23 de
março de 2010
Taí, fica o dito e o redito por
não dito¹
Na verdade, toda a nossa história tem sido marcada por esta prática:
sonegação de documentos referentes ao Brasil Colônia pela metrópole
portuguesa, falsos relatos acerca da descoberta do nosso território, que
atribuem ao acaso um planejamento sabidamente rigoroso fruto de largo
conhecimento adquirido na escola de Sagres, versões fabricadas sobre
acontecimentos de grande importância para a constituição do nosso país
como a Conjuração Mineira – chamada depreciativamente de (In)confidência
pela Coroa de Lisboa – parvas informações e noções distorcidas sobre
revoluções regionais no Brasil do final do século 18 e do século 19 como
a Revolta dos Alfaiates da Bahia, a Cabanada e as revoluções de 1817 e
Praieira em Pernambuco, a Farroupilha do Rio do Grande do Sul e a
Cabanagem do Pará, entre outras, sem falar na transformação de Domingos
Fernandes Calabar de herói em traidor, segundo a ótica do dominador
local e de além-mar.
Esta persistente camuflagem do nosso passado parece ter sido muito
bem-sucedida e se tornou responsável pela existência de um sistema
escravagista que persistiu por quase quatro dos cinco séculos de
história da nossa nação e resultou na ausência de consciência de um
conceito de cidadania entre seus habitantes.
Por outro lado, a continuidade desse sistema que conseguiu preservar um
status quo quase inalterado desde a instituição das capitanias
hereditárias do século 16 – modo de propriedade feudal que se manteve a
despeito de sua pouca eficácia – resultou numa sociedade com profundas
disparidades sociais e econômicas.
Numa célebre reflexão, a Meditação de Massangana, Joaquim Nabuco previa que, mesmo depois de
abolida, a escravidão negra ainda perduraria por um longo tempo no
Brasil.
Mesclando um sistema econômico quase monopolista com uma base
tecnológica moderna instalada em alguns setores produtivos, o país
ostenta hoje a condição de nação emergente impulsionadora do
desenvolvimento capitalista neoliberal ao mesmo tempo em que apresenta
uma sociedade que não consegue camuflar seus graves e crescentes
problemas.
Em raros e muito breves instantes da sua história, a nação pode exprimir
as mais lídimas aspirações de independência e de uma justa distribuição
de renda. No entanto, em muitos casos esses processos foram
interrompidos de modo abrupto e violento.
Suas elites econômicas e políticas – que exploraram o espaço físico
extremamente favorável da terra – criaram para si uma perspectiva de
vida bastante agradável e relativamente pouco contestada, graças à
apropriação do aparelho do Estado e de sua utilização como força coatora
e repressiva.
Neste sentido, a criação de uma superestrutura ideológica com a missão
de direcionar e condicionar as necessidades de lazer, divertimento e
informação cultural sobretudo das camadas mais baixas da população foi
grandemente responsável pela preservação dessa ordem econômica tão
desigual.
Com este propósito, os meios de informação ou meios de comunicação de
massa – rádios, jornais e revistas, cinema e televisão – vêm
desempenhando um papel de catalizadores do imaginário popular,
fabricando e desfazendo mitos, alimentando falsas aspirações de consumo
por meio de artifícios explícitos e subreptícios de propaganda
(merchandising, etc.), além de se transformarem em provedores de
informação sobre acontecimentos da contemporaneidade.
O enorme espectro dos meios de comunicação do país – quase um cartel de
famílias e grupos econômicos com profundas e intrincadas relações entre
si – reflete não o conjunto da sociedade brasileira mas os interesses de
classe da oligarquia, decidida a manter a grande maioria da população
brasileira num estado de torpor inebriante que lhe permita o exercício
irrestrito de poder.
Nascida sob o amplexo quase libertário da mais irrestrita disseminação
de informação, a chamada imprensa escrita, falada e televisada vem
perdendo progressivamente o seu caráter original e já se converteu na
expressão quase unilateral de um sistema de poder altamente manipulador
do imaginário popular.
Assim, a informação que oferece deixou de corresponder à apresentação da
sequência dos fatos e vincula-se à sonegação deliberada de informações,
à manipulação de dados, à omissão de relatos de interesse da comunidade
e à completa submissão do seu noticiário aos objetivos do poder
econômico ao qual está diretamente associada.
Agrupado em torno da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla
em espanhol), este verdadeiro cartel patronal apresenta um triste
retrospecto. Durante as ditaduras militares na América Latina (Brasil,
Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Paraguai) nos anos 60, 70 e 80
submeteu-se – com algumas raras e breves exceções – à censura, quando
não criou a sua própria autocensura para agradar aos donos do poder. Ao
mesmo tempo em que justificava a truculência dos regimes títeres dos
Estados Unidos, condenava sistematicamente os governos que se opunham às
políticas de Washington.
