretado por Paulo César Peréio, Maria Lúcia Dahl, Sandra Pera, Nuno Leal Mala e Helber Rangel, Calmon aproveita para falar sobre o chamado "boom" do cinema brasileiro e suas perspectivas para o futuro.

Você é um cineasta que participou do Cinema Novo e também do surgimento do "udigrudi". Enquanto tudo indicava que seguiria um caminho, você enveredou por outro, partindo para fazer cinema pornô. O que o levou a fazer isso?

– Dois esclarecimentos: em primeiro lugar nunca fui coroinha, nem escoteiro, nem membro de partido. Sempre me considerei um "loner", um solitário com uma perspectiva de trabalho inteiramente pessoal. O fato de me ter formado como profissional dentro do Cinema Novo ou o fato de ser contemporâneo dos jovens diretores que fizeram o "underground" à brasileira nunca implicou em compromisso com uma escola ou programa. Acho que a maior parte dos movimentos artísticos se resumem em algumas poucas pessoas de talento cercadas de medíocres que se aproveitam da existência de uma bandeira comum ou de uma ideologia para faturar. Meus filmes sempre foram filmes de exceção e não se enquadram nesta ou naquela categoria porque são produtos originais. E por isso mesmo é necessário fazer um segundo esclarecimento: é muito mais fácil simplesmente me colocar como um realizador de filmes pornô ou, sejamos diretos, de pornochanchadas, do que reconhecer a incapacidade de crítica diante do novo. As pornochanchadas sempre foram conformistas e meus filmes são corrosivos. As pornochanchadas são moralistas enquanto que meus filmes são totalmente amorais. As pornochanchadas odeiam o sexo e a mulher, duas das referências mais importantes do meu cinema. A pornochanchada, finalmente, é sintoma de um estágio primitivo da sexualidade, o que não é exatamente o meu caso. O fato de um autor se apropriar culturalmente de um fenômeno de massas não é a mesma coisa do que fabricar cegamente um produto para ganhar o mercado. Eu não conseguiria fazer uma pornochanchada "pura" mesmo que quisesse. Acredito que o artista, independente de um programa ou de justificativas intelectuais, sempre reflete em seu trabalho o próprio mundo interior e a interação deste mundo com a realidade social. Sei que faço um cinema agressivo e irreverente, que não me apoio na chamada respeitabilidade artística tão importante em nossa província cultural e que nem me guardo num vanguardismo que pode ser fascinante aqui, mas é ridículo nas matrizes de Nova York e Paris. Meus filmes são sujos e ásperos como o país e não uma transposição emasculada e "artística" da realidade.

Os sucessos de bilheteria de "Lúcio Flávio" e "A dama do lotação" estabeleceram uma mudança radical no panorama do cinema brasileiro. Você como vê a situação atual do nosso cinema?

