25 de março de 2018

 

Intervenção no Rio: ensaio para uma guerra futura

 

Ao praticar um deliberado terrorismo de informação durante o último carnaval da cidade, fabricando algumas notícias e dando exagerado destaque a outras, a Rede Globo forneceu um pretexto ao governo golpista de Michel Temer para decretar uma nova intervenção do Exército nas zonas pobres do Rio de Janeiro.

Conquanto a medida não possa ser considerada uma novidade, desta vez ela apresentou alguns fatos novos ao transformar um general de Exército em novo comandante militar do estado.

Por trás de mais este gesto aparentemente intempestivo está o conceito enraizado no modelo neoliberal de que, como sua política urbana não consegue resolver os problemas dos bairros pobres da cidade, não cabe outra alternativa senão aniquilar esses lugares com o emprego das táticas mais sofisticadas e brutais.

Esta estratégia já vem sendo utilizada em várias partes do mundo habitadas por uma população menos favorecida economicamente e desde algum tempo tem sido conduzida por especialistas militares cada vez mais envolvidos em táticas de guerras assimétricas e guerras híbridas, que hoje começam a ser travadas nas grandes megalópoles do Terceiro Mundo.

Enquanto, de um lado, se colocam forças extremamente bem organizadas e equipadas com o mais sofisticado equipamento de guerra, de outro se posicionam os verdadeiros “malditos da terra”, uma coorte de desempregados, punguistas, traficantes de todas as escalas, outros comerciantes associados ao crime e até parte da população que recebe proteção do crime ou que assume o outro lado em razão da crescente truculência da polícia.

Os planejadores dessas guerras, estabelecidos em geral nos países mais desenvolvidos – Estados Unidos, Europa, Japão, além de Israel – acreditam que os próximos teatros de operações terão como palco as grandes cidades dos países menos desenvolvidos do hemisfério Sul: São Paulo, Rio de Janeiro, Bogotá, Caracas, Cidade do México, Dacca, Nairóbi, Johanesburgo, Cairo, Bombaim, Karachi, Deli, Kinshasa, Lagos, Bangkok, Bagdá, entre muitas outras.    

No entanto, nas grandes metrópoles dos países mais avançados como as cidades americanas e inglesas de Nova Iorque, Los Angeles e Londres, passando por Chicago, Washington, Houston – e até mesmo nas cidades de menor porte como Birmingham, Liverpool, Boston, Filadélfia e Detroit – exercícios de treinamento e manobras militares clandestinas têm ocorrido, organizados como ensaios de guerra para a hipótese de que insurreições populares em defesa de direitos usurpados da população se tornem incontroláveis e ocupem de forma efetiva o espaço urbano.

Em seu afã de assumir o controle absoluto da segurança no país, o establishment americano desenvolveu um gigantesco sistema carcerário, que hoje abriga dois milhões e trezentos mil prisioneiros. Assim, com apenas cinco por cento da população mundial os States apresentavam no biênio 2004/2005 o índice de 24% dos presos do planeta.

A distribuição dessa população é tão desigual que, enquanto um número pouco acima de 1 entre 100 brancos estava na cadeia, em 2008, 1 em cada nove cidadãos de cor negra se encontrava encarcerado. Por sua vez, na Inglaterra quatro e meio milhões de câmeras buscam manter a ordem no país perscrutando as ruas, aeroportos, estações de trem e de metrô, além das principais artérias das mais importantes cidades.

Naturalmente, os gastos impostos por esta política se tornaram tão elevados que hoje assumem níveis estratosféricos. O economista Joseph Stiglitz estima que somados os custos das despesas militares e com a ordem interna − os Estados Unidos dispendem atualmente três trilhões de dólares para manter a sua segurança.

Como afirma o urbanista e arquiteto Stephen Graham, autor do livro Cities Under Siege (Verso, 2010):

− Em outras palavras, a guerra se transformou então num processo intensivo de acumulação de capital para uma matança de alta tecnologia à distância.

Não surpreende então que um governo sem nenhuma credibilidade, que não foi capaz de criar nenhum projeto social relevante e se encontra mergulhado na mais profunda corrupção como o de Michel Temer, recorra à velha política do grande porrete para higienizar as mais legítimas reivindicações da sociedade, transformando as desigualdades sociais numa luta entre bandidos e mocinhos.

A atual operação militar, em que o monstro veste a máscara do médico e propaga a mensagem de que irá purificar o lado sombrio da sociedade com o aparato de guerra do Estado, somente se torna palatável com o apoio dos meios de comunicação e de entretenimento que – como sabemos – estão inextrincavelmente ligados ao complexo militar- industrial.

O episódio nos lembra mais uma vez o sábio comentário do compositor Frank Zappa:

− O governo é a divisão de entretenimento do complexo industrial-militar.  

Cumprindo então o seu papel de fazer da informação um ato de terrorismo, a notória Rede Globo atiçou os cães furiosos do sistema no poder ao convocar a intervenção do glorioso Exército Brasileiro para resolver de uma vez por todas a grave questão social brasileira.

Como ocorreu nas ocasiões anteriores em que foi chamado a intervir, tudo indica que não será bem-sucedido até mesmo porque não está preparado para tal missão.

No entanto, para Stephen Graham, por mais paradoxal que esta afirmação possa parecer, não há verdadeiramente o desejo de que este “soi-disant” combate à criminalidade no Rio de Janeiro se torne vencedor. Na verdade, trata-se de criar uma guerra que não pode ser vencida por ninguém: seu objetivo último é − estimulado pelo interminável conflito de baixa de intensidade decorrente da profunda tensão intestina da sociedade − disseminar o conceito de “segurança” no interior da fortaleza dos estados.

