18 de novembro de 2009
 


O testamento de Dr. Jekyll

 

Apontada por analistas das mais diversas tendências como James Petras, Noam Chomsky, Paul Craig Roberts e Fidel Castro, a fulminante ascensão de Barack Hussein Obama ao poder marcou a retomada da política mais agressiva dos Estados Unidos na América Latina. Desde a invasão do território do Equador, ainda no final do governo Bushinho, até o golpe fascista em Honduras e o mais recente episódio da instalação das sete bases americanas na Colômbia, sem esquecer a tentativa de desestabilização do governo de Evo Morales na Bolívia – que levou à expulsão do embaixador e ao rompimento de relações – a política gringa volta a mostrar o seu lado mais truculento, que não emergia de forma mais explícita desde o frustrado golpe de Estado contra Chávez em abril de 2002, na Venezuela. 

No momento, observa-se a formação de um ainda pouco visível mas latente arco de alianças, que se estende por toda a América Latina e objetiva fundamentalmente recuperar o poder perdido pelo império para os governos com posturas mais independentes de centro-esquerda e de tendência socializante que irromperam no subcontinente. 

No Brasil, esta “santa aliança” vai desde os grandes proprietários de terra, os ruralistas da União Democrática Ruralista (UDR), os notórios direitistas do Democratas (DEM), as grandes corporações patronais, os neoliberais do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a imprensa corporativa (Organizações Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Zero Hora, etc.) até os antigos comunistas do Partidão, hoje encastelados no Partido Popular Socialista (PPS), sem esquecer o ex-governador paulista Orestes Quércia. 

Sem nenhum programa político explícito, tendo na verdade receio de revelar os seus objetivos inconfessáveis porque isto assustaria a população e necessitando costurar uma heterogênea frente de partidos, da direita à antiga esquerda, esse verdadeiro exército Brancaleone político com claros objetivos de poder limita-se a uma tática que consiste em denúncias a esmo, desde os indícios de corrupção no governo e seus aliados a assuntos tópicos do momento como o apagão ocorrido há pouco em uma parte do país. Suas posições vão do apoio ao golpe em Honduras e da defesa da extradição do militante de esquerda italiano Cesare Battisti – exigida pelas organizações criminosas da Itália – ao ataque direto ao presidente por seu próximo encontro com o presidente do Irã. 

Mais do que simplesmente agradar aos senhores do império americano, essa estratégia parece revelar uma clara coordenação de objetivos que compreende o arreglo das forças mais reacionárias do país com a política de dominação dos povos da América comandada pelos Estados Unidos. 

Conscientes do poder de sedução que exerce sobre algumas camadas da população, especialmente a classe média, a denúncia indiscriminada do mal endêmico da corrupção que prospera especialmente em países com instituições democráticas frágeis como o Brasil – mas que hoje com o neoliberalismo e o enfraquecimento do Estado parece contaminar todas as nações – estes farisaicos zelotes da moralidade brandem velhos slogans de reforma dos costumes políticos. Com vistas a concretizar o seu plano, certamente se apóiam na curtíssima memória do povo brasileiro e esperam que os eleitores não se lembrarão do fato de que o candidato ungido para reverter o atual estado de coisas foi exatamente o fiel escudeiro de um dos governos mais corruptos de toda a história do Brasil: os dois períodos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, de amarga memória para grande parte daqueles que o viveram. 

Como nesta estranha aliança de antigos cruzados que ambicionam resgatar das mãos do Partido dos Trabalhadores (PT) o Santo Graal tudo é ainda bastante nebuloso, não se sabe exatamente se o príncipe ungido assumirá efetivamente o trono já que um delfim, mais jovem e ambicioso também cultiva secretos desejos, enquanto o velho rei destronado e hoje caminhando para o completo ostracismo trama nos bastidores – na eventualidade de uma vacância – a sua recondução ao poder. 

Por certo, todos contam com a continuação das velhas práticas parasitárias de engano e trapaça que caracterizam a conduta das elites econômicas brasileiras mas no fundo receiam que o julgamento popular talvez não lhes seja favorável, como vem acontecendo recentemente. Em suas palavras, gestos e atitudes deixam muitas vezes transparecer um sentimento antecipado de derrota e desespero, que se evidencia desde a indecisão do candidato escolhido até frases e comentários sobre a grande popularidade de seu adversário – que atribuem em parte a si mesmos – ou à baixa consciência política do povo brasileiro. 