Seu representante mais emblemático é o jornal
El Mercurio de Santiago do
Chile que orquestrou – por meio de mentiras deslavadas e claros atos de
sabotagem da notícia – a campanha para a derrubada e o assassinato de
Salvador Allende. Outros membros deste cartel da informação são os
jornais Clarín e La Nación de
Buenos Aires, El Mundo de
Bogotá e El Universal da
Cidade do México, entre outros. No Brasil, os nomes mais conspícuos são
os jornais O Globo, a Folha de S.Paulo
e o Estado de S. Paulo.
Juntos, estes soi-disant órgãos de informação apresentam uma espécie de
pensamento monolítico do sistema de poder na América Latina,
constituindo “um verdadeiro partido único” como os chamava o
ex-governador Leonel Brizola.
Se você – num dia como o de hoje – decidir consultá-los pela Internet,
verá que suas manchetes são idênticas em conteúdo e coincidem num mesmo
ponto; todas reverenciam o sistema de poder dos Estados Unidos, seu
verdadeiro patrão e oráculo.
Ao longo de praticamente todo o século 20, este sistema organizado se
tornou cúmplice da destruição das liberdades públicas, das repressões
militares e das grandes negociatas financeiras ao não revelar a verdade
e destilar qualquer tipo de informação falsa com o propósito de iludir e
enganar a população e se perpetuar no poder por meio da disseminação da
ignorância e da contrainformação. Isto ocorreu durante a ditadura
militar brasileira de 1964-1985, quando os grupos de resistência eram
chamados de terroristas e as informações sobre seu progressivo
aniquilamento foram sistematicamente omitidas.
Com o fim do regime militar, esperava-se que os arquivos da repressão
seriam abertos e a população teria amplo acesso à informação escondida
nos subterrâneos do regime. Foi então que o Estado e os meios de
informação se uniram para fabricar versões parciais do uso
indiscriminado de violência por parte do aparelho militar e – num
conluio sinistro e perverso – ex-guerrilheiros se associaram a
ex-torturadores para impedir que a população pudesse ter conhecimento do
que ocorreu realmente no país durante quase um quarto de século.
E é difícil dizer/Que foi bonito
Há poucos dias atrás, soube-se que o ministério das Relações Exteriores
estaria se posicionando contra um projeto de lei – em discussão no
Congresso Nacional – que propõe a abertura dos arquivos públicos
considerados ultrassecretos, que deveriam ser facultados ao exame da
população após um período de sigilo de 25 anos, renovável por outros 25
anos. Segundo a notícia, o Itamaraty pretende que os documentos devam
continuar secretos indefinidamente. O que estaria temendo a instituição?
Quais são as informações que não podem ser reveladas? Teme o governo
brasileiro que o Paraguai possa vir a saber que o genocídio perpetrado
contra a população daquele país vizinho – a matança programada de
mulheres e crianças – possa ter sido uma decisão de Estado, fria e
calculada? Temeria também o governo do Brasil a divulgação da informação
de que este ato de aniquilamento foi executado por influência da
Inglaterra, a quem não interessava o fortalecimento do Paraguai?
O ministério das Relações Exteriores não deseja também a divulgação de
documentos relativos à compra do Acre. Aí reside outro ponto nevrálgico,
onde a má consciência brasileira pode se tornar extremamente sensível,
até porque o conhecimento desses dados poderia despertar grande
interesse na Bolívia. O governo de Evo Morales – mais voltado para a
defesa dos interesses do povo boliviano que o nosso – já tem levantado
este tema tão candente. Recorde-se também que há pouco anos atrás, por
ocasião de um contencioso com a Bolívia a propósito das refinarias da
Petrobras, alguns órgãos de informação ligados à burguesia paulista
chegaram a propor a invasão daquele país por forças do Exército
brasileiro. O apoio dos deputados que compõem a base governista da
Câmara a este propósito levanta a suspeita – já bastante disseminada no
exterior – de que o nosso país desenvolve hoje uma estratégia
subimperialista na região e que a divulgação de posturas semelhantes
adotadas no passado possa produzir reações que impeçam a continuidade
dessa política.
A prática de classificar documentos – em muitos casos de forma perene –
revela a verdadeira natureza totalitária do Estado brasileiro e encontra
naturalmente respaldo nos meios de informação que – ao invés de lutarem
pelo amplo acesso aos documentos – se omitem de forma vergonhosa, até
porque em outros casos se servem dos mesmos expedientes. Tal costume não
é de forma alguma novo e vem se acentuando com o tempo, e caberia aos
veículos de informação questionar essa política obscurantista, ao invés
de deixar de exercer a sua missão fundamental de informar e se tornarem
parte de oligopólios com investimentos em várias áreas da atividade
econômica.
A verdade é que a informação tornou-se para esses jornais, rádios e
televisões um simples biombo, uma fachada que encobre outros negócios
não revelados. E como os negócios são mais importantes, qualquer notícia
levemente mais polêmica pode prejudicar o rumo dos interesses
econômicos.
Este fato tem se generalizado de tal forma e sua disseminação se tornou
tão corriqueira que a contínua ocorrência destes acontecimentos passa
quase desapercebida para a grande maioria da população, que sequer tem
condições de distinguir em muitos casos uma mentira de uma verdade.
