25 de fevereiro de 2023

Um ano de guerra na Ucrânia: globalistas ou multilateralistas?*

 

Em artigo publicado no início deste mês, o jornalista Seymour Hersch contou que, a 26 de setembro de 2022, uma operação do governo norte-americano – com a colaboração da Noruega – destruiu os gasodutos russos Nord Stream 1 e Nord Stream 2, programados para fornecer 50% de energia à Alemanha.

A imprensa corporativa não atribuiu qualquer importância à informação mas uma parte dos comentaristas independentes estimou que se tratava do maior ato de terrorismo praticado por um país contra outro em mais de um século, especialmente quando se considera que não existe nenhum estado de guerra entre as duas nações.

A Rússia se sentiu no dever de levar a questão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, um fórum criado originalmente para arbitrar questões desta relevância. Apesar do enorme escândalo que envolve a explosão de uma propriedade de um país executada por um outro, a discussão sobre o fato – como tantas outras anteriores – foi mais uma vez postergada.

Usando as suas habituais estratégias de chantagem, ameaças e suborno, os States bloquearam a iniciativa e contra-atacaram na Assembleia Geral, onde graças à força do dólar como a moeda mais utilizada nas transações comerciais entre os países, ainda mantém a maioria. Em votação realizada no último dia 23 de fevereiro, com o voto do Brasil, a Assembleia Geral desconheceu por completo a explosão dos gasodutos e votou contra o que chamou de “a invasão da Ucrânia pela Rússia”.

O governo de Lulinha da Silva, que vem anunciando que fará uma proposta para um acordo que leve ao fim das hostilidades, embora ainda não o tenha feito formalmente, abriu mão de sua posição de neutralidade, no que divergiu claramente dos outros países do BRICS: China, Índia e África do Sul, que se abstiveram.

Perfilou-se então ao lado dos Estados Unidos, cumprindo mais uma vez o juramento de fidelidade ao suserano do Colosso do Norte, papel que a diplomacia brasileira vem desempenhando – com raras exceções – ao longo dos anos.

O acontecimento marcou a comemoração de um ano do início da Operação Militar Especial, termo cunhado pelo governo russo para justificar a ocupação de territórios habitados por populações de origem russa e que vinham – desde 2014 – sendo objeto de contínuos bombardeios por parte da Ucrânia, com o apoio da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, por sua sigla em português).

As principais razões para a operação foram, segundo o governo russo, a garantia da integridade territorial da região no momento em que a Ucrânia e a OTAN já concentravam mais de 80 mil tropas na fronteira do Donbas; a proteção física dos habitantes de Donetsk e Lugansk perseguidos pelas milícias neonazistas do batalhão Azov, Svoboda e do Pravy Sector, que já haviam causado a morte de 14 mil de seus cidadãos; a desnazificação e a desmilitarização do país desencadeada especialmente depois do golpe de 2014 que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovych.

Passado um ano do começo da operação, as previsões dos líderes dos países do Ocidente e de seus meios de comunicação de uma vitória da Ucrânia e das forças da OTAN que operam na região não se confirmou. A guerra de atrito desfechada pelo exército russo, apoiada por constantes bombardeios de alta precisão causou enormes baixas no exército ucraniano.

Uma estimativa recente divulgada pelos serviços de informação de Israel considera que as forças militares da Ucrânia e seus aliados já perderam cerca de 350 mil soldados, entre mortos e feridos, enquanto as baixas do lado russo se situam em torno de 60 a 65 mil homens fora de combate.

De outra parte, as perdas econômicas e militares dos Estados Unidos e seus aliados da Europa, Coreia do Sul e Japão, que investiram mais de 150 bilhões de dólares em equipamento militar, em parte destruído pelo exército russo, são consideráveis já que muitas destas nações – fragilizadas pela ausência do petróleo e do gás russo e sem recursos para a produção de novos equipamentos de guerra – estão literalmente à mercê dos preços muito mais altos dos novos fornecedores de energia, especialmente dos norte-americanos.

