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24 de maio de 2009
Marshall McLuhan, o professor de literatura canadense que se transformou em profeta dos novos meios de comunicação, dizia nos anos 1960 que o planeta havia se tornado uma aldeia global. Na verdade, algum tempo antes um outro grande escritor, o autor de ficção científica Arthur C. Clarke, já havia esboçado o projeto de um satélite de comunicação que – girando continuamente sobre a Terra – criaria um permanente intercâmbio de informações.
Se há alguma lógica em todo esse
sinistro propósito, esta parece ser a fabricação de uma consciência
postiça baseada no medo e na insegurança, o que ampliaria a esfera de
poder dos atuais governantes do planeta, hoje igualados em sua enorme
mediocridade, estreiteza de visão e práticas corruptas. Inseguro,
atemorizado, desconectado do seu semelhante, o cidadão comum fica
tentado a conferir cada vez mais poder às autoridades para resolver
problemas que o atormentam como o crescente sentimento de insegurança, o
medo de perder o emprego, o temor de sair às ruas, as indecisões sobre o
que comer, etc. A criação desse estado de
espírito – que tende a se tornar um viés cultural – abre caminho às
autoridades para a implementação de medidas “salvadoras”, que se tornam
possíveis com a invasão do espaço privado do cidadão e a restrição cada
vez mais crescente das liberdades democráticas, o que pode destruir
conquistas que somente foram alcançadas depois de uma luta de séculos,
em que toda a sociedade humana esteve envolvida. Muito vigilantes em defesa da
liberdade de imprensa quando se trata de países como Cuba, Rússia,
China, as grandes corporações dos meios de comunicação não parecem ter
nenhum pudor em patrocinar a produção desse estado de espírito desde que
isto lhes possibilite participar da nova elite do poder, uma verdadeira
casta que, ao controlar a informação, se empenha em dominar o mundo por
meio da fabricação do terror e do medo. No Brasil, conhecemos o imenso
poder que foi amealhado pela Rede Globo mercê de toda sorte de
concessões e favores oficiais: empréstimos bilionários a fundo perdido,
polpudas verbas públicas de propaganda, informações privilegiadas por
debaixo do pano, entrevistas exclusivas em horário nobre e até a
construção de um satélite de comunicações, doado à Vênus Platinada
pela ditadura militar dos generais que regeu o Brasil de 1964 a 1985. Revestida desse incontrastável
domínio, a Rede Globo vem cometendo a partir de 1965, ano da sua
fundação, todos os tipos de atentados ao pleno direito à informação,
reafirmando mais uma vez a prática da impunidade que tem marcado a
história deste país. Sua linha editorial – desde os tempos do Doutor
Roberto Marinho – passa sempre pelos interesses econômicos e
políticos da empresa e pode – considerando o poder de influência que
possui – tanto proscrever da vida pública um personagem proeminente
quanto até mesmo fabricar integralmente um quidam político, como ocorreu
no episódio da eleição de Fernando Collor de Melo, apresentado como
paladino da moralidade e “caçador de marajás”. A natureza repetitiva dos meios
de comunicação de massa confere à televisão a capacidade de criar – pela
reverberação da insistência – um imaginário popular, circunstância de
que se aproveitaram os nossos órgãos de informação menos escrupulosos
para instituir de forma corporativa um verdadeiro poder paralelo na
sociedade. No entanto, dada a nossa
conhecida passividade política – já que tendemos a descartar com
facilidade as questões do nosso estrito interesse – é por meio das
telenovelas que as redes de televisão fazem literalmente a cabeça dos
brasileiros, criando novos hábitos e costumes, fabricando
artificialmente modas para cada estação, estimulando o consumo de
produtos supérfluos e desnecessários e chegando mesmo a produzir uma
visão inteiramente estereotipada de um país fictício inventado em
cenários previamente desenhados.
Imagine agora uma cena como a
seguinte, não exatamente tão irreal quanto a das telenovelas:
Bairros da periferia das megalópoles e grandes cidades brasileiras: São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, entre outras.
Noite. Em pequenas casas, toscamente construídas, membros de famílias
pobres se acotovelam nos reduzidos cômodos da residência, em geral
composta de apenas um quarto. No exterior, em ruas mal iluminadas e sem
calçamento, bandidos e polícia se digladiam pelo controle da atividade
criminosa. No interior, os membros da família – naturalmente operando
seus sofisticados celulares – assistem ao noticiário do dia e, em
seguida, às telenovelas da noite. O que veem estas pessoas? Além do
jornal da tevê, com notícias plantadas e finais ensaiados de sabor
otimista, assistem também as novelas em que os personagens – ao
contrário da insípida vida que levam, do trabalho à casa e da casa ao
trabalho – desfrutam de uma existência plena de acontecimentos, passeiam
em seus belos carros, passam finais de semanas em casas de campo, têm
amores, viajam, divertem-se enfim. Pode-se dizer que esses
personagens, criaturas fabricadas e representadas por atores em carne e
osso, possuem uma verdadeira vida – já que não apenas coisas boas lhes
sucedem mas também acontecimentos antagônicos e sofrimento, o que dá
verossimilhança à narrativa. No entanto, é a fantasia fabricada para um
folhetim eletrônico que fornece um suplemento de realidade que vai
alimentar o imaginário dessas pessoas que a sociedade colocou à margem.