Embora, possa-se dizer que esta questão é muito acentuada nos países mais avançados ela é igualmente verdadeira no Brasil, onde os cidadãos ricos constroem de modo cada vez mais consistente grandes muros em torno de si mesmos.

Nenhum país, entretanto, encarna de forma mais acentuada o conceito de estado-fortaleza que o estado de Israel − cercado por furiosos inimigos − e que, também graças aos inefáveis meios de comunicação, se transformou ao longo do tempo em uma espécie de “show-room permanente que se apresenta como a essência do hiper-militarizado urbanismo – a visão da vida urbana na qual cada movimento, cada ação requer escrutínio e a negociação dos pontos de passagem eletrônicos ou arquiteturais, para que se possa provar o direito de passagem”, conforme observa Graham.

No passado, enquanto este procedimento era normalmente reservado a aeroportos, hoje qualquer restaurante qualificado em Israel tem segurança na porta, detectores de metais e outros sensores. Ao levar este processo à frente, o estado judeu avançou ainda mais o seu sistema de segurança, isolou Gaza do resto do mundo e construiu muros em torno dos pobres palestinos, que considera perigosos.

No Brasil, vimos assistindo progressivamente à crescente instalação de câmeras, detectores de metais, tarjetas de identificação na entrada de prédios – algumas com fotografias tiradas na hora ou processos de identificação digital – verdadeiros check-points empregados sob o pretexto de alcançar maior segurança contra roubos e assaltos, já que o terrorismo felizmente ainda permanece alheio à estas paragens.

Este fato, entretanto, não impediu que esta tecnologia da destruição tenha chegado ao Brasil e desde o famoso Caveirão de alguns anos atrás, seus agentes de inteligência – talvez até mesmo do Mossad − percorrem as ruas do Rio de Janeiro.

Se a vitória contra o crime não importa, o que é que conta de fato?

Num modelo altamente excludente como o neoliberalismo, sabe-se que haverá sempre uma insatisfação popular e que – com o tempo – o clamor popular por uma melhor distribuição de renda tende inexoravelmente a crescer. Ao mesmo tempo, seus gestores têm consciência de que somente conseguirão manter os enormes privilégios que conquistaram com o uso calculado da força – se isto for possível – mas, se houver resistência, com a utilização de todos os recursos truculentos à disposição do poder.

Para que isto se torne viável, é necessário criar um consenso entre a população de que os valores mais sagrados da sociedade estão sendo ameaçados. Embora possa ser considerado difícil acreditar que um comportamento que visa o lucro a qualquer preço, a competição desenfreada, a cobiça, o uso abusivo de drogas, álcool e outros estupefacientes, o desrespeito às leis, etc.− que estão entronizados de forma absoluta na vida diária das pessoas – seja colocado como um patamar elevado da sociedade, é exatamente em nome desses valores que hoje uma parte da população defende a intervenção do Exército no combate ao crime no Rio de Janeiro.

De outra parte, interessa ao atual poder golpista – especialmente num tempo de acentuado desrespeito à lei como o que vivemos – que a população viva sob uma atmosfera de crescente medo, exatamente porque isso permitirá ao estado o emprego do maior uso da força repressiva sob o beneplácito da sociedade, que verá nisto uma ação séria e consequente, em defesa da lei e da ordem.

Com este argumento, o governo do Drácula golpista − após congelar por 20 anos os investimentos sociais, cortar as verbas para a educação e saúde − está agora em vias de conceder três bilhões de reais ao Exército para que este se dedique a uma tarefa em que fracassou no passado e na qual certamente fracassará hoje.

O futuro fracasso – uma verdadeira profecia anunciada – certamente não diminuirá novos esforços no sentido de combater o crime, porque outras tentativas virão e provavelmente com ainda maior intensidade, já que o objetivo é infundir um crescente sentimento de medo e insegurança na população para que esta conceda às autoridades a carta branca que necessitam para o emprego indiscriminado de violência e o gasto abusivo dos recursos sonegados à saúde e à educação. 

O emprego desmedido da violência tem se tornado um instrumento utilizado com frequência para sufocar a resistência das populações mais desprotegidas e embora o seu uso tenha se tornado crescente isto não tem levado à vitória dos invasores. No Iraque, no Afeganistão, mais recentemente na Síria e até mesmo em várias partes da África, as forças mais organizadas e melhor equipadas das potências coloniais vêm sofrendo muitas derrotas porque não levaram na devida conta outros fatores como o apoio da população e as suas condições socioeconômicas.

Os revezes não modificaram a estratégia do modelo vigente, que persiste na busca de um controle cada vez maior da sociedade. O episódio recente da suposta tentativa de envenenamento de um ex-agente russo na Inglaterra trouxe à tona uma experiência com armas químicas realizada por órgãos de inteligência britânicos com pessoas escolhidas ao acaso nas ruas de Londres. Posteriormente, alguns desses cidadãos acionaram os responsáveis na Justiça e foram indenizados pelo Estado.

No Brasil, aqueles que estão por trás da implantação de um incipiente projeto fascista de poder – apoiados na máquina do entretenimento e da comunicação que tem na Rede Globo o seu verdadeiro baluarte – estendem progressivamente os seus tentáculos para nos fazer crer que a nossa segurança depende da pronta ação deles, quando na verdade o único interesse é proteger os seus negócios e nos transformar em simples lacaios.

  

Sérvulo Siqueira