É necessário lembrar que, ao longo do ano que passou, os países da Europa aplicaram inúmeras sanções à Rússia, confiscando reservas em moeda e em ouro e propriedades de empresas do país, o que não provocou uma reação na mesma medida de Vladimir Putin, que continuou a fornecer petróleo e gás às nações do continente. Por fim, o ato terrorista do último 26 de setembro levou à supressão do fornecimento do Nord Stream, o que vem causando grande sofrimento em muitos habitantes da região, acostumados durante várias décadas ao conforto do aquecimento em suas casas.

Apesar das sucessivas derrotas no plano militar, nem por um momento os líderes do Ocidente assim como os seus meios de comunicação corporativos foram capazes de produzir uma análise consequente do conflito, escamoteando permanentemente as informações relevantes que possam levar a população a um maior conhecimento sobre o conflito.

 No momento, com o objetivo de evitar uma investigação séria sobre a explosão dos gasodutos, pretendem impulsionar um inquérito sobre crimes de guerra praticados pelo exército russo quando – na verdade – são as forças neonazistas da Ucrânia, integradas ao exército do país, aquelas que perpetraram os mais horrendos crimes, inclusive contra sua própria população, conforme tem sido amplamente documentado pelos meios de comunicação independentes.

Por outro lado, continuam a insistir na possibilidade de vitória da Ucrânia, hipótese que inúmeros analistas que vêm acompanhando com atenção o conflito – como os militares norte-americanos Scott Ritter e Douglas MacGregor, o analista geopolítico responsável pelo site Moon of Alabama e o jornalista Alexander Mercouris – consideram altamente improvável, senão impossível. Resta sempre o espectro do recurso às armas nucleares, cujo resultado é imprevisível.

Ainda no marco dessa efeméride, cujo primeiro aniversário se completou ontem, dia 24 de fevereiro, o pronunciamento do Presidente Vladimir Putin ao Parlamento Russo delineou a posição autônoma e soberana no conflito e estabeleceu os princípios multilateralistas que seu país defende. Putin apontou que a Ucrânia está sendo usada como uma ferramenta e que “quanto mais armas de cada vez mais longo alcance forem enviadas ao país, mais distante a guerra será levada ao interior de seu território”. Comentou que a Rússia é uma nação com uma cultura própria, que não se confunde com o Ocidente, e que o objetivo de seus adversários no conflito é se apoderar das imensas riqueza do território russo.

Aproveitou também a ocasião para anunciar que a Rússia está se retirando provisoriamente do START III. O START III foi estabelecido para regular a produção de mísseis balísticos de longo alcance e tem o objetivo de consolidar o START II, que nunca foi ratificado pelos Estados Unidos. Por sua vez, o START II, foi implementado para consolidar o START I, do qual os Estados se retiraram durante o governo de George W. Bush. Justificou assim a sua decisão:

– As promessas... dos dirigentes ocidentais se transformaram em falsificações e cruéis mentiras. O Ocidente forneceu armas, treinou batalhões nacionalistas. Mesmo antes do início da Operação Militar Especial houve negociações... para o fornecimento de sistemas de defesa aérea... Lembramos também das tentativas de Kiev para a obtenção de armas nucleares.

Deixou claro então que a Rússia não tem mais confiança nos Estados Unidos e em razão disto está suspendendo a sua participação no tratado de desarmamento, esclarecendo:

– Decidimos nos retirar do tratado de armas estratégicas ofensivas, mas não o faremos oficialmente. Por agora, estamos somente suspendendo a nossa participação no tratado. Não será permitida nenhuma inspeção nos nossos arsenais nucleares.

Simultaneamente à esta decisão, a Rússia convocou a embaixadora norte-americana em Moscou e comunicou oficialmente ao governo de Washington que – a partir de agora – qualquer participação do governo do Tio Sam será considerada um alvo de guerra, tanto sob o ponto de vista de equipamento militar quanto em termos do pessoal envolvido.

No exterior, muitos observadores se perguntam, atônitos, o que teria levado Lulinha da Silva, um líder até pouco tempo considerado extremamente progressista, a assumir posições tão questionáveis. Certamente, por não viverem no Brasil e não terem acompanhado com atenção por um período longo de tempo a sua trajetória talvez tenham sido surpreendidos pela natureza farsesca desse personagem.