É esta ilusão que vai se transformar na vida real de milhões de
indivíduos, já que será incorporada e assimilada por eles como
experiência efetivamente vivida. Esta sensação produz uma
verdadeira transformação no universo interior dessas pessoas e lhes
confere um sentimento de autoestima porque quando uma experiência não
pode ser inteiramente desfrutada a simples condição de espectador dessa
situação já fornece àquele que a assiste o status de participante, e a
sensação é ainda mais intensa se a cena da telenovela tiver sido
representada com realismo. A dramatização é então incorporada como coisa
vivida, quando na verdade foi apenas encenada por meio de artifícios
como a caracterização dos atores, efeitos de iluminação e de
movimentação de câmera, utilização dramática da música, recursos
sonoros, etc. Parodiando o assustador efeito
que os meios de comunicação exercem hoje sobre o imaginário popular, um
diretor espanhol inventou uma fábula de um golpe de Estado midiático,
situação que não parece muito longe da realidade quando nos lembramos da
trama que retirou por um breve tempo o presidente Hugo Chávez do poder
na Venezuela. Menos de três dias depois, já de volta ao Palácio de
Miraflores, Chávez se defrontou com a realidade de falar à nação e não
conseguir ser transmitido pelos órgãos de comunicação que haviam apoiado
a sua derrubada. Paradoxalmente, foi um canal de televisão estrangeiro –
a CNN – que forneceu ao mundo a notícia de que o presidente estava de
volta ao poder. Na mesma época também se encontrava no país uma equipe
de televisão irlandesa que documentou os acontecimentos e os transformou
em um inquietante documentário, A Revolução Não Será Transmitida. O que poderá acontecer então se
uma notícia de grande relevância não puder ser efetivamente transmitida
porque uma autoridade ou o agente interessado não dispõe de força para
difundir essa informação em larga escala? É indiscutível que um poder
exacerbado dos meios de comunicação criará – e é possível que já esteja
sendo gestado – uma espécie de estado de sítio virtual. Agora os cães raivosos do
totalitarismo e da opressão se voltam para um dos nichos criados pela
avassaladora revolução digital que irrompeu com a globalização. Tramita
no momento no nosso inefável Congresso Nacional, cenário de tantos
golpes e traições ao povo deste país, um projeto de lei apresentado por
um senador em fim de mandato que propõe o que já está sendo chamado de
AI-5 Digital. A pretexto de combater crimes como a pedofilia na
Internet, o projeto, apresentado pelo senador Eduardo Azeredo, notório
personagem ligado a práticas obscuras de comportamento político,
considera que é crime “obter ou transferir dado ou informação disponível
em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema
informatizado, sem autorização ou em desconformidade com a autorização
do legítimo titular, quando exigida”. Isto significa que todos aqueles
que baixarem e trocarem arquivos – textos, músicas ou vídeos, por
exemplo – sem autorização do titular estarão cometendo um crime. Alguém
que citar o trecho de uma matéria de um jornal online em seu
blog sem autorização prévia também poderá ir para a cadeia. O mesmo
se aplica a quem enviar a música favorita para um amigo, por exemplo. O
projeto também estabelece que os provedores de acesso devem manter por
três anos todos os dados de seus clientes, incluindo origem, data e
horário do conteúdo acessado. Caso haja algum indício de crime em
determinada navegação, essas empresas deverão informar às autoridades os
dados deste usuário. Embora a medida tenha pouca
eficácia para combater os crimes a que se propõe, significará
provavelmente o fim da privacidade na rede. Ela equivale na prática à
instalação de um mecanismo de controle de todas as atividades do cidadão
em seu computador pessoal. Como afirma o deputado Ivan Valente, é como
se no mundo real todos os passos de um cidadão tivessem que ser
registrados para que, caso ele cometesse um crime um dia, esse histórico
estivesse à disposição das autoridades. Lembra o deputado que “os
provedores que não agirem assim poderão ser multados”. – É a delação virtual
obrigatória! Ou seja, as perseguições agora serão virtuais. Não à toa o
PL Azeredo já foi apelidado de AI-5 Digital. Político de visão tecnocrática e
comportamento soturno, que já esteve envolvido em denúncias de vários
atos de corrupção, como o uso indevido de recursos da privatização de
empresas públicas em sua malfadada campanha para reeleição em Minas
Gerais e o célebre episódio do mensalão, este senador deve estar
provavelmente pagando dívidas de campanha com a indústria cultural e os
banqueiros nacionais e – quem sabe – talvez preparando uma confortável
aposentadoria, já que dificilmente deve ser reeleito. Como legado da sua
infausta carreira política: filho de um político mineiro leal a
Juscelino, foi eleito vice na chapa de Pimenta da Veiga para prefeito de
Belo Horizonte, assumiu a prefeitura quando o titular se
desencompatibilizou para se candidatar ao governo de Minas e mais tarde
se tornou governador do estado nos áureos tempos do PSDB e do governo
Fernando Henrique, Azeredo pode estar deixando mais esta herança
maldita, assim como o fez com seu sucessor Itamar Franco, quando
negociou com o governo federal nos últimos dias de seu mandato um acordo
lesivo aos interesses de Minas. Da mesma forma, também concedeu controle
acionário a uma companhia americana quando esta havia adquirido apenas
um terço das ações da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), ato
entreguista que depois foi revertido por Itamar Franco. Num país como o
Brasil, de pequena tradição democrática e com grande concentração de
poder dos meios de comunicação nas mãos de algumas famílias e que esboça
no momento um maior acesso de sua população às novas tecnologias da
informação, este projeto de lei representa mais um passo no caminho de
um verdadeiro e permanente estado de sítio virtual. Já tendo tramitado e sido aprovado no Senado, ele caminha para discussão e votação no plenário da Câmara. Sabe-se que os golpes ocorrem na calada da noite, quando todos os gatos são pardos e muitos já dormem. Tomara que não acordemos um dia desses com a notícia de que o Big Brother não é apenas um personagem famoso ou mais um grotesco programa de televisão.
Sérvulo Siqueira |