18 de outubro de 2013

 

O fim da história, o pensamento único e os novos deuses do Olimpo

 

Do que têm medo alguns dos nossos mais conhecidos artistas, transformados hoje em baluartes de um sistema que diziam combater?

Os mais antigos costumavam nos lembrar que "um homem de bem não tem nada a temer". O que é que estes "homens e mulheres do bem" têm a temer? Um fato pregresso, outra extravagância que passou do limite, atos pouco éticos e vergonhosamente desabonadores ou alguma coisa que jaz escondida e que poderia, eventualmente, ser descoberta? Por que é que esses artistas que falam o tempo todo de sua vida pessoal tentam agora evitar que os outros façam o mesmo? O que têm a esconder?

Na verdade, podem ter algo a esconder. Teriam, por exemplo, que responder por que desde o final dos anos 80 assinaram acordos com poderosas gravadoras que os impediram de emitir declarações políticas polêmicas. Pouca gente sabe mas, no final do século passado, algumas grandes gravadoras − com imensos tentáculos em todo o show-business mundial − ofereceram generosas luvas a artistas de renome internacional com a condição de que não expressassem opiniões políticas, especialmente sobre as lutas dos povos do Terceiro Mundo.

O objetivo era evitar a repetição do que havia ocorrido com John Lennon e Bob Marley, que catalisaram em letra, música e atitudes corajosas o anseio dos povos colonizados da América, África e Ásia de se libertarem da opressão militar, política e econômica a que estiveram submetidos por muito tempo. Lennon foi assassinado e Marley morreu subitamente em circunstâncias misteriosas e que ainda necessitam ser esclarecidas.

Muitos artistas brasileiros foram contratados e se calaram, num silêncio despudorado e comprometedor, evitando dar declarações políticas e − quando o faziam – isso acontecia sempre com o visível desejo de referendar um sistema que haviam contestado no início da sua carreira. Há vários exemplos que podem ser mencionados a este propósito.

Os tempos mudaram e hoje vivemos numa época em que a própria imprensa burguesa corporativa − que manteve igualmente um silêncio despudorado e comprometedor − levanta a bandeira dos protestos com o intuito de derrubar o governo. Será que alguns dos nossos artistas temem agora que esta voragem iconoclasta chegue até o Olimpo etéreo e impenetrável, onde acreditam estar encastelados?

A discussão sobre o caráter das biografias já é bastante antiga − especialmente em outras sociedades − e chega ao Brasil com algum atraso. Em outros países, as editoras têm o cuidado de imprimir nos livros a informação Biografia Autorizada ou Biografia Não Autorizada, que orienta o leitor sobre o tipo de produto que vai adquirir. Todas as outras questões subsequentes podem e devem ser resolvidas sob o marco do Código Civil de cada país.

Ao procurar levar o debate para um plano mais pessoal, o que esses artistas estão na verdade tentando camuflar é uma questão de ordem muito mais ampla, ou seja, o que delimita o espaço entre o público e o privado.

Por exemplo, tem a sociedade o direito de conhecer a conduta privada de figuras públicas, saber como são e como se comportam, no momento em que está a ponto de escolhê-los para ocupar um cargo no Estado, custeado com o dinheiro arrecadado da contribuição de cidadãos?

Qual é a diferença que existe entre um político que pleiteia uma posição pública por meio do voto dos cidadãos e um cantor ou compositor que se apresenta num espetáculo, grava CDs que são colocados à venda e faz propaganda dos mais diversos produtos que não têm nenhuma relação com sua atividade artística? O que é que procura, por exemplo, um político que pede o seu voto ou o cantor que faz propaganda de um perfume? O que torna verossímil e convincente o discurso de um político ou a propaganda que um artista faz de um sabonete? Certamente, não é outra coisa senão a credibilidade que ambos possam e almejam ter.

Ora, se o capital básico do político ou do artista junto à opinião pública − aquilo que os torna confiáveis − é a sua credibilidade, nada mais natural que esta mesma opinião pública conheça algo sobre a vida daqueles em quem procura confiar. De outra parte, ambas as atividades se beneficiam do dinheiro público já que a grande maioria das produções culturais no Brasil é custeada com recursos da lei Rouanet, concedidos pelo Estado.

