20 de outubro de 2008
 


A vertigem da memória
 

Estimulados, de um lado, pela busca desenfreada por efemérides promovida pelos órgãos de comunicação que, na ausência de uma política de análise séria e profunda da nossa história se socorrem na superficialidade do fait divers e, ao mesmo tempo, não podendo escapar à característica ôntica do homem como ser histórico e condicionado pelo milenarismo, vivemos no atual instante uma rememoração do ano de 1968, no ensejo do seu 40º aniversário.
 

Dada a nossa crônica incapacidade de preservarmos a história, que faz lembrar a frase de Ivan Lessa de que “de 15 em 15 anos esquecemos tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos”, são os mesmos órgãos de comunicação que apoiaram – com pequenas ressalvas – o longo governo militar que regeu o Brasil de 1964 a 1985, que se dedicam a relembrar o movimento estudantil de 1968, tingindo muitas cores reais – que já se perderam com o tempo – com matizes distorcidos e obscuros. Folha de S.Paulo, O Globo, a notória TV Globo e até o inefável Estadão, que quase incondicionalmente também se perfilou ao lado dos gorilas brasileiros, se transformam em paladinos das nossas liberdades democráticas e guardiões da memória nacional.
 

Ao mesmo tempo, muitos dos que participaram das passeatas, das assembléias estudantis e dos comícios relâmpagos, além dos partidos políticos que lutavam contra a ditadura, se envolvem neste processo marcado pelo elemento subjetivo que privilegia o gesto pessoal acima da conjuntura histórica, sem considerar que muitos destes gestos – de inegável heroísmo – não conseguiram sensibilizar a sociedade brasileira, que ainda permaneceu por um longo tempo apoiando o governo militar. Na verdade, foi a degradação das condições econômicas, associada às contradições externas, que levou às pressões políticas que produziram uma nova ordem, fazendo ruir o pesado edifício da ditadura militar de 64.
 

A participação da sociedade brasileira somente chegou – e finalmente! – quando até mesmo os ratos do porão do sistema já então obsoleto e corrompido – como José Sarney, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães et alii – começaram a abandonar o navio que afundava.
 

As grandes manifestações públicas de 1984, os comícios, a maré humana de mais de um milhão de pessoas que tomou as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro criaram na verdade não um clímax mas um anticlímax para esse movimento, já que a soturna votação da Câmara de Deputados em Brasília, numa cidade sitiada por tropas do Exército, não conseguiu restabelecer a plena vontade popular. O parto desse novo processo se tornou ainda mais canhestro quando o ungido Messias – que comandaria a nação na travessia para a democracia – tombou no meio do percurso e o seu rebento apareceu como uma criatura hermafrodita, produto dos horrores da velha ordem de Sarney, Maciel e Toninho Malvadeza, do populismo conservador de Ulysses Guimarães e de um desfigurado Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
 

O que é que sobrou de tudo isto? Hoje, pode-se dizer com certeza que muito pouco restou de todos esses sonhos – quando eles existiram de fato – e se alguma coisa ainda conseguiu subsistir tudo terminaria por se dissipar com a eleição de Luís Inácio da Silva e a ascensão ao poder de seu governo neoliberal, em 2003.
 

Cumprindo fielmente o diktat de Washington com a sua política ortodoxa de juros altos, superavit primário, índices de risco e ajustes estruturais determinados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, o governo de Luís Inácio da Silva e do Partido dos Trabalhadores (PT), que se constituiu no grande beneficiário deste processo de transformação, passou a acenar com uma vaga política de direitos humanos que abriu caminho para uma crescente onda de ações de caráter oportunista, impetradas em tribunais com o fim de angariar benefícios pecuniários que – na maioria dos casos – já não mais poderiam ser usufruídos por seus legítimos beneficiários. Essas ações provocaram revolta na população do Brasil e em muitos daqueles que lutaram contra o regime ditatorial no plano intelectual e por meio da ação militar. Um desses opositores, o humorista e tradutor Millôr Fernandes chegou a comentar: – Eu pensei que eles estavam lutando contra a ditadura e não fazendo um investimento no futuro!
 

Subserviente no plano econômico, incapaz de formular um projeto autônomo para o país, engolfado pelo corporativismo e os interesses de grupos financeiros claramente envolvidos em corrupção, só restou ao atual governo a bandeira dos direitos humanos, levantada para fazer justiça num país que se caracteriza por um dos mais altos índices de injustiça da humanidade e que – ao contrário – se transformou em outro indicador de desigualdade, já que somente privilegia com quantias às vezes quase milionárias alguns poucos felizes.
 