Essa fragilidade, no entanto, não deve ser subestimada, já que sabemos – pelo retrospecto histórico de nosso país – que a nossa direita sempre se caracterizou por uma profunda amoralidade, falta de escrúpulos e apego ao poder e que seu repertório de ardis não possui limites, tendo sempre demonstrado grande capacidade de imaginação. Sua aliança com a política imperialista dos Estados Unidos certamente oferecerá a esses grupos um proveitoso conhecimento da arte de criação de escândalos de todos os tipos e nesse sentido não se pode descartar nenhum tipo de artimanha desestabilizadora, desde a fabricação de atentados terroristas com o objetivo de assustar a população, a infiltração em grupos de esquerda como o Movimento dos Sem-Terra (MST) até a criação de um clima de pânico que leve a um caos generalizado e à derrocada do atual governo. 

Este receituário já tem sido praticado nas diversas revoluções coloridas que vêm sendo patrocinadas por organizações não governamentais americanas com o apoio explícito de órgãos do governo dos Estados Unidos, conforme ocorreu recentemente no Irã, segundo revelou a secretária de Estado Hillary Clinton. 

Há indícios de que uma ampla ofensiva poderá ser desencadeada durante a campanha presidencial no próximo ano, quando – certamente com o apoio dos grandes meios de comunicação do país – as forças reacionárias que aspiram voltar ao poder irão repetir os velhos bordões maniqueístas do bem contra o mal e – na hipótese do candidato escolhido aceitar a indicação – contrapor o tecnocrata bem-sucedido e competente à ex-guerrilheira convertida ao neoliberalismo. 

Unindo os cordéis desta clara pantomima, aparece no fundo da cena o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que – como se sabe – jamais se conformou com a sua ausência do poder. Neste sentido, esse político, já em franca decadência, acaba de publicar um artigo em vários órgãos de imprensa do país. Escrito numa linguagem rasteira, com expressões que beiram a vulgaridade, a matéria pode ser considerada como o rascunho de um programa de ação, uma verdadeira plataforma de operações para a derrubada do governo Lula e o impedimento do seu processo de continuidade. 

Lido e analisado com atenção, apesar de sua pobreza de argumentação e do baixo nível de raciocínio, o artigo expõe o corolário de ideias e ações que orientou a direita brasileira na segunda metade do século passado e no início deste novo milênio. Nele são mostrados de forma sucinta o ideário e as táticas que sustentaram a oposição e a derrubada dos governos populares que lutaram por um projeto de desenvolvimento autônomo para o Brasil e caíram diante de golpes de estado tramados pelo governo dos Estados Unidos, como depois ficou evidenciado por meio da liberação de diversos documentos oficiais. 

Aqueles com alguma memória certamente se lembrarão de slogans como governo populista e república sindicalista, propagados pelos líderes direitistas em 1964 e ecoados sempre pela imprensa mais reacionária de então que – como sabemos – não se diferencia muito da atual. Como não se pode falar hoje do perigo iminente do comunismo – até porque muitos dos algozes de hoje foram as vítimas de ontem – levanta-se o espectro de Hugo Chávez e para tanto chega-se até a transformar a sinistra e genocida política dos Estados Unidos – que já causou a morte de quase dois milhões de iraquianos e se prepara para destruir o Afeganistão – em uma vítima do presidente venezuelano, conforme afirmou um dos epígonos desta aliança em artigo recente publicado na Folha de S.Paulo

Além de oferecer algumas justificativas para alimentar a derrubada do atual governo, o artigo de FHC apresenta também um pequeno programa para reverter algumas poucas conquistas populares obtidas e aprofundar o modelo neoliberal em curso, estendendo ainda mais os recursos decorrentes do pré-sal à classe dominante brasileira. No seu panfleto, o ex-presidente destila também os argumentos históricos da direita brasileira quando propõe abertamente a derrubada de governos que não satisfazem amplamente os seus apetites, usa jargões que certamente atraem os maus instintos dos cães furiosos do conservadorismo brasileiro como autoritarismo popular e se refere ao poder presidencial com aplausos do povo, provavelmente esquecendo-se dos métodos que utilizou durante seu nefasto período e certamente revelando os temores da classe dominante brasileira quando o povo é consultado. Muitos de nós ainda se lembram de enormes áreas urbanas que eram fechadas quando o agora ínclito ex-mandatário vinha ao Rio de Janeiro e desembarcava de um helicóptero em bases militares, ou de estradas interditadas para preservar o ex-presidente de qualquer contato popular, etc. 

Conjuga-se assim em duas faces, da conversa de fala mansa ao grande porrete, a estratégia da dominação política e econômica americana: enquanto seus representantes-clientes comandados no Brasil por Fernando Henrique Cardoso criam internamente as condições para a operação, os patrões de Washington observam todos os passos dos adversários e vigiam suas ações por meio das bases instaladas na Colômbia. 