Daí se conclui que o conhecimento da vida particular de políticos e artistas é fundamental para que eles recebam o atestado de idoneidade e de confiabilidade da população. Parece que alguns dos nossos criadores querem que as informações que levarão a esse atestado sejam produzidas somente por eles. Nenhuma outra versão será autorizada ou permitida.

A perda da privacidade é o ônus que as pessoas que alcançam grande popularidade têm que suportar, porque sua fama ou prestígio dependem da aceitação daqueles que pretendem sensibilizar. Por acaso, os nossos artistas acreditam que são seres superiores que não têm nenhuma obrigação de prestar contas de seus atos à sociedade que os consagrou? Será que eles se veem como habitantes de um Olimpo inacessível aos simples mortais − o que sabemos não acontecia sequer aos próprios deuses do Olimpo, na sua maior parte sujeitos à mesma querelas dos seres humanos − e portanto inimputáveis, como alguns políticos da estulta categoria de um José Serra ou um Silvio Berlusconi pretendem ser?

Não, não deve ser isso, é uma outra coisa, certamente muito mais sutil e provavelmente mais à altura de personalidades tão sensíveis e inteligentes. O que os nossos artistas querem na verdade é tirar proveito de uma tendência que começou a se desenhar de maneira mais nítida com a emergência do neoliberalismo.

Logo após o final da União Soviética, o professor universitário Francis Fukuyama produziu um paper, chamado O Fim da História, em que retomava uma ideia criada por Hegel para concluir que o modelo democrático burguês americano e europeu vitorioso na Guerra Fria constituiria o coroamento da história da humanidade. A ideologia nacionalista e os fundamentalismos religiosos − principalmente o islâmico, é claro − representariam apenas o vestígio de uma sociedade tribal que brevemente seria superado.

Alguns anos depois, o jornalista Ignacio Ramonet empregou a expressão la pensée unique , retomando outras ideias de Schopenhauer e Herbert Marcuse, para afirmar que vivíamos numa sociedade dominada pelo neoliberalismo. Expressão cunhada pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer em 1819, o pensamento único define um raciocínio que se sustenta a si mesmo, constituindo uma unidade lógica independente, sem ter que se referir a outros componentes de um sistema intelectual. Em 1964, Herbert Marcuse reelaborou esse conceito para descrever o que chamou de sociedade unidimensional, dentro do contexto da crítica à ideologia da sociedade tecnológica avançada. Para Marcuse, esse tipo de pensamento é resultante do "fechamento do universo do discurso" imposto pela classe política dominante e pelos meios de comunicação de massa.

Nesta atmosfera rarefeita, teríamos então livros ditados a copy desks ou ghost writers previamente contratados, que os relatariam segundo as conveniências dos biografados. Nenhuma controvérsia − a não ser aquelas de conhecimento público ou já previamente aceitas − poderia ser permitida, uma vez que isto ofenderia a honra do biografado.

Segundo Chico Buarque − em artigo que soa mais como o discurso de um político baiano da antiga União Democrática Nacional (UDN, partido da direita liberal conservadora extinto em 1965), do tipo Aliomar Baleeiro ou Juracy Magalhães − o artista tem direito à sua vida privada. Chegaremos assim ao ápice do pensamento único: estamos hoje diante da revivescência do velho tédio à controvérsia machadiano.

Por falar em Machado de Assis, o artigo de Chico Buarque publicado recentemente causa espanto porque não parece ter sido escrito por alguém que em outros tempos não tão distantes encarnou de forma emblemática a resistência a um outro modelo do pensamento único, ao expressar de forma veemente e poética a liberdade de consciência e ação. Lembra, outrossim, um outro personagem famoso de Machado: aquele caracterizado na Teoria do Medalhão.

Causa ainda mais estupor porque vem de alguém que sofreu de forma persistente a censura do governo militar que imperou no Brasil por 21 longos anos. Ainda que Chico não defenda a censura, seus argumentos podem perfeitamente ser interpretados como muito semelhantes aos que um censor empregaria durante os anos de ditadura, carregados de termos polidos mas restritivos e, no fundo, muito ambíguos e totalitários.

No famoso Fígaro de Beaumarchais, o personagem comenta que "se pode falar de tudo no reino menos das amantes do rei, das tramóias do rei, das falcatruas do rei", etc. Em seu artigo, Chico Buarque diz que Roberto Carlos tem direito à sua vida privada. Pelo visto, os tempos mudam mas os reis permanecem. O nosso Beaumarchais já não se refere mais a Luís XVI mas ao rei Roberto Carlos, alguém que como sabemos se beneficiou diretamente da ditadura militar no país, a mesma ditadura que proibiu inúmeras músicas do nosso bardo moderno.