Ainda recentemente, a Folha de S.Paulo condenou aqueles que criticam a mais recente
ditadura militar e considerou o período de 1964 a 1985 como uma
ditabranda, forma suave de
totalitarismo segundo o jornal. No ano passado, os nossos órgãos de
comunicação custaram a identificar a derrubada do presidente Manuel
Zelaya de Honduras como um golpe militar e ainda continuam a mentir
sistematicamente ao insistir que sua deposição se deveu a um plebiscito
proposto pelo ex-presidente, quando na realidade se tratava de uma
simples consulta com caráter não vinculante. A persistente divulgação
destas aleivosias – na linha do diktat nazista de que uma mentira proferida mil vezes se transforma
em verdade – contribui de forma substancial para a alienação popular
sobre o que se passa no mundo.
Em qualquer uma das explicações a imprensa falseia o problema, uma vez
que as verdadeiras causas da derrubada do ex-presidente estão ligadas à
existência de uma conspiração entre os Estados Unidos e os setores mais
retrógrados da nação centro-americana, como atestam vários observadores
e organismos internacionais.
Por outro lado, o nosso cinema – sobre o qual tantas falácias têm sido
urdidas – também caminha ao sabor das intempéries econômicas e políticas
da nação. Embora não possua nem de longe o poder de persuasão, a
eficácia de organização e o prestigio político da chamada imprensa
escrita, falada e televisada, compartilha com esse setor a sua completa
dependência econômica do Estado.
Assim como os meios de informação, esta atividade também está organizada
em torno de feudos e – tanto nos setores vitais da produção quanto no da
exibição cinematográfica – apóia-se na estrutura de tradicionais clãs
familiares.
Para divulgar a imagem de que consegue abarcar um amplo espectro da
cultura brasileira, o nosso cinema conta com uma base de apoio nos
próprios meios de comunicação, que se esforçam em propagar a mensagem de
que a arte cinematográfica no Brasil não é apenas a expressão de uma
elite relativamente intelectualizada e dotada de elevado poder
econômico. No entanto, apesar de todo esse empenho a afluência do
público ao longo dos anos tem mostrado que as salas de exibição
continuam a ser um espaço ocupado pela classe média alta, que dispõe de
recursos para pagar um ingresso que vai de vinte a quarenta reais.
As esparsas tentativas de produzir grandes reconstituições históricas do
nosso passado raramente tiveram êxito e esbarraram na necessidade sempre
ambicionada de se equiparar ao padrão médio do cinema americano que lhe
serve de modelo – o que jamais foi bem-sucedido – e na eterna
dificuldade que a cópia tem para superar o original. Neste sentido,
ficou claro ao longo dos anos que não fomos capazes de articular uma
estética condizente com os propósitos de criação de uma nova e
revolucionária linguagem e muito menos de elaborar uma dramaturgia que
pudesse expressar a representação de uma realidade sem os fetiches de
produção dos países mais avançados.
Levado a comparar o simulacro nativo ao original importado, o espectador
das salas escuras – já devidamente entorpecido pelo consumo abusivo do
hábito televisivo, que se constitui em um claro pastiche do standard da
metrópole – tende a privilegiar as superproduções americanas, que estão
mais próximas do seu padrão estético de consumo.
O retrospecto dos filmes produzidos e distribuídos pela Embrafilme ao
longo dos seus quase trinta anos de existência mostra também o pouco
interesse que os nossos diretores e produtores tiveram pelos temas
históricos, em geral voltados para as lutas indígenas e os messianismos
sociais.
Por outro lado, o cinema dos anos 60, 70 e 80, com sua maior ênfase nos
temas sociais, arquetipificou os personagens urbanos marginais – o
malandro, o bicheiro, o líder sindical, o poeta revolucionário – ou o
seu contraponto, especialmente estigmatizado na figura do capitalista
sem escrúpulos.
O cinema brasileiro da década de 90 e do início do século 21 – dispondo
de meios técnicos mais aperfeiçoados – vem propondo uma microestética de
personagens mais tangíveis e, portanto, verossímeis mas o que se ganha
em termos de construção dramática perde-se em relação à abrangência do
real.
Com a melhoria dos padrões de som e imagem, obtém-se um maior suplemento
de realidade que permite uma construção dramática com
Quaisquer que sejam os temas escolhidos pelos diretores e produtores do
cinema brasileiro, a pergunta que não se pode deixar de ser feita é a
seguinte: o cinema brasileiro tem sido capaz de exprimir de forma ampla
a nossa cultura em todas as suas peculiaridades do falar, agir, pensar,
vestir, comer e – porque não – também sonhar, como o fizeram as
cinematografias da Itália, Alemanha, Rússia, Estados Unidos e Japão?
Em sua já longa porém muito tormentosa história – marcada por ciclos de
altos e baixos na produção de filmes – o nosso cinema conseguiu produzir
apenas algumas grandes obras, que hoje são como epifenômenos, fugazes
representações de uma turbulenta realidade.
Como perguntava o cineasta Aluysio Raulino, em um instigante
curta-metragem realizado há mais de trinta anos: Teremos Infância?
1 Pois é – Letra de Chico
Buarque e música de Tom Jobim
Sérvulo Siqueira |