Houve uma mudança sim, mas não sei até que ponto essa mudança é radical. O cinema brasileiro provou que pode fazer sucessos de bilheteria e isto é o coroamento de um processo iniciado anos atrás. Já houve outros sucessos, não tão grandes, mas estes não são os primeiros. A mudança para a qual esperamos caminhar é mais ambiciosa: o cinema nacional deixando de ser uma curiosidade que dá dinheiro e passando a se integrar mais profundamente com o público. Ou seja, a instauração do ritual de se ir a cinemas brasileiros para ver filmes brasileiros, e não catástrofes americanas, abstrações européias ou a última encucação de Woody Allen. Já está demonstrado que filmes ligados à discussão aberta do momento social ("Lúcio Flávio"), aos mitos sexuais dos brasileiros ("Toda nudez será castigada", "Dona Flor", "A dama do lotação") ou ao espetáculo histórico não oficialesco ("Xica da Silva") atraem o público. Resta saber quando ir ver um filme nosso vai deixar de ser um fenômeno de moda passageira para passar a fazer parte do cotidiano das pessoas. Para isso é fundamental a existência de um sentimento nacional diferente. Hoje o brasileiro está começando a se interessar por sua própria realidade e a procurar respostas na música, no teatro e no cinema. Um cinema vivo como fenômeno social é aquele onde o público pode ver refletida a sua própria imagem. E aí entra o segundo fator importante; a consciência do artista. Consciência critica há, sempre houve, e é uma característica do nosso cinema. A veiculação dessa consciência sempre foi dificultada pela censura. Mas não foi apenas a censura que dificultou a discussão do fato social brasileiro nas telas. Se fizermos hoje uma análise desapaixonada dos filmes ditos críticos de nossa cinematografia veremos que, independentemente da sua qualidade artística, eles eram mais uma tentativa do autor de tentar entender o país do que de discuti-lo com a platéia. Com o amadurecimento de toda uma geração pelo menos alguns passaram a entendê-lo e a querer dividir essa consciência com o público. Paralelamente à importância de "Lúcio Flávio" e "A dama do lotação" como fenômenos de bilheteria, existe um fenômeno tão ou mais importante como o surgimento de "Chuvas de verão", de Carlos Diegues, ou "Tudo bem", de Arnaldo Jabor. Mesmo que esses dois filmes não se equivalham aos grandes sucessos de bilheteria, eles certamente falarão à sensibilidade de uma boa parcela do público. Neles a visão crítica é realizada sem rancor nem culpa, sem pedantismos de estilo ou maneirismos de câmara, sem aquele tom "artístico" que tornava tantos filmes insuportáveis. Pelo contrário, é pela irresistível brasilidade, pela sinceridade, pela saúde, pelo humor e pela generosidade para com o público que esses dois filmes marcam a verdadeira mudança radical de nosso cinema.

De que maneira o chamado "boom" da indústria cinematográfica brasileira teria atingido diretores, atures e técnicos que, no momento, não estão participando do processo?

Eu coloco o "boom" da indústria cinematográfica muito entre aspas. É muito cedo ainda para analisar um fenômeno que pode ser passageiro ou duradouro. Para cinco filmes que fizeram sucesso (e que foram lançados com grandes investimentos promocionais) existem pelo menos uns 50 sem possibilidade de colocação no mercado. Uma das razões é a persistência de uma odiosa política da Embrafilme de valorizar somente um determinado filme e ignorar dezenas de outros. Ao mesmo tempo é evidente que o mercado não aceita mais.produtos amadores ou picaretagens culturais de "oposição ao sistema!'. Nem está aceitando mais a pornochanchada, que está com os dias contados. Um cinema em mudança como o nosso exige que os diretores tenham consciência dessa mudança. Muitos diretores continuam desempregados, sim, parte pelos próprios vícios do sistema de produção e parte pela dificuldade de adequação à mudança. O resultado disso é uma competição mesquinha, um ambiente de fofoca, uma rivalidade cega. Se o "boom" realmente se concretizar e houver abertura para todos, o emprego ou desemprego variarão tendo como critérios o talento e a habilidade profissional de cada um.

A pornochanchada, que alguns críticos afirmam que você pratica, não é uma fuga da realidade?

A pornochanchada não é uma fuga da realidade, ela é uma realidade. Fuga da realidade é a excessiva preocupação desses diversos críticos com a discussão de problemas estrangeiros em filmes estrangeiros. Isso vale tanto para "Star wars" quanto para o último Fassbinder. Fuga da realidade, isto é alienação, é não assumir determinados comportamentos de nossa cultura e procurar imitar o fidalgo europeu ou o capitalista ianque. É ignorar a função social da pornochanchada, é não procurar saber porque ela existe e para quê. É não procurar saber da existência de verdadeiros rituais de excitação coletiva nos cinemas poeiras onde se exibem estes filmes. É ignorar as razões do verdadeiro ódio à mulher que se esconde por detrás da tela e por dentro dá platéia. É esquecer o lado malicioso e moleque que cada um de nós cineastas, críticos de cinema ou operários de construção, têm dentro de si.

Sérvulo Siqueira

 

Matéria publicada no jornal O Globo em 13 de junho de 1978