19 de outubro de 2018

 

Pequenas reflexões à beira do abismo

 

Holden Caulfield, o célebre personagem de O apanhador no campo de centeio, novela emblemática da contracultura no século 20, se considerava uma espécie de “sentinela do abismo", imbuído da missão de evitar que as pessoas caíssem no precipício.

No Brasil dos dias de hoje, alguém que incorporasse o desejo do personagem de J.D. Salinger poderia pensar que:

1. O governo de Luís Inácio Lula da Silva, embora tenha proporcionado uma melhor qualidade de vida aos brasileiros, perdeu a batalha pelo poder porque não foi capaz de oferecer à população uma verdadeira consciência política de suas reais necessidades e de seus direitos e se limitou em grande parte a um programa assistencialista.

2. Em consequência, permitiu que as reivindicações se transferissem para o tema da corrupção que – como sempre – foi conduzida pelas classes dominantes, que detêm o controle dos meios de comunicação e de todo o aparato do Estado: poder legislativo, judiciário e órgãos de repressão.

3. Com o apoio dos meios de comunicação – esta prostituta muito pouco respeitosa da nossa pátria – esses estamentos fabricaram as maiores mentiras sobre os governos do PT: a “maior corrupção da história do Brasil”, investimento em Cuba, tríplex de Lula sem escritura de compra, entre muitas outras aleivosias, e nunca tiveram a honestidade de mencionar as boas realizações dessas administrações.

4. Por meio de um verdadeiro massacre de falsas informações, distorções, favorecimentos de certos órgãos de informação com notícias sobre delações premiadas e inúmeras condutas típicas de imprensa marrom que não resistem a cinco minutos de investigação, a TV Globo e as outras emissoras menores que lhe seguiam os passos martelaram durante anos os corações e mentes do despolitizado povo brasileiro, de forma a transformar o partido hegemônico e seus dirigentes em demônios cuja missão fundamental consistiria em se apropriar dos benefícios que deveriam ser destinados aos cidadãos desta terra.

5. Especialistas ianques também estiveram por aqui, espécies de Doutor Mabuse adestrados nas artes do disfarce e das mensagens subliminares com o propósito de desmoralizar Lula e seus aliados e vender um paraíso artificial de honradez, integridade e compromisso social que o seu adversário não pode apresentar. Para isso, se serviram da tecnologia do WhatsApp, impulsionada por uma grande investimento financeiro de empresas poderosas e controlada pelos norte-americanos, seus criadores e também diretamente interessados no resultado das eleições.

6. Em nenhum momento tiveram a dignidade de reconhecer que em nossa triste história de parcos avanços sociais, os governos do PT foram aqueles que proporcionaram algumas das maiores conquistas – ainda, assim, pequenas – ao sofrido povo deste eterno Bananão.

7. E foi então que esta imensa montanha de falsificações, mentiras, deturpações, tribunais inquisitoriais, golpes armados e toda a sorte de armações caluniosas deu origem a um mísero ratinho, um insignificante deputado que se manteve quase à sombra durante os 28 anos de seus mandatos e subitamente emergiu à tona como o catalizador de todas as aspirações populares, o salvador da pátria corrompida, o vingador dos fracos e dos oprimidos exercendo toda a sua fúria exatamente sobre o Partido dos Trabalhadores, que passou a partir daí a ser responsabilizado por todas as nossas agruras.

8. E, como era preciso encontrar um responsável por todos estes descaminhos, incriminaram um ex-presidente, talvez porque este – de origem humilde e nordestino de origem – tivesse ousado ocupar o comando do país e fazer um pouquinho – na verdade, apenas um pouquinho, mesmo, quando se compara com o que fez pelos ricos – em favor dos pobres, os verdadeiros malditos desta terra.

9. E, como este presidente continuava muito popular, foi necessário colocá-lo na cadeia para que todos soubessem que era um ladrão e que não poderia mais receber o voto popular. No entanto, não apresentaram uma prova cabal de sua culpabilidade e muitos lá fora e também aqui no país – que não foram intoxicados pela brutal máquina de propaganda que dissemina a mentira e o ódio – descreem dessas grotescas manipulações.

10. E quando o ratinho parido pela montanha do ódio e da mentira foi vitorioso no primeiro turno das eleições, muitos aqui e no exterior suspeitaram que – num país onde se produzem tantas invenções e falsificações − por que é que as eleições também não teriam sido fraudadas?

11. A verdade é que, quando alguém que se diz seu amigo falta com o compromisso assumido, o adversário deste seu falso amigo passa a ser visto com simpatia. Ou seja, o inimigo do meu inimigo pode se tornar o meu amigo.

12. Pior ainda foi que a vitória desta corrente desencadeou um clima de agressões e até de assassinatos a adversários, mas isto não parece ter incomodado o vitorioso do primeiro turno, que já está acostumado à violência porque defende a tortura e o estupro.

13. Num país onde mais de 60 mil pessoas – em sua maioria jovens – são mortos todo ano, parece que  a violência não surpreende mais uma parte da população que acredita que a solução para os seus problemas está na volta do regime militar.

14. E tudo indica que os brasileiros, que no passado já escolheram para a presidência um homem com uma vassoura e outro que se intitulava “o caçador de marajás”, se encaminham hoje para sagrar um “justiceiro” como o salvador da nossa triste pátria sem mátria.

15. Por trás de tudo isto, coloca-se a soberania política e econômica do Brasil: seus minerais de última geração depositados no subsolo, o petróleo do pré-sal, as reservas de água doce e a vastidão de seu território propício para a produção de três safras ao ano, que despertam a voracidade de abutres nacionais e estrangeiros.

Impossível deixar de lembrar outro visionário da nossa terra, o cineasta Rogério Sganzerla que, por meio de um de seus personagens, afirmou:

─ Quando a gente não pode fazer mais nada, a gente avacalha, avacalha e se esculhamba!

E assim tem sido.

Será que ainda teremos infância?

Sérvulo Siqueira