Talvez, Chico Buarque o faça movido por um espírito corporativo de defesa dos seus pares, mas é triste verificar que do anseio libertário dos anos 60 e 70 − amplo e generoso − não sobrou mais do que um mesquinho sentimento de classe que somente procura beneficiar alguns poucos.

Dadas as peculiaridades da nossa história e a contínua expropriação da memória pelas elites que vêm dominando este país, sabemos que o povo brasileiro tem uma necessidade desesperada de ídolos e heróis. Como não temos acesso direto à nossa história, não podemos verdadeiramente distinguir o falso do verdadeiro. Somos então confinados a idolatrar espectros ocos e vazios como Pelé, Xuxa e outros da mesma ou ainda pior extração. Permanecemos distantes de figuras luminares como Frei Caneca, José Bonifácio, Santos Dumont, Pixinguinha, Noel Rosa, entre outros, que deveriam ser mais estudados porque nos encheriam de orgulho.

À falta de nomes realmente excepcionais, tendemos a incensar os nossos cantores populares porque a música é na verdade a mais autêntica forma de expressão que temos. Alguns destes que estão hoje aí querendo restringir a liberdade de investigação da história se constituíram em instrumento de resistência contra uma época muito sombria porque passamos. Decorrido um lustre relativamente curto de tempo, estes mesmos arautos se converteram em baluartes de um sistema que prega o fim da história e defende o pensamento único.

Assim como em relação aos políticos, que traem o voto que recebem após assumir o mandato, pode-se dizer que esses artistas traíram a confiança popular, manifestada no apreço à sua obra. Respondem agora com arrogância, demonstrando que não retribuem ao povo a confiança de que desfrutam entre a população.

Da mesma forma que não cobramos dos políticos a confiança que lhes demonstramos, não exigimos também dos nossos artistas uma contrapartida em termos da responsabilidade social que têm por viverem em um país com imensas disparidades sociais e onde todos precisam contribuir solidariamente para reduzir o enorme hiato entre ricos e pobres. Políticos e artistas, que se encontram no ápice desta pirâmide, têm a obrigação de trabalhar juntos para amenizar essa enorme diferença. Todas as grandes expressões criativas da história sempre estiveram indissoluvelmente ligadas à sociedade em que nasceram.

Paradoxalmente, num momento em que a participação dos artistas se torna mais necessária, como respondem alguns dos nossos criadores? Sua atitude demonstra claramente que só pensam em si mesmos e em seus mesquinhos interesses. Por que é que não temos e nunca tivemos alguém como o tenor italiano Luciano Pavarotti, que todo ano organizava um grande evento para angariar fundos que amenizavam o sofrimento de populações carentes em todo o mundo? Certamente, porque isto iria desviar a atenção da nossa sociedade sobre deformidades que muitos não estão interessados em revelar.

O episódio que estamos vivendo, em que as máscaras prepotentes de alguns começam a cair, pode nos levar a repensar o modo como tratamos os nossos governantes e nossos ídolos. Talvez devêssemos olhar mais atentamente para eles, percebê-los em suas peculiaridades e idiossincrasias, escrutinizá-los com atenção e depois − somente depois − fazer um julgamento mais abalizado. Por outro lado, visto em seu conjunto percebe-se que nem todos os nossos artistas defendem essa posição e muitos outros já se colocaram abertamente contra qualquer tipo de restrição ao livre exercício da pesquisa e da informação.

Por último, mais uma questão: há quanto tempo Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento − para só citar alguns dos mais ilustres envolvidos neste melancólico processo − não nos brindam com melodias lindas e lendas inspiradas, como faziam nos tempos heróicos dos anos 60 e 70, em que não eram ainda tão ricos e famosos? O que é que aconteceu?

Será que estaremos condenados a nos lembrar agradavelmente dessas figuras somente pelos trabalhos que produziram há 30 anos ou por meio de versões edulcoradas e glamurizadas, já devidamente sacramentadas pelos biografados? Voltaremos então à idade das trevas, com uma nova edição do index librorum prohibitorum?

 

Sérvulo Siqueira