No entanto, para alguém que tenha seguido a carreira desse ex-metalúrgico e sindicalista convertido em político profissional, alçado durante algum tempo à condição de líder do Terceiro Mundo, seu comportamento nos dias atuais não apresenta nenhuma surpresa.

Em 2002, quando em Washington, depois de ter sido eleito, Lula escolheu o presidente mundial do Fleet Boston, segundo maior credor do Brasil, para o posto de presidente do Banco Central do país e, durante seu mandato, concedeu-lhe o estatuto de ministro de estado para protegê-lo de investigações que poderiam comprometer sua posição e carreira.

Ao longo de seu exercício na presidência, Luís Inácio da Silva se associou ao agronegócio para obter divisas com as exportações em prejuízo dos pequenos agricultores do país, responsáveis pela alimentação da maior parte dos brasileiros, estimulou os empréstimos consignados com o objetivo de aumentar o consumo, o que elevou os lucros do bancos a alturas estratosféricas sem equivalente em nenhum lugar do planeta, e não foi capaz de realizar uma auditoria da dívida pública, enquanto oferecia apenas uma migalha aos mais pobres.

Com uma política social com características basicamente assistencialistas, Lula da Silva somente conseguiu ser reeleito e eleger a sua sucessora porque seus adversários – entre eles, aquele que é agora o seu vice-presidente – eram ainda muito piores.

Em entrevista recente, o ex-ministro Antônio Delfim Neto, verdadeiro czar da economia durante os governos militares de 1964-1985, afirmou que Lula nunca foi de esquerda. Diante desse retrospecto, não se pode deixar de considerar que estamos diante de um verdadeiro mestre na arte do disfarce e do ilusionismo político.

Hoje, poderíamos perguntar como irá se posicionar o governo russo diante das iniciativas de um membro dos BRICS que parecem destinadas a criar um consenso global contra a postura de outro membro da organização. Veria Putin com simpatia a recusa do governo Lulinha da Silva em assumir a presidência temporária do grupo? Seria Putin capaz de endossar o nome de Dilma Rousseff para a presidência dos BRICS, indicada por alguém que votou contra suas decisões na ONU?

Visto de uma perspectiva mais ampla, não estaria hoje Putin a par das últimas ações de seu antigo aliado, colocando-se ao lado do Fórum Econômico Mundial de Davos, da Organização Mundial de Saúde, de Bill Gates, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e apoiando associações com o magnata Jeff Bezos num fundo amazônico, que lhe valeram até elogios de George Soros, considerado persona non grata em Moscou e Pequim?

Como um praticante de judô, esporte no qual depois de um longo tempo chegou até o estágio mais alto, Putin deve ter se acostumado a pesar friamente as circunstâncias de sua ação. Muitos comentam e outros criticam sua conduta, alguns considerando-a em vários momentos excessivamente diplomática. A história mostra que, quando necessário, ele agiu também com muita dureza, o que ocorreu por exemplo na guerra da Chechênia, de 1994 a 1996, que depois de início muito desfavorável terminou sendo vencida pela Rússia.

Será que Lula acredita que, depois de haver enganado o povo brasileiro, oferendo migalhas no Bolsa Família, enquanto favorecia os bancos, o agronegócio e a Rede Globo com bilhões de dólares, também conseguirá fazer o mesmo com um político de tamanha experiência como o presidente da Rússia?

 

                                                                                    Sérvulo Siqueira

 

*Depois do fracasso da esquerda, que abandonou seu projeto de mudança da sociedade e adotou a ideologia do politicamente correto e da postura da direita tradicional em assumir uma posição cada vez mais crítica da globalização neoliberal, as fronteiras entre estas posições, muito antagônicas no passado, se tornaram extremamente tênues. A emergência da China como uma nova potência mundial e sua recusa em se submeter ao modelo dominante norte-americano, assim como a sua associação com a Rússia, criou a possibilidade de rompimento da ordem neoliberal globalista dominada pelos Estados Unidos – que desde o fim da União Soviética vem persistindo nos últimos 30 anos – e tornou possível uma novo mundo multilateralista, sem um único país hegemônico. (SAS)

 

 

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