26 de abril de 2015

  O espectro fascista e a nossa velha desordem

Setenta anos depois de derrotada nos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial as ideologias totalitárias do nazismo e do fascismo ressurgem, de forma explícita ou sob vários disfarces, em várias partes do mundo.

Enquanto na Ucrânia ‒ depois de um golpe sangrento que derrubou um presidente eleito ‒ o nazismo assume claramente o poder, em outros países e inclusive aqui no nosso querido Bananão a semente fascista volta a germinar depois que uma sórdida campanha eleitoral carregada de mentiras,  que contou com o completo apoio dos meios de comunicação, não conseguiu reverter o apoio popular à presidente reeleita.

As marchas dos últimos 15 de março e 12 de abril, fabricadas após uma intensa campanha orquestrada pela Rede Globo, exibiram em muitos casos uma imagem grotesca do segmento da população brasileira que se vestiu de verde e amarelo, atacou pessoas que usavam roupas de cor vermelha, carregou cartazes em inglês e português pedindo um novo golpe militar, estigmatizou brasileiros de grande renome internacional como Paulo Freire, produziu simulações de enforcamento de um ex-presidente e da atual mandatária, destruiu bens públicos e pregou abertamente o desrespeito às normas constitucionais do país.

Embora tenha havido manifestações em quase todo o país, o núcleo desse movimento esteve concentrado no estado de São Paulo ‒ especialmente em uma pequena região de alta renda da capital paulista ‒ onde pela quinta vez consecutiva foi eleito um candidato do partido que novamente perdeu as eleições presidenciais.

Chamado no passado de “a locomotiva do Brasil” e tendo se constituído durante grande parte do século 20 na economia que conduziu o nosso crescimento, impulsionada a princípio pela lavoura cafeeira e depois pela rápida industrialização, São Paulo vem experimentando desde algum tempo um processo de contínua decadência. O estado não mais oferece tantas oportunidades de trabalho como antes, não recebe mais investimentos externos do que outras regiões, o crescimento de sua economia já não apresenta índices tão favoráveis ‒ chegando mesmo a ser superado pela região Nordeste e pelos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais ‒ e sua população começa a se defrontar neste ano de 2015 com um espectro ainda mais assustador: a falta de água nas residências da capital e uma crescente pandemia de dengue. 

Enquanto outras regiões do país foram dotadas de grandes riquezas naturais ‒ minerais do subsolo, imensas terras para a agricultura e pastagem, relíquias do nosso patrimônio histórico e paisagens litorâneas ou rurais propícias para o turismo ‒ São Paulo já não pode contar hoje com a força de sua economia, estrangulada por uma política intensamente privatista adotada nas últimas décadas que concentrou renda, favoreceu de forma pouco escrupulosa grandes cartéis e resultou em pedágios altamente extorsivos e megaprojetos extremamente caros e pouco produtivos.

Ao se dar conta deste processo, a sua propalada classe média ‒ a mais bem aquinhoada e numerosa em todo o país ‒ não encontrou outro caminho senão recorrer aos velhos jargões das elites políticas do Brasil que tem o hábito de insistir no recurso a um apelo à falsa moralidade e às denúncias da corrupção quando se vêm ameaçadas no poder que exercem de forma frequentemente iníqua.  

Retomam então as velhas bandeiras da União Democrática Nacional (UDN), um partido que como se sabe teve entre seus inspiradores o famoso discurso do embaixador americano Adolf Berle Jr. no hotel Quitandinha em 29 de setembro de 1945, foi sucessivamente derrotado pelo Partido Social Democrático (PSD) nas eleições de 1950 e 1955 e recorreu às denúncias de corrupção contra Getúlio Vargas e João Goulart, terminando por oferecê-las de bandeja aos chefes militares que em conluio com os norte-americanos tramaram e executaram o golpe de 1964. Pagou um alto preço por isso ao não ter condições de eleger o seu candidato, Carlos Lacerda, como presidente e findou sendo extinta pelo movimento que havia apoiado.

Mais de 50 anos se passaram mas o espírito e as práticas golpistas não parecem ter se alterado. Revivendo a pregação moralista da velha UDN, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) ‒ seu legítimo sucedâneo ‒ desfralda as mesmas bandeiras para mais uma empreitada golpista no momento em que percebe que não tem nenhum projeto político a oferecer e suas propostas vêm sendo consistentemente rejeitadas pela maioria da população brasileira.

Como células dormentes do nosso autoritarismo histórico, os bolsões remanescentes da ditadura encastelados no Congresso, o coronelismo rural dos Democratas (DEM), o estamento judiciário que pretende se erigir como um novo poder dominante, além da presença constante dos americanos que espreitam agora a possibilidade de se apoderarem das riquezas do pré-sal, se integraram à ideia que se converteu no novo mantra da oposição recém-derrotada nas eleições: a derrubada do novo governo por qualquer via.