Em sua condição atual de verdadeiro Don Vito Corleone tropical, il capo di tutti capi da direita brasileira, FHC faz – como é costume – alguns agrados à política externa norte-americana, especialmente ao lobby judeu do Comitê Americano-Israelense de Assuntos Públicos (AIPAC) que hoje domina o governo de Washington e reprova o atual governo brasileiro por manter relações com o Irã, chegando a afirmar que naquele país há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e critica o que considera a postura de Lula de fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos. 

Mais uma vez, o ex-presidente que pediu que esquecessem tudo o que havia escrito, pede que também esqueçam o que seu governo fez, quando pretende que não se lembrem das enormes humilhações padecidas por seu ministro das Relações Exteriores, o diplomata Celso Lafer, obrigado a tirar os sapatos no aeroporto de Nova York. Diante de tamanho constrangimento, certamente receber o chefe de Estado de um país estrangeiro com o qual se mantém excelentes relações comerciais não parece uma mesura, a não ser porque os patrões de Fernando Henrique Cardoso não querem. Ao falar nisso, FHC certamente ecoa um debate que começa a se instalar no Congresso norte-americano sobre a suposta criação de um eixo terrorista na América Latina, ao mesmo tempo em que o ministro de Relações Exteriores de Israel, o genocida Avigdor Lieberman, que já propôs extinguir os palestinos, inicia uma contraofensiva na região e vende armas para a Colômbia e o Peru. 

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, Professor Emérito da Universidade de Capinas (UNICAMP), em artigo em que relembrava a sinuosa trajetória política de Fernando Henrique Cardoso e seu apoio a Luís Antônio da Gama e Silva – que como ministro da Justiça redigiu e editou o Ato Institucional nº 5, instrumento totalitário que estabeleceu um regime de terror no país – para reitor da Universidade de São Paulo (USP), sua opção pela esquerda por ser este o caminho mais fácil para o poder e a rápida mudança de lado depois do fim do socialismo real na União Soviética, concluía assim suas considerações: 

– Fernando Henrique, Fernando Henrique, um dia vais acabar Fernandinho! 

Com sua dupla personalidade de Professor Fernando Henrique, o intelectual que propunha um projeto autônomo para o nosso país e foi capaz de produzir, ao lado de outros sociólogos, uma análise da nossa situação de dependência política e econômica, e sua condição de FHC, o presidente que doou, principalmente ao capital estrangeiro, os mais importantes ativos econômicos do Brasil, as chamadas Joias da Coroa, com financiamentos preferenciais do maior banco de fomento do país – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – favoreceu o capital estrangeiro com as mais altas taxas de juros da história e ainda decuplicou a nossa dívida interna, Fernando Henrique Cardoso se candidata ao menos à condição de novo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, um verdadeiro Médico e Monstro da nossa vida política. 

Agora, chega finalmente à sua hora da verdade. Quem conhece a história de Robert Louis Stevenson sabe que a riqueza da fabulação não está apenas na descoberta da dupla personalidade do seu personagem principal mas também no verdadeiro sentido do testamento deixado por Jekyll a seu amigo Hyde. 

No final, descobre-se que Mr. Hyde, beneficiário de seus bens, era na verdade o próprio Dr. Jekyll, que criou o personagem para assumir uma nova vida e se liberar de qualquer compromisso moral. 

Quem será o beneficiário político da duplicidade Professor Fernando Henrique-Presidente FHC? Teremos um redivivo Dr. Jekyll/Professor Fernando Henrique ou a repetição do velho e já desgastado Presidente FHC/Mr. Hyde? 

Será o ex-presidente capaz de inventar uma nova personalidade, mais simpática à população, mais generosa e menos entreguista, para si próprio? 

No momento, candidatam-se a tributários deste legado o seu velho e fiel escudeiro político, o atual governador de São Paulo, José Serra, e o também atual governador de Minas Gerais, Aécio Neves. No entanto, muitos analistas suspeitam que o desejo recôndito de FHC é transformar a si mesmo em seu próprio herdeiro e retornar à presidência. Aqueles que o conhecem mais de perto falam de seu sentimento de inveja do prestígio popular que desfruta o atual presidente Lula e de seus temores pelo progressivo oblívio em que começa a mergulhar. 

No momento, dedica-se por certo a reagrupar suas forças e a reavaliar as linhas de ação e – ao que parece – também de subversão. A indecisão do seu grande aliado José Serra em se lançar nas águas turvas da chamada corrida presidencial pode revelar que não dispõe do mesmo poder que um dia chegou a exercer de forma quase absoluta. 

É possível que seu período presidencial e o partido que fundou, hoje igualmente submerso em inúmeros casos de corrupção, se transformem em um obscuro legado – apenas mais um entre muitos – das classes dirigentes de nosso país.

 

Sérvulo Siqueira