Para um governo que se recusou a abrir os arquivos da ditadura de 64 e além disso ainda estendeu o seu prazo de abertura, que lidera uma “força de paz” – sob a bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU) – que tem sido responsabilizada por contínuas violações de direitos humanos no Haiti, que se mostra conivente com as perseguições aos Sem-Terra e aos movimentos ecológicos organizadas por latifundiários e mineradoras, que dispõe hoje de uma força de ocupação nas favelas do Rio de Janeiro que utiliza os mesmos métodos do Exército de Israel nos territórios palestinos sitiados, soa pelo menos contraditório estender esses direitos somente aos perseguidos pelo regime militar e essa posição têm sido interpretada em alguns setores como puramente revanchista.
 

A celebração do 40º aniversário dos acontecimentos do ano de 1968 no Brasil – pela maneira superficial como está sendo conduzida e pelo passado pregresso nebuloso de alguns de seus promotores – soa então como um desses acontecimentos de impacto fabricados que fazem lembrar a famosa frase do Conde Piero ao Duque de Salinas na novela Il Gattopardo, de Giuseppe Tomaso di Lampedusa:

 

– É preciso que tudo mude para que tudo continue como está.
 

Tem-se a impressão de que – na completa ausência de uma política consequente e de distribuição de riqueza para a nação brasileira – que contemple não somente privilégios para banqueiros e exportadores amigos do Poder – o governo de Luís da Silva sacou da cartola uma proposta de direitos humanos para os amigos e acólitos – com o evidente propósito de anestesiar as mais gritantes reivindicações de grupos que poderão lhe ser úteis no futuro e de outorgar a si próprio – de forma claramente equivocada e mal intencionada – a liderança no processo de derrubada da ditadura no Brasil.
 

Igualmente estranha é a participação de órgãos de comunicação que – ao longo da nossa história – sempre se constituíram em verdadeiros baluartes da ordem reacionária vigente como a Folha de S.Paulo, O Globo, TV Globo e Estadão, entre outros, que em posição aparentemente contrária ao seu verdadeiro papel se transformaram subitamente em guardiões da nossa memória. Um simples exame das manchetes diárias desses periódicos na época e uma leitura dos seus editoriais será suficiente para compreender que – mais uma vez – a sua suposta correção e generosidade não tem base legítima nem sustentação.
 

Por fim, atuando como o verdadeiro epicentro dessa efeméride – movidos por sinceros e calorosos propósitos – estão antigos participantes daqueles movimentos de 68, muitos dos quais defenderam suas convicções à custa de sacrifícios pessoais e com o risco da própria vida.
 

Entre os muitos participantes da esquerda de 68, alguns deles atualmente convertidos às benesses do neoliberalismo, emergem – pontificados pelos meios de comunicação mais interessados no culto do processo –, o outrora presidente da União Estadual de Estudantes (UEE) de São Paulo nos tempos de 68, José Dirceu, e o cantor e compositor Gilberto Gil, não por coincidência dois antigos ministros do atual governo.
 

Durante algumas comemorações ocorridas no primeiro semestre deste ano, o ministério da Cultura, ainda comandado pelo cantor e compositor, promoveu uma espécie de concurso, uma votação em que eleitores voluntários eram convidados a escolher as figuras que mais se destacaram naquela época. Há pouco tempo também – em cerimônia que se transformou em convescote para amigos e admiradores – o go-vernador de Minas Gerais atribuiu uma estatueta a 100 personalidades que considerou terem se distinguido na luta contra o regime autoritário.
 

Tais fatos constituem um flagrante desrespeito à memória daqueles que caíram num combate que não se caracterizou de forma alguma como um festim ou um banquete e que – ao contrário – foi se tornando de parte a parte cada vez mais agressivo e violento.
 

Quanto aos sinceros e bravos militantes, a resposta nem sempre tem sido condizente com o que o espírito do momento comportaria. A nossa velha esquerda não parece ter apreendido as lições do passado e tem – com algumas exceções – se mostrado incapaz de fazer uma análise aprofundada que leve em consideração os erros e acertos cometidos. Essa postura poderia criar as condições de uma nova agenda para o futuro, em que fosse possível incorporar as reflexões trazidas por quase vinte anos de derrocada do regime socialista real soviético e as novas perspectivas aportadas pelos anarquistas, os ecologistas e as lutas das minorias.
 