A existência de um Estado fraco, o caos urbano, a economia em estado pré-recessivo, o retorno dos tradicionais ajustes fiscais que apenas fortalecem o grande capital, a persistente crise econômica mundial e o contínuo trombetear da grande imprensa corporativa que fabrica de forma sensacionalista e extremamente parcial um elenco incessante de denúncias ‒ muitas delas falsas ou exageradas ‒ criaram um caldo de cultura onde a semente fascista voltou a germinar.

A tendência para as soluções violentas, o desrespeito ao estado de direito e a contínua violação dos direitos humanos perpetrados pelo Estado brasileiro ou por grupos hegemônicos tem sido na verdade a marca constante da  nossa sociedade ao longo de toda a sua história.

No atual contexto social neoliberal, o Estado no Brasil ‒ desmontado por administrações anteriores e fragmentado por diversos grupos de poder ‒ já não consegue se contrapor às forças econômicas do grande capital que se disseminam desde as grandes corporações multinacionais até as várias facetas do crime organizado, o que estimula o surgimento de um meio ambiente urbano ainda mais violento e proporciona a entrada das mais sofisticadas armas de destruição, assim como a proliferação de associações entre a atividade econômica e a delinquência.

Impotente para intervir em profundidade nas múltiplas atividades ilegais do grande capital ‒ desde a lavagem de dinheiro, o tráfico de drogas e de armas, a saída de divisas e de matérias-primas, etc. ‒ o projeto de poder do Partido dos Trabalhadores não foi capaz de colocar em prática políticas de distribuição de renda que fossem além de meros planos de assistência social. Pior ainda, dada a sua cada vez maior dependência do grande capital os governos de Lula e de Dilma demonstraram uma fragilidade crescente, a ponto de preferir cortar investimentos substanciais para populações menos favorecidas ao invés de taxar as grandes fortunas da nação, que comparativamente pagam muito menos impostos do que a classe média do país.

A incompetência do governo para gerir o bem público de forma equilibrada e justa revela a sua fraqueza e faz com que seus adversários se sintam suficientemente fortes para derrubá-lo. A falta de exercício pleno do poder e as limitações para sua destituição impostas pela via legal criam assim um espaço para atos de pura delinquência e abrem caminho para a violência organizada de grupos claramente fascistas e parafascistas, homofóbicos, racistas, além de organizações notoriamente reacionárias como a Tradição, Família e Propriedade, Opus Dei e de integralistas, antigos agentes da ditadura de 1965-1985, jovens estudantes doutrinados nos Estados Unidos e até mesmo agentes terroristas destinados a criar um clima de insegurança na população que leve à implantação de uma legislação autoritária e fascista, como aconteceu nos EUA com a Lei Patriota e está em vias de ocorrer na França.

A ofensiva fascista que se dá em várias partes do mundo e cujos sinais já podem ser claramente percebidos visa fundamentalmente preservar os privilégios dos poderosos ‒ sobretudo aqueles acumulados de forma brutal com a derrubada ilegal de governos democráticos, em geral seguida por privatizações e planos de ajuste, além da pilhagem da riqueza de países por meio de guerras e falsas revoluções coloridas ‒ e irrompe num momento em que o capitalismo começa a demonstrar evidentes sinais de exaustão e uma total incapacidade ou falta de disposição para distribuir a imensa riqueza que se acumulou na mão de apenas uns poucos.

Vivemos um tempo regressivo na nossa história, mais dramático ainda quando se lembra que há pouco mais de meio século o próprio capitalismo ‒ em seu confronto com o socialismo real soviético ‒ criou condições para produzir uma melhor política distributiva que levou a humanidade a um grande crescimento econômico e tecnológico.

Passados apenas 30 anos do fim do projeto socialista, o capitalismo já se espraiou por todos os recantos do planeta Terra e o seu resultado imediato é que a disparidade entre os 10% mais ricos e os 90% menos favorecidos já assume a dimensão de um abismo.

Como os exemplos dos Estados Unidos e da Europa mostram de forma eloquente, não há o menor indício de que aqueles que acumularam um poder político e econômico tão desproporcional e se encontram situados no topo da pirâmide social estejam minimamente dispostos a dividi-lo com os de baixo.

Por sua vez, a grande maioria dos desfavorecidos não parece propensa a aceitar esta situação como um fato consumado e pressiona de todas as formas, inclusive por meios violentos, para modificar o estado das coisas.

Numa época em que a crise por que passa a esquerda em todo o mundo leva a uma paralisação da atividade política, cabe aos movimentos e às entidades representativas da sociedade brasileira o papel de resistir ao apelo da violência e do fascismo, mas para isto será necessária também uma participação da população brasileira mais esclarecida e consciente.

Uma derrubada inconstitucional da atual presidente poderia levar a um cenário de um ajuste de contas que nos colocaria em uma situação próxima a que hoje vive a Ucrânia. Grupos de antigos militares não contentes com algumas revelações da Comissão da Verdade, interesses espúrios estrangeiros que podem tirar partido de uma situação de instabilidade para obter vantagens econômicas e até mesmo políticos sem escrúpulos e desgostosos com o resultado das urnas talvez estejam apostando no pior.

O pior, como sempre, virá mesmo para o povo brasileiro que voltará a viver os dias sombrios de 30 anos atrás.

 Sérvulo Siqueira