Observa-se que alguns trabalhos expostos têm privilegiado um caráter essencialmente memorialista marcado por recordações de caráter subjetivo, certamente mais adequadas às características de uma nova corrente da história que busca afirmar o testemunho pessoal em detrimento da análise de fundo. É natural que todos os participantes queiram contar o que viram e como atuaram naqueles momentos mas também seria de se esperar – à luz da experiência e da reflexão que o tempo proporciona – que pudessem nos oferecer algum caminho para o impasse que a esquerda vive no momento diante do pensamento único do modelo neoliberal.
 

Nesse instante em que o capitalismo financeiro vive a sua maior crise, a velha esquerda tem demonstrado – e não apenas no Brasil – a sua total incapacidade para entender essa aporia profunda do sistema e se revela pouco competente para formular uma alternativa ao modelo hegemônico. No Brasil, como na França ou nos Estados Unidos, os antigos líderes de 68 se converteram em membros de governos conservadores, alguns com viés reacionário como o de Nicolas Sarkozy na França, que ostenta como seu ministro das Relações Exteriores, um antigo militante de 68, o hoje sinistro Bernard Kouchner, que chegou a defender o bombardeio do Irã com armas atômicas. Será muito difícil explicar qual a relação que as propostas libertárias de Maio de 68 têm com o desejo de aniquilar um país que se opõe à dominação de Israel no Oriente Médio e ao massacre dos palestinos.
 

Qual seria então o legado das lutas de 68? Para os mais jovens, a sua lembrança talvez seja um indicador de que a nossa história apresenta episódios de inconformismo e de conflitos, o que contrasta claramente com a contínua negação da nossa memória que o sistema vigente tenta impor. Ao se voltar para o passado em busca de uma referência, os mais jovens de hoje que não se renderam inteiramente à miragem do consumismo procuram encontrar um paradigma para a rejeição do pensamento único atual. As celebrações do momento, no entanto, não refletem sobre as causas profundas que levaram a esses movimentos e nem ao menos mencionam as suas consequências como a americanização do ensino decorrente do famigerado acordo MEC-USAID (Ministério da Educação e Cultura e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), que compartimentou a universidade, empobreceu tremendamente a nossa vida cultural e se constituiu no verdadeiro estopim que levou a uma crescente conscientização no meio estudantil. Se agissem dessa forma, teriam que discutir em profundidade a péssima qualidade das escolas no Brasil, que conduziram à formação de profissionais de segunda ordem sem condições de aspirar a serem mais do que mão de obra barata, instrumento dócil nas mãos do neoliberalismo do governo de Luís da Silva, que decidiu jogar as suas cartas no etanol e na força de trabalho semiescrava.
 

Voltando ao plano da história das mentalidades, seria oportuno lembrarmos um popular talk-show de fim de noite de alguns anos atrás, em que o entrevistador conversava com uma jornalista, editora de uma revista popular, que também havia participado do movimento de 68. Ela comentava que – se nada havia mudado – ao menos a relação com a filha, já então adolescente, era muito melhor do que a que tinha com os seus pais. Isso ocorria porque, dizia, as contestações da época e sua bandeira em defesa da liberdade sexual, da mudança dos costumes e da recusa do autoritarismo haviam lhe dado uma nova perspectiva das relações humanas. São considerações que nos lembram um recente ensaio de Ignácio Ramonet no Le Monde Diplomatique, em que o jornalista comentava que se a geração de 68 não conseguiu transformar a sociedade ao menos mudou o seu modo de vida.
 

Uma mudança nos costumes, talvez? Esta seria uma transformação aparentemente radical mas que, na realidade, nada modificou?
 

Numa página extraordinária da história da literatura, Marcel Proust narra em Le temps retrouvé uma festa na mansão dos Guermantes que marca emblematicamente a passagem da velha para uma nova ordem: o momento em que o vetusto Cardeal chega ao local amparado por seminaristas. Em uma das muitas representações que elabora do seu grande tema, Proust diz que o tempo vivido – que poderia ser representado pelo espaço que separa o ancião do rés do chão – provoca vertigens que distorcem a sua percepção.
 

Muitas das análises e rememorações que marcam a comemoração desses intensos acontecimentos de 40 anos atrás têm sido caracterizadas pela vertigem das emoções, o que faz com que o peso do passado soterre uma avaliação capaz de projetar um novo plano para o futuro.
 

Lembrando Martin Luther King, “nós não somos mais o que éramos nem o que queríamos ser”.
 

Será preciso talvez inventar uma nova utopia para o milênio.


 Sérvulo Siqueira